GENEALOGIA DA MORAL: UM ESCRITO POLÊMICO

 

Contraditoriamente dedicado aos colegas da Turma de Teologia que, em fevereiro de 2002, iniciaram o curso no Seminário Santa Cruz, hoje, Instituto Santa Cruz, da Arquidiocese de Goiânia."Rodrigão", único que não leu a obra, hoje tem uma obra grandiosa na Paróquia Sagrada Família, no Setor Cidade Jardim, em Goiânia. 

 

0. Nietzsche (1.844-1.900) considerou esta obra um escrito polêmico que complementa e ilustra Para Além de Bem e Mal.

As três dissertações que compõem esta genealogia são, quanto a expressão, intenção e arte da surpresa, talvez o que de mais inquietante até agora se escreveu. Dionísio, como se sabe, é também o deus das trevas. -- A cada vez um começo 'calculado' para desorientar, frio, científico, irônico mesmo, intencionalmente primeiro plano, intencionalmente temporizador. Aos poucos, mais agitação; relâmpagos isolados; verdades bem desagradáveis anunciando-se ao longe com surdo zumbido -- até ser enfim alcançado um 'tempo feroce' em que tudo se lança adiante com tremenda tensão. Ao final, a cada vez, entre detonações terríveis inteiramente, uma verdade 'nova' se faz visível em meio a espessas nuvens. [...] (EH/EH, Genealogia da moral)

1. Inscrever-se na perspectiva de resgate das configurações morais que se efetivaram ao longo da história, buscando determinar o próprio valor da moral, caracteriza o empreendimento teórico de Nietzsche em Genealogia da Moral, percorrendo com outro olhar inusitadas questões o filósofo introduz uma hipótese histórico-interpretativa que lhe permite descobrir, como ele diz, o país da moral. Referindo-se àquelo que se oculta por trás das normas da tradição, a palavra descobrir remete ao objetivo de retirar as máscaras que encobriram o sentido e o valor da moral pela própria exclusão do exame dela. Ao centrar-se na interpretação, já que não existem fatos morais, apenas interpretações que são tomadas pelos filósofos que o antecederam como fatos, a análise nietzschiana vale-se do estudo filológico, etimológico, histórico e de uma psicologia da vontade potência a fim de mostrar a diversidade de interpretações manifestas na mudança de significação dos signos, uma vez que cada signo é uma interpretação introduzida. As transformações de significação indicam uma mudança no modo de valorar. A verdade, a universalidade, a essência, o ser e Deus são interpretações introduzidas pelo homem no mundo, convenções que referendam um modo de ser, que viabilizam uma dada existência. O percurso da história da moral registrada em textos antigos possibilita compreender o valor como algo humano, demasiado humano, em se considerando a descrição dos costumes como reveladora do modo de estabelecimento do valor e do tipo que a institui.

O valor ('Wert'), em Nietzsche, opõe-se à simples representação. De fato, não há divisão real entre o teórico e o prático: os valores são crenças interiorizadas que traduzem as preferências fundamentais de um tipo dado de vivente, o modo como ele hierarquiza a realidade fixando o que sente (equivocadamente às vezes) como prioritário, necessário, benéfico ou, ao contrário, nocivo. Esse trabalho de apreciação é o que o termo avaliação (Wertschätzung) ou estimativa de valor (Wertschätzung) destaca mais claramente. (Wotling, 2011, p.54-55)

2. Dedicando-se ao questionamento do valor da moral, a obra propõe uma mudança de procedimento, já que ao investigar dirige-se às interpretações e às avaliações introduzidas pelo homem para perguntar pelo valor delas, ou seja, qual o valor do juízo de valor bom e mau, qual o valor da moral? A questão agora se planteia em outro campo, pois as interpretações e avaliações são referidas à vida, em termos de sua apreciação ou depreciação. Em vista disso, há a necessidade de uma crítica à moral, visando decadente, um tipo desprezível como base dessa interpretação e avaliação. A crítica à moral requereu uma redefinição da própria crítica, exigindo outras bases, já que, na ótica do filósofo, a realização dela foi desde sempre comprometida, pela ausência de tematização do valor. Por isso, o autor dirá que Kant empreendeu uma defesa dos direitos do criticado, já que o objeto da crítica, seja ele o conhecimento ou a moral, não pôs em questão o próprio valor deles. Como indicativo da forma acrítica de proceder observa-se a definição do que seja bom, ou como aquilo que é útil, o que remonta a Bentham, ou como boa vontade, o que remete a Kant. Mas há algo em comum aproximando essas duas avaliações, pois, de um lado, ambas se propõem à análise do juízo bom e, de outro, mias profundamente, não perguntam pelo valor desse valor. Daí inferir-se que a moral, seja explicando o móvel da ação pela utilidade, seja a determinando como dever, está previamente fora de questionamento. Assim, as duas posições que seriam diametralmente opostas acabam por se aproximar. Em ambas está presente o elemento indiferente na determinação do valor: ou vale para todos, de modo que a utilidade para o maior número determina o valor, driblando-se a questão do valor do valor, ou vale em si, é por si mesmo absolutamente bom.                           

A referência à vida ('Leben') ocupa um lugar a tal ponto preponderante na reflexão de Nietzsche que alguns comentadores ficaram tentados a falar de "vitalismo" no tocante a ele. Trata-se, contudo, de uma qualificação inapropriada em sentito estrito. Seria mais correto dizer que seu pensamento é uma interpretação da realidade a partir de uma reflexão sobre a vida: ponto de vista inevitável, se admitirmos que toda realidade é perspectivista, interpretativa e que nenhuma interpretação pode fazer abstração das condições próprias ao vivente interpretante que a constrói. (Wotling, 2011, p.59)

3. Em Genealogia da Moral, a crítica principia necessariamente pela determinação de toda e qualquer formulação como valor, passando a perguntar pelo valor dele, pois existem valores a partir dos quais se avalia algo, mas existem interpretações e avaliações anteriores que determinam o valor desse valor. É justamente a ausência dessa compreensão que Nietzsche denuncia nas críticas que o antecederam. O crítico é o genealogista, aquele que pesa, que interpreta, que avalia e que, ao mesmo tempo, refere toda interpretação e avaliação à produção, isto é, às condições de criação, ao elemento que determina o valor, introduz-se, assim, a pergunta 'Quem?', ou 'O que quer?'. Quem postula esse valor? O que quer aquele que postula esse valor? Essas formulações fornecem àquele que interpreta e avalia, reporta-se a um tipo que organiza e dá forma à exterioridade através da postulação de sentidos e do estabelecimento de valores. Por isso, a pergunta pelo valor dos valores remete a um tipo, que, em Nietzsche, é determinado pelas relações das vontades de potência. Perguntar 'Quem?' é perguntar pela vontade de potência e, através disso, pela determinação do tipo que através dela quer. Noção central do pensamento de Nietzsche, a vontade de poder ('Wille zur Macht') só aparece sob essa designação bastante tardiamente, em Assim falou Zaratustra, considerando-se os textos publicados, precedida por algumas menções esparsas nos textos póstumos do fim dos anos 1870 e começo dos anos 1880 (na época do "Viandante e sua sobre e de Aurora, essencialmente). Ela não é uma forma de vontade no sentido que esse termo tem classicamente na tradição filosófica. 

A vontade de poder tampouco significa o desejo de dominação, nem a aspiração ao poder: essa leitura, feita pela psicologia empírica mais rasa, suporia uma clivagem entre o desejo, a aspiração e a vontade por um lado e seu objeto (visado) por outro, dualismo que Nietzsche recusa. Além disso, ela interpretaria de maneira reducionista esse poder como poder ou autoridade política, formas subalternas do verdadeiro poder, que é muito mais autodomínio. Por fim, ela indicaria genealogicamente o exato contrário do que pensa Nietzsche: a aspiração ao poder (que não se tem e não se é) na verdade traduz a seus olhos uma forma de fraqueza e de falta, ao passo que a fórmula de vontade de poder pretende significar a força superabundante. Dessa maneira, a vontade de poder não é busca de um atributo ou de um estado exterior a si, mas processo de intensificação do poder que se é. Por isso é que os dois termos extremos da perífrase devem ser lidos como um todo. (Wotling, 2011, p.61-62)

4. Romanos, judeus, cristãos, Napoleão são sempre tipos e esses são determinantes do interpretar e do avaliar. São dois tipos básicos que determinam o sentido e valor: o tipo senhor e o tipo escravo, que se distinguem pela constituição mesma de cada um, forças e vontades, que referendam um modo de viver e de apreciar, enquanto configuradores de interpretações morais, explicando a diferença em termos de construção. A existência de tendências morais distintas, moral de senhor/moral de escravo, explicita mesmo essa diferença, pois mostra a existência de duas formas de avaliação que, tomadas como um signo, um sintoma se referem, em termos nietzschianos, à condição mesma de uma vida. Se existe um tipo de vida ascendente e um tipo de vida em diclínio, a serviço de que tipo de vida se coloca a moral?

5. Nietzsche procede, ainda, à desmistificação de uma religião, de uma moral e de uma filosofia universais. A análise do passado da humanidade exclui terminantemente a universalidade, estabelecendo a singularidade como dimensão imperante, remetendo a postulação a um 'pathos', ao 'pathos', da distância, da diferença que a partir de si cria valores. A interioridade aparece como determinante, como movente e, portanto, como organizadora da exterioridade mediante a introdução do sentido e do valor enquanto vontades de potência, que vem a ser, em Nietzsche, impulso básico, afeto de comando, efetivar-se como base do agir, do interpretar e do avaliar. Nesse sentido, a crítica não se dirige ao falso conhecimento, à falsa moralidade, mas ao ideal de conhecimento, ao ideal de moralidade, perguntando pelo valor que eles têm; em que medida apreciam ou depreciam a vida. A diferença do estudo da crítica nietzschiana à moral reside no fato de o autor se colocar como o primeiro a se perguntar pelo valor das valores morais, deslocando a questão da transcendência para a vida, da projeção para o mundo. Os valores como signos, como sintomas provenientes de determinada avaliação, expressam uma perspectiva, um modo de ser e de viver que transparece como valor dos valores. 

Empregado a partir de Para Além de Bem e Mal, o conceito de 'pathos' da distância, ou sentimento de distância, indica uma característica de todo tipo de homem e de toda época forte e superior, que não apenas veem e estabelecem hierarquia por toda parte como também se sentem e se colocam a si mesmos na posição mais elevada. E, de fato, o próprio instinto para a diferenciação hierárquica constitui, no entender de Nietzsche, um sinal de superioridade característico de um tipo nobre de homem, que se distingue a si mesmo de um tipo de homem sentido como inferior, medíocre, comum, vulgar, plebeu. (Corbanezi, apud, Marton, 2016, p.332)

6. Remetida às condições de produção, a análise dos valores requer que se verifique o estabelecimento dos juízos de valor bom e mau/bom e ruim. Em vista disso, a primeira dissertação do livro ("Bom e mau", "Bom e ruim") tenciona vincular o interpretar e o avaliar aos tipos disjuntivos senhor/escravo. A partir disso, analisam-se as duas tendências morais distintas que se configuram historicamente como expressão de interpretações e avaliações divergentes, que têm nas condições de ascenção ou declínio das forças e explicação. Ao caracterizar o escravo como homem do ressentimento, Nietzsche mostra os efeitos que se processam como decorrência da anomalia das forças e o consequente efeito disso sobre a relação senhor/escravo que se manifesta na percepção do outro como responsável pela dor sentida.

Esses psicólogos ingleses, aos quais até agora devemos as únicas tentativas de reconstituir a gênese da moral -- em si mesmos eles representam um enigma nada pequeno; e é como enigmas em carne e osso, devo admitir, que eles têm uma vantagem essencial sobre seus livros -- 'eles são interessantes!' Esses psicólogos ingleses -- que querem eles afinal? Voluntariamente ou não, estão sempre aplicados à mesma tarefa, ou seja, colocar em evidência a 'partie honteuse' [o lado vergonhoso] de nosso mundo interior, e procurar o elemento operante, normativo, decisivo, decisivo para o desenvolvimento, justamente ali onde o nosso orgulho intelectual menos 'desejaria' encontrá-lo (por exemplo, na 'vis inertiae' [força da inércia] do hábito, na faculdade do esquecimento, numa cega e casual engrenagem ou trama de ideias, ou em algo puramente passivo, automático, reflexo, molecular e fundamentalmente estúpido) -- o que impele esses psicólos sempre 'nesta direção?' [...] (GM I/GM I, §1)

7. Compreender a transformação do senhor em escravo implica em uma investigação minuciosa da cultura. Daí a segunda dissertação ("Culpa", "Má consciência" e Companhia) principiar apresentando a eticidade do costume enquanto ação da espécie sobre o indívíduo, bem como a interposição de uma projeção entre o adstramento do homem e a posterior supressão dele, que torna o tipo doente. Para tanto, analisa-se a relação da responsabilidade enquanto ligada à dívida e à culpa, a fim de entender a dimensão da doença no homem: a má consciência como consciência da falta. Na base disso, está a proteção de uma vida decadente, tornando necessária uma psicologia da vontade de potência, visando a determinar as condições dela. É isso que aparece na má consciência, uma vontade de potência que, impossibilitada de expandir-se, se volta contra si, torturando-se e destruindo-se. Nas relações contratuais encontra-se a proveniência dos conceitos de culpa e dívida e a transposição da dívida para Deus, tendo por base a relação credor-devedor.

Criar um animal que pode 'fazer promessas' -- não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema 'do' homem? ... O fato de que este problema esteja em grande parte resolvido deve parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua de modo contrário, a do 'esquecimento'. Esquecer não é uma simples 'vis inertiae' [força inercial], como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar "assimilação psíquica"), do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou "assimilação física". [...] (GM II/GM II, §1)

8. É preciso inserir, nesse momento, a figura e a ação do sacerdote ascético como agente que viabiliza a projeção do Deus cristão e a consequente sublimação da crueldade. A análise da significação do ideal ascético é o tema da última dissertação (O que significam os ideias ascéticos?), que apresenta os artifícios desse ideal para a manutenção e preservação de uma vida decadente, sob a direção do sacerdote ascético. O ideal ascético é o substrato de toda metafísica, justificando a primazia da transcendência em relação à efetividade. Ele tem por base a sustentação da dualidade e, nesse sentido, manifesta-se em quaisquer construções que a referendem, seja através da religião, da moral, da filosofia ou da ciência. Logo, a necessária investigação da relação existente entre a filosofia e esse ideal, mostrando, de um lado, sua vinculação ao ascetismo e, de outro, a possibilidade de superação mediante o filósofo do futuro como médico, artista e legislador.

O que significam ideais ascéticos? -- Para os artistas nada, ou coisas demais; para os filósofos e eruditos, algo como instinto e faro para as condições propícias a uma elevada espiritualidade; para as mulheres, no melhor dos casos um encanto 'mais' de sedução, um quê de 'morbidezza' na carne bonita, a angelicidade de um belo e gordo animal; para os fisiologicamente deformados e desgraçados (a 'maioria' dos mortais) uma tentativa de ver-se como "bons demais" para este mundo, uma forma abençoada de libertinagem, sua grande arma no combate à longa dor e ao tédio; para os sacerdotes, a característica fé sacerdotal, seu melhor instrumento de poder, e "suprema" licença de poder; para os santos, enfim, um pretexto para a hibernação, sua 'novíssima gloriae cupido' [novíssima cupidez de glória], seu descanso no nada ("Deus"), sua forma de demência. [...] (GM III/GM III, §1)

9. Compreende-se, em Genealogia da Moral o sentido da filosofia a marteladas, destruidora de ideias e de ideais. À crítica nietzschiana cumpriu denunciar o ideal ascético na base da religião, da moral, da filosofia e da ciência e, desse modo, apresentar as consequências da vigência desse ideal enquanto negação da efetividade pela transposição do valor a outro mundo, e, como decorrência disso, a negação do homem e da vontade de potência. O filósofo do futuro deve ser um criador de valores, mas é preciso, primeiro, destruir as antigas tábuas de valor. 

 

Referências:

AZEVEDO, Vânia Dutra de. Nietzsche e a dissolução da moral. 2. ed. São Paulo, Ijuí: Discurso Editorial, Editora Unijuí, 2003.

MARTON, Scarlett. Genealogia dela morale: dalla premura didattica ai fini strategici. In: GIACOMINI, Bruna; GORI, Pietro; GRIGENTI, Fabio (orgs.). La genealogia della morale. Letture e interpretazioni. Pisa: ETS, 2015, p.29-53.

MARTON, Scarlett [ed. resp.]. Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016.

NIETZSCHE, Friedrich W. Para Genealogia da Moral: um escrito polêmico. In: Obras Incompletas. Seleção de textos Gérard Lebrun; Tradução e notas Rubens Rodrigues Torres Filho; Apêndice Antônio Cândido de Mello e Souza; Introdução (pesquisa) Olgária Chaim Ferez; consultor da introdução Marilena de Souza Chauí. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

___________. Genealogia da Moral: uma polêmica. 1. reimp. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

___________. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. 2. ed. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

WOTLING, Patrick. Vocabulário de Friedrich Nietzsche. Tradução Claudia Berliner; revisão técnica André Luis Muniz Garcia. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

 

STEIN, J. e CAMPOS, M. de D.