Greve dos Contos (1)
Publicado em 11 de junho de 2009 por Romano Dazzi
207 - GREVE DOS CONTOS
De Romano Dazzi
Hoje aconteceu-me uma boa.
Duas da manhã .
Estou eu sossegado, refestelado na poltrona favorita, quando ouço um burburinho na rua, bem embaixo da minha janela.
Não dou bola; passam por aqui muitos bêbados, a pé, depois que foram proibidos de dirigir; bom para a saúde deles e de suas possíveis vitimas.
Mas o murmúrio aumenta; espiando pela veneziana, vejo meus contos – sim, os meus contos! - reunidos, uns sentados na calçada, outros em grupinhos, de pé, ocupando quase a rua inteira, de lado a lado, falando cada vez mais alto.
Uma manifestação ! Fico surpreso; ou pior, chocado. Nunca esperaria isso de minhas criaturas. Os vizinhos já acordaram e vêm espiar, tontos de sono; querem saber o que está acontecendo .
Agasalho-me e saio no sereno, arriscando uma gripe. Deveres de Autor;
Assim como temos direitos, não podemos furtar-nos aos deveres...
De início, reajo;- “vão dormir, voltem amanhã, prometo que vou escutar tudo; mas não agora , assim, na rua, com esta umidade horrível, morrendo de sono como estou. Não quero briga, mas acho inconveniente o lugar, a hora, e se querem saber, até a arrogância, embora eu tenha apenas uma idéia, do que querem....”
Enquanto tento argumentar, dou uma boa olhada neles; são todos originais, manuscritos, velhos, novos e de meia idade; de resto, contos são como gente: uns baixos, magrinhos; outros altos, fortes, troncudos.
Há os leves e saltitantes, e os pesados, barrigudos, antipáticos.
Como em todo grupo, há os revoltados, os pacíficos, os filósofos; se ficaram unidos, devem ter algum motivo sério.
Mas todos são minhas criaturas, não posso deixar de escutá-los.
Finalmente um deles, o 019, um conto sério, triste, escrito num dia negro, atravessa a rua e vem me enfrentar.
–“Boa noite, Senhor Autor!” – me diz com a voz grave e um olhar de profundo desagrado –“Viemos aqui para reclamar suas providências. Como sou um dos mais considerados, represento meus colegas e falo em nome de todos.”
-“Gente! Mas o que é isso!!” Esta é uma revolução, um complô! Quem lhes deu autorização para saírem da Biblioteca e virem aqui, aborrecer o Autor e incomodar os vizinhos?”
Mas a minha reação só faz aumentar o barulho, tornando-o mais incômodo.
A vizinhança já abre as janelas e reclama, tentando fazer calar os contos mais agitados.
“Silêncio!” ordena o conto 019. - “Vamos primeiro explicar nossas razões e ouvir o Autor!” e dirigindo-se novamente a mim, continua:
- “O assunto é este: somos suas criaturas, produto de sua mente e do seu PC; fomos escritos, reescritos, corrigidos, peneirados, revisados, editados e impressos, apenas três cópias, numa HP; adquirimos assim vida própria; não somos apenas umas larvas em evolução.
Cada um de nós tem seu valor, sua personalidade.
Queremos entrar em ação!
Queremos ser impressos numa Heidelberg, refilados, encadernados distribuídos, comprados e vendidos; oferecidos, folheados, lidos, usados, comentados, criticados. Depois disso, podem até nos queimar.
Mas não se consegue lidar com o descaso; ser ignorado é pior que morrer; é um suplício, é a morte moral.
Alguns de nós tem dez anos de vida e ainda não viram a luz do dia.
Não somos como o vinho, que melhora a cada ano; nós somos frágeis, passageiros; quando ficamos empoeirados, ninguém quer saber de nós; se tivermos uma teia de aranha, então, somos descartados; somos lixo.
E depois que o senhor morrer, não vamos ter outra chance. Nosso destino está selado. Não sairemos nunca mais da prateleira, a não ser em caso de incêndio, ou de destruição sumária, por falta de espaço.
O senhor sabe que nós, na grande maioria, não somos levianos.
Temos conteúdo, assunto, até uma certa profundidade - pelo menos, alguns de nós.
Estamos revoltados, Senhor Autor. Exigimos suas providências. Caso contrário, vamos promover um panelaço! “
-“Calma, calma! “ digo eu, mostrando-me conciliador para ganhar tempo.
-“A sua luta é a minha luta meus amigos!” (Sinto-me um demagogo no palanque)
-“Prometo-lhes que vou estudar o assunto com carinho e encontrar uma solução – mas devem entender que ela não depende só de mim. Prometi e juro. Porém, agora voltem para o lugar de onde vieram e parem de incomodar os vizinhos. Vemo-nos amanhã. Boa noite! ”
“Estaremos aqui amanhã, a esta mesma hora, para decidir.” - conclui o 019, amuado. “Não falte! Se não.....”.
E tem mais cara de ameaça do que de promessa. Vai ser uma briga.
O que eu faço, agora?