Histórias que a vida conta

 

 

Passei a noite toda a virar de um lado para outro na cama. Quase não dormi. Estava ansiosa para que a noite se fosse e o dia amanhecesse. Mil coisas povoavam minha imaginação. O amor incondicional que eu sentia pelo meu próximo, não impedia que eu sentisse insegurança, medo, curiosidade.

O despertador tocou às seis da manhã, como se precisasse despertar quem a muito já estava desperto.

Preparei-me então para sair, como faço todos os dias.

Caminhei em direção ao ponto de ônibus, sabendo que hoje o meu dia será diferente de todos os dias que já vivi. Irei por outros caminhos, que não conheço, mas pelos quais anseio .

O ônibus chega.Quarenta minutos depois, desço em frente à Penitenciária Feminina. Sinto meu corpo trêmulo. Hoje será o primeiro de muitos dias em que atuarei na Pastoral Carcerária.

Apresento-me na portaria, passo por uma revista que me constrange e depois vou em direção ao grupo de detentas que está a esperar, não por mim, mas por alguém que a elas dê atenção, que as vejam como pessoas que são, passíveis de erro e com todos os sentimentos inerentes aos seres humanos.

As minhas pernas tremem. Como será que devo me comportar? Serei aceita?

Elas vem ao meu encontro e eu vou ao encontro delas... Entre nós haverá uma troca. Mas só o tempo dirá que tipo de troca é essa.

Apresento-me e pergunto se podemos ir a algum lugar para ficarmos mais a vontade. Ouço risadinhas. Deixo para lá. Uma delas mostra o caminho da sala para nós preparada. A policial, que não falava nada, fica na porta, apoiando sua mão na arma. A proteger-me? A proteger-se? Ou para mostrar que há uma autoridade ali presente? Não sei.

Peço a cada uma delas que se apresente.

-Meu nome é Marli. Cuidado comigo, “não gosto de “bolo”.[1]

-Pode me chamar de Luzinete. “Estou de loja.” [2]

-Aquela lá é a Loiruda. “Ela é um sono”.[3]

-Ô Doidona, vem cá. Essa aí “Está em surto.”[4] Sempre.

Assim, uma a uma foram se apresentando. Quando as apresentações terminaram, já era hora de ir embora. No primeiro dia não teríamos muito tempo. Eu já sabia. Eu fui, mas deixei parte de mim naquela sala...

Os dias que antecederam a minha volta, foram de muita introspecção. Ensimesmei-me. Procurei dentro de mim, o que eu tinha de melhor a oferecer a elas. E levei comigo quando lá voltei.

Quando cheguei, já estavam me esperando. Eu tremia por dentro, mas sorri para elas como se nada estivesse acontecendo. Perguntei como gostariam que fossem nossos encontros. Disseram que gostariam de cantar. Cantar? Perguntei admirada. Sim, musicas de Igreja. Assim cada uma cantou um trecho de cada música que sabia. Eram músicas de várias religiões. Queriam que eu cantasse junto com elas. Algumas eu sabia, outras não. Vou aprender com vocês o que não sei. Ouço risadinhas. Deixo para lá.  Cantamos juntas, cantamos muito, braços ao alto a balançar ao som da música... Foi uma tarde gostosa. Houve interação entre nós. Mas eu precisava caminhar devagar, como se pisasse em ovos. Nem uma palavra, nem um gesto deveriam sair da linha traçada.

Voltei para casa com a sensação de ter cumprido minha proposta para aquele dia. Senti-me recompensada. “De bola cheia” [5], é o que elas diriam.

Mas no dia seguinte, perguntei-me o porquê de me sentir recompensada. Quem penso que sou? A mulher maravilha? Aquela que aonde vai tudo transforma? Pensei, repensei e percebi que estava deixando de lado minha consciência missionária, julgando-me melhor que aquelas às quais eu me propus ser solidária. Pedi então ao Pai, que me ajudasse a não me desviar do caminho a ser seguido. “Ensina-me o teu caminho, Javé e caminharei segundo a tua verdade.” Sl 88,11

Chegou novamente o dia de estar com “as meninas”. Lá fui eu... Desta vez percebi que elas estavam meio agitadas e perguntei se podiam me dizer qual a razão desse desassossego. Nada não, foi a resposta. Nada não. Perguntei se desta vez poderíamos conversar um pouco, se elas gostariam de falar de suas vidas. Ouço risadinhas. Deixo para lá. Algumas delas se afastam e vão tomar banho de sol, usando um top, para queimar mais um pouquinho. Falam alto palavras de baixo calão, como que a me provocar. Finjo que não ouço. Outras cruzam os braços e ficam a observar as que se dispõem a falar de suas vidas. Para a maioria, o pior de tudo na prisão é a solidão, o abandono que dói na alma, que não tem dia nem hora marcada para ser sentido. Chega na hora que quiser e dói, dói muito. “Segura na mão de Deus [...] Pois ela te sustentará.”

 Voltei para casa pensativa. Foi um dia tenso. Eu já tinha ouvido tantas histórias de vida. Mas aquelas eram contadas por mulheres enclausuradas, o que fez com que eu me sentisse um estranho no ninho da dor. E pensar que os que estão do lado de cá das grades, sem saber o que lá acontece, se arvoram tal qual juízes sem o ser. Mas quem sou eu para julgar o que é certo e que é errado. Deixo para quem de direito. Eu apenas sigo o caminho que escolhi.

Mais uma vez estou voltando ao presídio, sem saber como será o nosso dia. A julgar pelo azul do “céu de brigadeiro”, será ótimo.

Estávamos cantando, como sempre o fazemos antes de iniciarmos nossa conversa semanal, quando de repente ouvimos gritos e todos se alvoroçaram. Era briga numa das celas. Policiais aparecendo não sei de onde, dirigindo-se ao segundo andar, onde tudo estava acontecendo. A gritaria era terrível e eu estava no meio de tudo isso, sem saber para que lado correr e se devia correr. Vamos ser “emburacadas” [6], disse-me uma delas. Depois de um tempo que não sei precisar ao certo, tudo foi voltando ao normal. Disseram-me que o melhor que eu tinha a fazer era voltar para casa.

E eu voltei. Mas com a certeza de cumprir a promessa feita a mim mesma, a de voltar na semana seguinte e na outra e na outra...

 

Heloisa

3 de março de 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 


[1] Não gosto de bolo – Não gosto de confusão, de encrenca

[2] Estou de loja – Estou aguardando algum benefício para sair (falta de agilidade do advogado)

[3] É um sono- Pessoa que cria dificuldades, atrapalha os demais.

[4] Está em surto - Apresenta distúrbios mentais.

[5] Bola cheia – Pessoa maioral, que está com tudo. É o cara.

[6] Recolher as presas ao alojamento.