De segunda  a sexta, no período de aproximadamente 3 anos, minha rotina era levantar às 6  horas,  tomar um rápido café da manhã e ir para a Escola fundamental Sabóia de Medeiros, localizada  a cerca de 15 quarteirões, na Rua Américo Brasiliense.

Às vezes acordava um pouco além do horário apropriado e então tudo tinha que ser feito às pressas.  Tinha que me  arrumar, agarrar a mochila e as vezes sem tempo para o café, fora a pressa no caminhar e atravessar pelo menos 3 avenidas movimentadas, entre elas Avenida Vereador José Diniz,  Av. Adolfo Pinheiro e Av. Santo Amaro.

Tinha  entre 8 e 9 anos, quando este fato aconteceu.  Morávamos  no bairro Alto da Boa Vista, um endereço chique,  próxima a famosa Estátua do Borga Gato, com ruas  largas, arborizadas, calçadas  gramadas  e vizinhança internacional, principalmente alemães e seus descendentes.

Bem próximo a  nossa casa, havia um cruzamento  que não sei explicar a razão, apenas os macumbeiros de plantão  o sabem, era ponto preferido para oferendas o que chamávamos de despacho.    Na esquina havia um grande terreno baldio, portanto sem moradores para reclamar ou interferir com o trabalho das trevas.

 Era comum , no meu trajeto  para a escola, avistar no outro lado da rua  galinha preta morta, prato com farofa, velas coloridas, garrafa de cachaça , charutos, etc.

Obviamente, não sendo um expert em religiões africanas, tinha medo até de passar perto, pois diziam que se pisar, a macumba pegava.   Diziam que os despachos eram oferecidos para obterem algum favor, na área  sentimental,  econômica, etc.   Era coisa do sobrenatural, diziam.   Mas desde criança  me diziam que macumba era coisa do Diabo, embora seus praticantes neguem de pé junto que não, inclusive ficam  até  ofendidos.

 As oferendas deixadas naquele cruzamento nunca me chamaram a atenção,  porque  era algo que envolvia o mundo  espiritual desconhecido. Até então eu só sabia que Deus existia  pela boca de outras pessoas, e quanto ao Diabo tinha leve desconfiança que ele também existia.  Se as oferendas da macumba eram direcionadas a ele, ou a seus capangas, melhor era respeita-lo para evitar revides.  

Além disto, galinha  preta morta   me causava repugnância.  Se fosse assada, talvez eu mudasse de opinião. Para mim era um desperdício, matar uma galinha  para aquele propósito, enquanto muitos brasileiros só comiam galinha no domingo. Em São Paulo, geralmente com macarrão.

Cachaças, que geralmente era Tatuzinho ou Pitú, as mais baratas da época, também não era atraente.  Eu ainda não bebia.  E mesmo depois de adulto nunca entendi como uma pessoa  normal consegue beber o que o próprio nome já diz  tudo – água-ardente. 

Charutos também, fossem  previamente fumados ou não, parecia algo grosseiro. Na minha cabeça fumar charuto nunca foi chique.  As velas  coloridas também não serviam para nada, pois  usávamos em nossa casa apenas as brancas, para eventuais falta de luz , o que erroneamente dizíamos, pois era a falta de eletricidade que causava a falta da luz.   Quando a Eletropaulo era ainda Light,  ocorria  problemas no fornecimento súbito, pelo menos uma vez por mês. Ai entravam  em cena as velas abençoadas, que nos tiravam das trevas imediatas e nos dava um pouco de luz.

Como já foi citado, de vez em quando havia farofa num prato rustico de cerâmica.  Eu nunca teria coragem de  sequer experimentar a farofa do despacho, pelas razões já citadas,  questões de higiene, (sabe lá como  preparam?) e para  completar meus pais não eram nordestinos.  Farinha de mandioca ou farofa não eram alimentos prediletos em nossa casa.  Hoje, sou fã das farofas temperadas da Yoki.

Os despachos eram feitos em uma media de uma ou duas vezes por semana. Parece que o diabo não trabalhava muito naquele tempo. Hoje ele faz até hora extra para perturbar a vida dos seres humanos.

Nunca  soube quem eram os executantes (que faziam os despachos) pois faziam próximo da meia noite por questões numerológicas (12) ou porque era um horário divisor importante.   Nem sabia se haviam mandantes (pessoas que pagaram e patrocinaram aquelas oferendas),

Por volta da meia noite, geralmente em nossa casa estávamos dormindo. Não havia ainda Internet nem TV colorida.   A estas horas eu estava sonhando com os anjos, embora ouvisse  pessoas comentarem sobre mim -   Este menino é um capetinha!. 

Havia até uma música do período da jovem guarda  cujo refrão dizia -  Conheci, um capeta em forma de guri.  Embora não estivesse 100%  satisfeito e pleno acordo  com a  satírica comparação, minhas traquinagem (artes, como diziam), justificavam.

Pois bem, tudo foi apenas introdução. Vamos ao que interessa.   Numa dessas manhãs   com neblina intensa,  comum nos meses de inverno naquela região,  a caminho da escola, algo do outro lado da rua me chamou a atenção - uma linda caixa amarela.  Era  justamente  o local  preferido dos despachantes (Nada a ver com a profissão tão honrada).

A curiosidade  me fez atravessar a rua para verificar de perto, o que seria aquilo. Afinal era a primeira vez que via tal objeto no local.  Meus olhos quase saltaram das órbitas quando certifiquei que era uma caixa de bombons da marca  Garoto, sortidos, de 400 gramas.  Nunca havia encontrado algo semelhante, e não pude resistir a  tentação.   

Peguei a  caixa, coloquei rapidamente na mochila, afinal alguém poderia se escandalizar ao ver alguém roubando coisas que pertenciam ao Diabo.  Ele sempre tem   advogados na terra.  Como já ouvi  pessoas dizerem erroneamente  -  Deus  é bom, mas o Diabo não é tão ruim.

Durante o trajeto para a escola não resisti pegar a caixa e verificar a situação.  Parecia que estava intacta, embora não estivesse lacrada, como hoje as vendem. Escolhi logo o maior, não posso  dizer com certeza, mas deve  ter sido o bombom  Serenata de Amor.  Comi  com todo prazer, sem hesitação.  A seguir escolhi outro e um terceiro.

De repente um pensamento incomodou-me.  Se a caixa de bombons fora  uma oferenda para o Diabo,  teria sido  atrevimento  roubar sua propriedade, ou pegar sem pedir  autorização. Segundo os filmes de terror que assisti, a voz do Diabo era horrível.  Me arrepiava ainda mais os cabelos, só de pensar.

Depois outro pensamento me perturbou - E se e o bombom macumbado me prejudicasse?  E se provocasse uma dor no estomago e tivesse que ir para o Hospital? E se a macumba que foi direcionada a outra pessoa pegasse em mim?     Foram alguns questionamento que me fizeram parar de consumir os chocolates.

Preferi fazer uma pausa.  Comecei a pensar que destino teria o restante da caixa.  Cheguei à escola e após iniciar  a aula,  um  aluno viu a caixa e pediu  um bombom.   Ofereci sem hesitação, não por cordialidade, mas porque não me custara nada.   Pensei comigo, se eu ficar macumbado, ou passar mal, não estarei só nesta tribulação.

O problema que outro aluno  também quis e a professora parou a aula para verificar o que estava acontecendo.   Quando ela aproximou-se,   tentei  justificar que estava  apenas dando chocolates a outros alunos.  Sem pensar nas consequências, mostrei  a caixa para a professora e disse que podia escolher até dois, afinal ela merecia, não a macumba. Era uma professora atenciosa e simpática, de  35 anos aproximadamente.

Ela  meticulosamente revirou a caixa e encontrou dois de sua preferência.  De imediato abriu um, mordeu, fez uma cara, de quem recebe uma boa noticia, e após engolir a primeira remessa, perguntou-me:

- Davizinho,  hoje  é o seu aniversário?

- Nâo,  fessora, sou de outubro.

Ela devia ter parado o interrogatório.  

- Então qual a razão da comemoração?

Já que insistiu acabei por falar a verdade.

- Não estou comemorando nada.  Estava  vindo para a escola e achei num despacho de macumba perto de minha casa.

Foi uma míni bomba de Hiroshima que acabara de cair.  A professora colocou a mão no estômago,  mudou o aspecto, jogou no lixo o segundo bombom e foi apressadamente para algum lugar . Pensei comigo -  ou  foi para a sala da diretora reclamar ou para o banheiro, tentar   livrar-se da macumba.

Outros dois alunos  tambem manifestaram  pavor. Um deles correu em direção ao banheiro, não sei se teve êxito no  propósito.  A aula ficou suspensa por alguns minutos. Para  amenizar minha situação, mas com pena, joguei o que sobrou da caixa no lixo.

O termo  “capetinha”  não era  meu apelido oficial, mas apenas uma referência que  alguns adultos utilizavam para referir a minha pequena pessoa.    Não sei se  por  obra da macumba, mas pela  criatividade em   aprontar e infernizar a vida de alguns,  o termo prosseguiu por alguns anos. 

Depois que tornei um  adolescente,  confesso que melhorei  um pouco meu comportamento.  Quando  tornei-me jovem  regenerei de algumas maldades e aprendi que há limites e que brincadeiras de mau gosto  podem ter consequencias negativas e até trágicas. 

Aos 25 anos de idade entrei numa igreja evangélica e me converti a Cristo.   Como na igreja ensinavam que  quem está em Cristo,  nova criatura é, e as coisas velhas se passaram, pude então declarar ao Diabo e seus auxiliares.

 -  Você perdeu o cliente. Agora  estou à serviço do Rei.

Anos se passaram e nos mudamos para Cariacica,  na região metropolitana de Vitória,  capital do estado do Espirito Santo.   Soube  que a fábrica do famoso bombom  Garoto estava no município vizinho, Vila Velha.

  Os chocolates da Garoto continuaram a ser os meus preferidos, só que comprados, principalmente nas Lojas Americanas .   Quando  lembro das minhas aventuras da infância, época em que não tínhamos video game, tabletes ou computadores à disposição, inventávemos  nossa diversão. Tenho que concordar com a opinião de alguns adultos da época quando se referiam  mim:

  -  Que garoto perturbado!