HERÓI OU VILÃO? NGUNGUNHANE, O ULTIMO IMPERADOR DE GAZA, EM UALALAPI (1987) DE UNGULANI BA KA KHOSA.

Claudio Silva Peixoto [1]

 

RESUMO: O presente estudo analisa a obra Ualalapi (1987), de Ungulani Ba Ka Khosa, uma metaficção historiográfica, no que concerne a vida de um personagem histórico, Ngungunhane (c. 1850-1906), o último imperador das terras de Gaza, na região sul do atual Moçambique, sob a perspectiva da teoria do herói (Kothe) e do anti-herói (Brombert). Nos onze anos do reinado dele (1884-1895), abordados na narrativa, há várias passagens que norteiam e definem o soberano africano, muitas vezes como um déspota e inclemente diante das situações diversas do seu reino, outras vezes, como um homem frágil. O autor moçambicano informa que, ele escreveu Ualalapi, por causa de uma politica de identidade coletiva criada na era do governo Samora Marchel (1983) que solicitou ao governo português os restos mortais de Ngungunhane, enterrado nos Açores, alegando ser o antigo imperador um herói nacional que lutou contra os lusos na época colonial. Ngungunhane um homem que ao longo dos anos disseminou o sofrimento e a dor o qual ao mesmo tempo se deixou manipular pelos familiares e por aqueles que estavam ao seu convívio. O último régulo de Gaza acima de tudo era um ser humano dotado de sentimentos e falhas as quais são inerentes a própria natureza humana.

PALAVRAS-CHAVE: Anti-herói. Herói. Ualalapi.

 

INTRODUÇÃO

                A obra literária Ualalapi, do escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, oportuniza aos leitores visões amplas, históricas e ficcionais, do imperador Ngungunhane, sob fortes comprovações documentais de pessoas próximas que de alguma forma  fizeram parte da vida dele, no final do século XIX: o português Ayres d´Ornellas e o suíço Dr. Liengne. E relatos de personagens irreais que viviam na corte:  Malule, Ciliane e o neto de Simapunga.

O escritor utilizou do contexto histórico real, a guerra contra Ngungunhane em 1895 e sua prisão no mesmo ano pelo oficial Mouzinho Albuquerque.

 O presente artigo tem como arcabouço as obras: O herói de Flávio Kothe (1987); Em louvor de anti-herói, de Victor Brombert (2004); Testemunha ocular: História e imagem, de Peter Burke (1937); e Metaficção historiográfica, de Linda Hutcheon (1991).

 

1- “METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA” (LINDA HUTCHEON) E HISTÓRIA E IMAGEM (PETER BURKE).

A escritora Linda Hutcheon, em seu livro Poética do Pós Modernismo (1991), discorre sobre a metaficção historiográfica, especificamente no capítulo sétimo em metaficção historiográfica: “O passatempo do tempo passado”. A autora revela que a história escreve sobre a realidade sob o ponto de vista da observação, os quais os textos do passado se relacionam com a ficção e se completam.

Hutcheon acredita que o modo de escrever e contar sobre o passado, não mais passa tão somente pelo viés de um simples romance histórico, mas por algo que possa ser questionado. Usa-se a história e o contexto histórico para fazer questionamentos e reflexões, se em tal fato existe veracidade ou não na história em suas muitas performances. A metaficção histórica se aproveita das verdades e das mentiras do registro histórico para inserir novos conceitos e alegorias, conforme a cultura e ideologia, para criar mecanismos dentro da narração que possa de forma ficcional, colocar em questão as verdades e mentiras:

A metaficção histórica, por exemplo, mantém a distinção de sua auto representação formal e de seu contexto histórico, e ao fazê-lo problematiza a própria possibilidade de conhecimento histórico, por que aí não existe conciliação, não existe dialética, apenas uma contradição irresoluta [...] No entanto desde, então muitos historiadores utilizam as técnicas da representação ficcional para criar versões imaginárias de seus mundos históricos e reais. (HUTCHEON, 1991, p.142).

Peter Burke (1937), historiador inglês,  em sua obra Testemunhos oculares:  História e imagem, revela que as imagens são importantíssimas para o entendimento da história, bem como para as formas de agir e de ser da sociedade. Segundo ele, as imagens são linguagens não verbais as quais podem traduzir fatos e acontecimentos tal qual um documento escrito. As mesmas não se traduzem apenas em apresentar períodos de uma época, mas simbolizam autenticamente os contextos sociais que elas foram produzidas por cada período da humanidade. Para Burke, “[...] as imagens, assim como textos e testemunhos orais, constituem-se numa forma importante de evidência histórica. Elas registram atos de testemunho ocular”. (BURKE, 2004, p.17).

2- TEORIAS DO HERÓI (FLÁVIO KOTHE) E DO ANTI-HERÓI (VICTOR BROMBERT).

A figura mítica do herói é algo que acompanha o homem desde os primórdios. Acentua-se com maior ênfase no período clássico (Grécia) o qual o herói situava-se em uma esfera intermediária entre os deuses e os homens  os quais os simples mortais veneravam outros mortais  “heróis” que através da bravura, honra, determinação , notoriedade, excelência, virtude e  coragem erguiam-se diante de si mesmos veneração e reconhecimento por parte dos homens.

O herói na era clássica tinha como objetivo proteger as pessoas da maldade dos outros, como se fosse um patriarca que prove as necessidades e protege sua prole dos maus feitores. Flávio Kothe, em O Herói (1987), discorre sobre as nuances que envolvem o protagonista, com exemplos de diversas obras literárias sobre a questão do herói e, sobretudo seu papel nas mudanças e sistemas de classes dominantes e dominadas nos contextos sociais.

Ele menciona que o herói é influenciado pelo sistema dominante da época, seja ele das classes mais abastadas ou das menos favorecidas socialmente. Na medida em que o herói identifica-se com a vida real, transmitindo aquilo que as pessoas sentem e almejam, ele se torna mais popular e grandioso, pois cria laços com seus fãs e admiradores.

Segundo Kothe (1987) a construção do herói dependerá da época e da visão da sociedade, bem como do poder da classe dominante: 

Tentar reproduzir a sociedade apenas seguindo a fachada construída pelos interesses dominantes seria desconhecer a sua estrutura interior, aos seus fundamentos e os mecanismos de acordo com os quais ela funciona. Torna difícil entender a tese sublime à trivialidade de direita, à medida que o alto se afirma como elemento elevado ás custas do rebaixamento do baixo. (KOTHE, 1987, p. 85).

               Kothe (1987) esclarece que o herói é classificado sob duas perspectivas:

 "O ‘alto' e o ‘baixo' da sociedade se operacionalizam e se entrecruzam de vários modos na literatura. Tendem a ecoar a natureza fazendo o alto aparecer como elevado e o baixo como inferior, mas isto corresponde à própria possibilidade de a classe dominante dominar ideologicamente a sociedade." (KOTHE, 1987, p.6).

 

O autor revela que existem vários tipos de significados do que seria o herói de fato. Para uns, um vilão, para outros, um herói, mesmo que ele tenha atitudes grotescas e até mesmo cruéis:

Não há grande obra de arte que não una os contrários. O herói trágico é um carvalho em que caem os decisivos raios do destino; o herói épico é o grande pinheiro indicador dos caminhos da história: nenhum deles tem a sabedoria dos caniços. O pícaro é o caniço que se dobra aos ventos para conseguir sobreviver. Nele o que pensa é o estomago. Ele tem a pouca dignidade daqueles que sempre têm o suficiente para comer, mas em sua dignidade sem indignação ele revela a pouca dignidade daquilo que pretende ser digno e superior na sociedade. (KOTHE, 1987, p.14). 

 

Para Kothe, a literatura destina-se basicamente para a classe alta o qual pressupõe que distorções de identidade e realidade no que concerne o ser herói poderá ser manipulada de forma a criar negatividade ou endeusamento do mesmo:

Se a parte mais elevada da literatura se destina basicamente à classe alta, então enquanto a parte mais trivial vai para a classe baixa, antão a literatura - como a narrativa em geral- desempenha fundamentalmente um papel de legitimar a estrutura vigente e de fazer com que ela funcione mais azeitada. (KOTHE, 1987, p.86).

 

Victor Brombert na obra Em louvor de anti- heróis (2004) revela uma série de questionamentos do que de fato seria o herói. Um deus? Semideus? Ou pessoas que em um dado momento da história tiveram que fazer escolhas que mudariam suas vidas e até mesmo o destino da humanidade? Os heróis do passado eram associados às figuras míticas lendárias, que estavam acima dos simples mortais. A sociedade conceitua o anti-herói como algo desprezível e sem bravura, tão pouco honra. “Anti-herói é amiúde um agitador e um perturbador” (BROMBERT, 2004, p, 15).

O anti-herói no sentido comum da palavra é o inverso do herói desprovido de bravura, honra moral e de feitos grandiosos. Carrega consigo o inverso do bem, mas por sua vez se assemelha naturalmente ao homem, um ser cheio de falhas e imperfeições. Para tanto, ele não é um ser bestial ou desumano, mas sim alguém que carrega em suas estruturas de formação humana características herdadaspelos sistemas sociais e culturais, aos quais foi submetido em determinadas eras:

Esses personagens não são totalmente “fracassos”, nem estão desprovidos de coragem; simplesmente chamam a atenção por suas características ajudarem a subverter, esvaziar o contestar de imagem do ideal. ((BROMBERT,  2004, p, 15).

 

Brombert questiona-se sobre os aspectos do anti-herói já que os mesmos são conceituados como fracos, incompetentes, humilhados, inseguros, descaracterizando-o de toda e qualquer bravura ou honra, mas por outro lado, eles são capazes de demonstrar solidez e uma força descomunal diante das situações.

3- MOÇAMBIQUE, DISPUTA DE PODER NOS TEMPOS DO ÚLTIMO IMPERADOR DAS TERRAS DE GAZA ( NGUNGUNHANE).

 

O Império das terras de Gaza, no reinado de Ngungunhane  abrangia, toda a área costeira entre os rios Zambeze e Maputo o qual a capital de Gaza era  Mandlakasi. Gaza está localizada autalmente  no sul de Moçambique. Ngungunhane governou a região por onze anos (1884-1895). Durante seu reinado, Moçambique era cobiçado por ter em suas terras grandes jazidas de diamantes e pontos geoestratégicos. Grã-Bretanha por sua vez tinha grandes interesses em se apropriar do comercio e de estratégias políticas em Gaza. [2]

Portugal e Grã-Bretanha disputavam freneticamente o poder para a conquista e dominação definitiva de Gaza o qual o governador da região intitulava-se Ngungunhane e agia sob  acordos com a Grã-Bretanha.

“Portugal por sua vez recebeu um Ultimatum em 1890 para deixar as terras de gaza” (SANTOS, 2007, P.163 e 168). Ngungunhane estreitava cada vez mais asrelações entre a Grã-Bretanha. De maneira independente fechou acordos e autorizou expedições em Gaza no ramo de minério de diamantes e permissão para condução ao mar. “Ngungunhane recebeu em troca pagamento de taxa anual como concessão e 1000 espingardas bem como munição, cerca de 20000 cartuchos”. (SANTOS, 2007, p.170). Contudo Portugal não concordou com as decisões tomadas por Ngungunhane em fechar acordos com seu rival inimigo e tomou medidas enérgicas para se livrar do último imperador de Gaza. Em 1895 o exército português pilhou e incendiou Mandlakasi, capital do império de Ngungunhane que foi detido e humilhado por Mouzinho de Albuquerque. (CABAÇO, 2009, p.64).

Em 28 de dezembro de 1895 Ngungunhane perdeu seu título e virou prisioneiro de guerra juntamente com seus filhos herdeiros, suas mulheres. Em Lisboa o ex-imperador desfila em cortejo nas ruas sendo xingado e observado pela multidão. Ngungunhane é exilado na Ilha Terceira dos Açores em Angra do Heroísmo em 1896 recebendo o batismo cristão o qual também foi alfabetizado. Em 23 de Dezembro de 1906 Ngungunhane morre de decorrência de problemas cardíacos em Angra do Heroísmo. Em 15 de junho de 1985 os restos mortais do último imperador das terras de Gaza é entregue em uma urna de madeira para a República Popular Moçambicana na era do governo Samora Machel (1985).

Ngungunhane era um imperador de condutas excêntricas e poder tirano seguia as tradições de seus antepassados para subir ao trono. Utilizou de forma violenta para a atingimento de seus objetivos, mandou matar seu irmão e herdeiro legítimo ao trono o qual Ngungunhane assume o poder e intitula-se rei das terras de Gaza (1884-1895).

 

 

4- NGUNGUNHANE: HERÓI OU ANTI-HERÓI

              Na obra literária Ualalapi de Ungulani Ba Ka Khosa o autor reuniu através do seu contexto literário uma série de apontamentos que dimensionam o personagem principal “Ngungunhane”, o último imperador das terras de Gaza o qual no período do governo Machel em Moçambique (1933-1986) o intitulou como herói nacional por ter enfrentado o poder colonial português na era de seu governo nas terras de Gaza (1884-1895).

A obra em si questiona a figura mítica do herói Ngungunhane. O último imperador durante sua trajetória realizou várias ações que o denota como um tirano, um rei cruel que em seu reinado provocou de forma maléfica vários sofrimentos e tragédias na vida das pessoas, tanto de seus inimigos como daqueles que estavam sob sua proteção, os súditos.

Com a morte do rei Muzila, o filho Mundungazi  se intitulou rei de todas as terras de gaza passando a ser Ngungunhane, o qual iniciou sua crueldade mandando matar seu irmão Mefamane, herdeiro legítimo ao trono. No discurso inicial o novo régulo diz:

O poder pertence-me. Ninguém, mas ninguém poderá tirar-mo até a minha morte. [...] Eu serei temido por todos, por que não me chamarei Mundungazi, mas Ngungunhane, tal como essas profundas furnas onde lançamos os condenados à morte! O medo e o terror ao meu império correrão séculos e séculos e ouvir-se-ão em terras por vocês nunca sonhadas! Por isso meus  guerreiros, aguçai as lanças. (KHOSA, 2013, p.23-24).

 

Ngungunhane assim como seus antepassados reinou sob a forma rígida e muitas vezes cruel. O autor da obra Ualalapi, utiliza-se de instrumentos e personagens da vida real de Ngungunhane introduzindo na narrativa de forma ficcional colocando em destaque a tirania do imperador. Nos tempos do império a figura do ser herói com as qualidades inerentes que lhes cercam ficavam cada vez mais distante do rei e o império caía cada vez mais em desgraça pelas más ações e condutas da família real. A obra Ualalapi demonstra uma série de fatos ficcionais ocorridos como forma de castigar os pecados dos Nguni:

Uma chuva amarela e pegajosa; o repentino aparecimento de cadáveres sem rosto e nome; o escoar do mênstruo de Damboia a manchar um rio e a matar os peixes, etc. Diante desses episódios sobrenaturais, Ngungunane se revelou um homem com dupla face: vulnerável e violento, de um lado, ele agia como um sonâmbulo emagrecido e, de outro, ordenou a seu comandante semear a dor e a morte e atacar os súditos chopes. (ROCHA, 2013, p. 23).

 

O autor coloca em destaque um capítulo acerca do que seria o filho herdeiro de Ngungunhane e o relacionamento para com o filho:

No episódio de O diário de Manua são contadas as adversidades do príncipe herdeiro que estudou no liceu de artes e oficio e retorna em navio para Lourenço Marques, em uma viagem na qual ocorreram assustadores e sobrenaturais eventos, pois ele ingeriu peixe, um alimento interdito pela sua etnia. Totalmente assimilado, o moço inicia a escrita de suas reflexões sobre o reinado despótico paterno e acentua que quando ascendesse ao trono, adotaria os costumes e práticas do homem branco. Na aldeia real, ele não consegue se adaptar, se torna um alcoólatra e é evitado pelo pai. (ROCHA, 2013, p. 23).

  Um dia o príncipe herdeiro após várias horas de gritos de loucura se cala para sempre. Pela manhã avisam ao rei que o filho herdeiro estava morto e o mesmo em sua indiferença ordena para que o enterre. Em seguida volta a dormir. No episódio final de Ualalapi o autor relata os últimos momentos de Ngungunhane mediante ao seu aprisionamento em 1895 pelo exército português.

              Em meio a sua prisão e vendo que jamais retornaria as terras de Gaza o imperador Ngungunhane faz seu pronunciamento final para seus súditos onde reuniu em sua fala  acontecimentos proféticos terríveis para aquele povo quem um dia foi governado por ele.

Segundo a obra Ualalapi, o imperador não tinha princípios nem honra tão pouco bravura, perfil dos heróis da era clássica, agia sob a visão tirânica e cruel de dinastia que obteve seu lugar de destaque através da imposição do respeito pelo medo e pela opressão. Mas é fato também que muitos heróis cometeram verdadeiras barbáreis em busca de honra e glória sendo cruéis para o atingimento de seus objetivos o qual a história lhes consagrou como verdadeiros bravos e destemidos no sentido mais sublime que existe. É importante dizer ainda que os homens são criaturas humanas dotados de erros e acertos, agindo sob perspectivas e banhados de pensamentos e ações pautadas pelas regras da sociedade que lhes persegue em dados momentos no tempo e no espaço.

              O último imperador das terras de Gaza foi mais um a exercer seu papel diante de tempos em que a tirania e a maldade assolavam a sociedade de forma mais enérgica. Em todas as eras a figura do bem e do mal se cruzavam colocando em questionamentos as formas de agir e de pensar no que concerne viver em sociedade partilhando de emoções e sentimentos dos mais diversos possíveis.

5 - UALALAPI, DE UNGULANE BA KA KHOSA.

A obra Ualalapi pode ser intitulada como uma novela, um drama, conto ou até mesmo como texto de ficção contemporânea por apresentar em sua obra contextualizações que permeiam os seguimentos literários acima citados como também ao mundo do imaginário ficcional. Contudo não se pode negar é que a obra sem dúvida vem trazer uma nova forma de se fazer contar a estória de maneira a introduzir novos mecanismos dentro da narrativa.

A narrativa escrita em ordem cronológica abrange testemunhos diversos: os verbais, contados pelo velho senhor, neto de Somapunga, membro da corte, e por Malule e Ciliane, antigos serviçais reais; e os escritos por funcionários civis e militares do governo português e por um médico suíço que são personagens históricas. Os textos ficcionais e históricos foram mesclados com excertos bíblicos e máximas sobre o último imperador de Gaza. (ROCHA, 2013, p. 18).

 

Ungulani Ba Ka Kosa é o pseudônimo dado ao autor Francisco Esaú Cossa. Professor e escritor de Moçambique é um dos nomes mais conhecidos no país por levar o nome de sua terra contextualizando de forma política e social as questões que envolvem seu povo. Nasceu na província de Sofala em 1957. Foi também um dos fundadores da  Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), o qual é membro. Recebeu prêmios de reconhecimento por sua notoriedade em fazer romances, contos e estórias. Ganhou vários prêmios literários inclusive em 1990 o qual  venceu o prêmio de ficção moçambicana com a obra Ualalapi e em 2002 pela mesma obra foi considerado um dos cem melhores romances africanos do século XX.

A obra Ualalapi foi publicada pela primeira vez no ano de 1987 em Maputo, intitulada fragmentos do fim:

A obra de Khosa, Ualalapi, visa tematicamente a questionação do passado e do presente, fazendo uma releitura das fontes históricas do século passado. O autor critica os poderes políticos, e tenta mostrar como a História pode ser mitificada para uso desses mesmos poderes. Por outro lado, há uma reflexão sobre a noção de cultura e identidade cultural, que é retrabalhada pela reabsorção de alguns modelos da oralidade e de uma  certa mundividência mágo-mítica. (Leite 1998:83).

Em seguida apresenta testemunhas oculares, fontes históricas da vida e personalidade do último imperador de Gaza. Ayres d’ Ornellas, retrata o imperador chefe de uma grande raça, fala ainda das características físicas do rei e finaliza descrevendo-o como homem inteligente com grandeza e superioridade. Fala ainda que o admira.  Em seguida Dr. Liengme, fala de Ngungunhane retratando- como um ser bestial, diabólico e horrenda quando se encolerizava.  Dr. Liengme finaliza dizendo que o imperador era um falso em suas políticas e que não se podia conhecer de fato a real intenção do rei devido sua duplicidade de agir e de pensar.

A obra é composta por 125 páginas sendo separadas em partes, denominadas fragmentos do fim 1 ao 6. Em fragmentos do fim (1), o autor fala do Ualalapi, nome de um dos guerreiros de confiança do imperador Ngungunhane. Relata ainda a morte de Muzila, pai de Ngungunhane e o  assassinato de Mefemane filho e herdeiro legítimo ao trono de Muzila.

Em fragmentos do fim (2) revela a morte de Mputa, um membro da guarda real que se recusou aos prazeres sexuais da primeira esposa de Ngungunhane sendo posteriormente acusando  de assédio sexual. A esposa do rei por sua vez  solicita ao mesmo a morte imediata de Mputa. A filha de Mputa, Domia tenta vingar-se do pai morto por Ngungunhane a qual defere um golpe de punhal na coxa direita do rei e o feri. Mediante a isso ele a estupra covardemente e manda em seguida executá-la.

Em Fragmentos do fim (3) relata o sofrimento de Damboia, tia do régulo. A mulher menstrua durante meses exaustivos sem parar e morre de hemorragia. No entanto estranhos acontecimentos ocorrem na região. Mortos aparecem sem nome e sem face; chuvas pegajosas caem sem parar e os peixes do rio morrem em decorrência do sangue menstrual de Damboia, o qual contaminou as águas do rio.  O cerco ou fragmentos de um cerco (4) revela a tirania e crueldade do imperador, sem justificativa alguma ele manda sitiar os chopes, e utiliza-se de estratégia de guerra militar de estilo europeia, o qual os chope desconheciam findando em massacre em massa dos chopes o qual o rei de Gaza sentiu-se feliz e regozijado com tamanha barbaria. Fragmentos do Fim (5) o diário de Manua filho herdeiro de Ngungunhane vem descrever a vida do filho do rei, que estudou e aprendeu modos europeus (Português), e sonhava em implantar cultura dos brancos em Gaza, contudo diante a indiferença e crueldade do pai o garoto se tornou alcoólatra. A loucura se fazia cada vez mais presente. Manua bebia e gritava, mas ninguém lhe o auxiliava. Em uma manhã acordaram Ngungunhane e disseram que o rapaz havia morrido e ele diz: o que? Responderam: seu filho Manua. O rei mandou enterra-lo  e depois voltou a dormir.

No último Fragmento do Fim (6) O imperador de Gaza vira prisioneiro de guerra pelas tropas portuguesas e em meio ao caos e incertezas do futuro e ao apupo da multidão faz seu último discurso já em navio português. Impropérios são lançados de forma profética sob as terras de Gaza.

O mal chegara aos Nguni devastando seu império tendo como cartada final o seu aprisionamento pelas tropas portuguesas. Chegara o fim do último imperador de Gaza onde mandaram-no sentar-se ao chão, coisa que o mesmo detestava, mas mediante a força imposta teve que ceder. Cansado, magro, sujo e desvalido de todas as forças e coragem Ngungunhane virava refém de seus inimigos e de si mesmo pela incapacidade de gerenciamento e de zelo por aqueles que eram considerados seus súditos.  De certa forma a obra Ualalapi traz uma humanização ao último rei de Gaza, por mais que o imperador tenha sido um tirano sem escrúpulos ele de certa forma foi manipulado pela família. Homem sem instrução no que concerne aos estudos, tão pouco afeto pelos seus antepassados os quais traziam consigo tradição de usurpação ao trono de forma violenta e sem qualquer ressentimento.

 Sem dúvida ele combateu as tropas portuguesas que queriam dominar as terras de Gaza, mas utilizou do trono de forma incoerente, maldosa, violenta e cruel. Teve seu papel na história o qual se faz necessário estudar sobre sua trajetória tornando a região de Gaza foco de vários estudos científicos e literários. Contudo é preciso analisar de forma imparcial sobre a vida de Ngungunhane. Ele foi um herói? um vilão? ou parte da história das terras de Gaza? De forma brilhante e precisa Ba Ka Khosa, remonta a estória onde os personagens dão vida real a um cenário longínquo da história onde o enredo a cada página emociona e transmite algo novo a revelar e a questionar sobre a vida e o período do último imperador das terras de Gaza.

CONCLUSÃO

              O escritor moçambicano, autor de Ualalapi intrigado com a política de enfatizar Ngungunhane como uma figura heroica resolveu estudar e pesquisar sobre a vida do último imperador das terras de Gaza, colocando através de testemunhas orais e documentais momentos da vida do régulo que tempos atrás viveu naquelas terras e praticou de forma cruel a matança e sofrimento para a vida de muitas pessoas, inclusive para aqueles que ele mesmo tinha o dever de proteger como rei.

              O principal foco da literatura em questão é o fato do governo Machel (1983) ter requisitado ao governo português os restos mortais de Ngungunhane justificando que o mesmo fazia parte de uma identidade nacional colocando-o como herói. É verdade que o imperador desafiou e lutou contra a opressão portuguesa, contudo não o coloca de fato como um herói nacional. A partir dessa colocação do governo Machel, Ba Ka Khosa resolveu utilizar de sua habilidade como escritor exímio para delatar e se fazer ouvir através da literatura moçambicana a verdadeira face do último imperador de Gaza.

              A narrativa introduz ainda elementos culturais e dialetos próprios da região o qual o autor quis aproximar os leitores do país, oportunizando-os uma leitura acessível para melhor entendimento do que o mesmo propusera em realizar. Para melhor entendimento e elucidação do contexto de Ualalapi  se fez necessáriobuscar outras fontes bibliográficas tais como: O herói de Flávio Kothe (1987); Em louvor de anti-herói de Victor Brombert (2004); História e imagem de Peter Burke (1937); Metaficção historiográfica de Linda Hutcheon (1991) dentre outros que puderam de forma ímpar trazer maior ênfase aos estudos e pesquisas.

              Desde os primórdios da humanidade têm-se a figura cruel dos déspotas. O bem e o mal se cruzam em todas as eras, colocando os homens face a face com seu lado mais terrível, fazendo-os compreenderem que não são plenamente bons ou completamente ruins. Todos carregam consigo uma carga enorme de imposições sociais e culturais formativas que se tornam automáticas as ações, confundindo-se com os sentimentos mais verdadeiros,        Ngungunhane sem dúvida foi um imperador de uma maldade sem precedentes.

              Muitos heróis também utilizaram da maldade para conquistar e erguer seus nomes na história da humanidade como alguém que fez um grande feito em detrimento de outro. Contudo os seres humanos são imperfeitos e como tal agem conforme seus instintos e sentimentos.

ABSTRACT: This study analyzes the Ualalapi work (1987), of Ba Ka Khosa Ungulani a historiographical metafiction, concerning the life of a historical figure, Ngungunhane (c. 1850-1906), the last emperor of the land of Gaza, in the region Southern Mozambique current, from the perspective of the theory of the hero (Kothe) and the anti-hero (Brombert). In the eleven years of his reign (1884-1895), addressed in the narrative, there are several passages that guide and define the sovereign African, often as a despot and inclement given the different situations of his kingdom, sometimes as a fragile man. The Mozambican author states that he wrote Ualalapi, because of a collective identity policy created in the government was Samora Marchel (1983) which requested the Portuguese government the remains of Ngungunhane, buried in the Azores, claiming to be the old Emperor a hero national who fought the lusos in colonial times. Ngungunhane a man who over the years has spread suffering and pain which at the same time let manipulate by family members and by those who were at his conviviality. The last régulo Gaza was above all a human being with feelings and.

 

 

KEYWORDS : Anti- hero. Hero. Ualalapi .

 

 

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______. Representações históricas e orais de Ngungunhame em Ualalapi (1987), de Ungulani Ba Ka Khosa. Revista Literatura em Debate, v. 7, n. 13, p. 17-33, dez. 2013.

 

SANTOS, Gabriela Aparecida dos. Reino de Gaza: O desafio português na ocupação do sul de Moçambique (1821-1897). 2007. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

 

 


[1]Aluno do Curso de Bacharel em Humanidades da Universidade da Integração  Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Redenção-CE. E-mail: [email protected].

Orientadora Dra. Denise Rocha (Instituto de Humanidades e Letras).

 

[2]Cerca de 1520, o povo Nguni, um ramo dos zulus, penetra no sul de Moçambique e coloniza os Chopes, os Tsongas, os vandaus e os bitogas. Sochangane, denominado mais tarde de Manukuse, se torna o primeiro rei de Gaza e morre por volta de 1858. Um de seus filhos, Mawewe, usurpa o poder que é reconquistado pelo legítimo herdeiro, Muzila, pai de Mundungazi (Ngungunhane), nascido em 1850. Este também consegue o trono de forma violenta. (PÉLISSIER, 2000, p. 119-128).