"Fui indo... fui indo... fui indo..."
Publicado em 01 de março de 2013 por Carlos José Esteves Gondim
“Fui indo... fui indo... fui indo...”
Pele do corpo enrugada. Rosto mostrando rugas como uma rede dendrítica de rios secos. As marcas implacáveis do tempo. Olhar fundo e quase opaco. Gestos miúdos e explicativos. Ancas secas, pernas arqueadas. Lá está ela conversando. O tempo passado é o seu presente. Fala numa linguagem quase onomatopaica. Lembra o francês: “Fui indo, fui indo... fui indo...” Lembro-me do último apito de partida do último trem da Estrada de Ferro Belém – Bragança. “Fui indo... fui indo... fui indo...”
Paro, analiso, reflito: É a síntese extrema de uma situação que vem de algumas décadas atrás, assolando as cidades dos municípios do Nordeste Paraense, mais especificamente os da chamada região Bragantina e do Salgado (São Caetano de Odivelas, Curuçá, Marapanim, Maracanã, Bragança, etc.)
O pescado, que era o alimento básico dos moradores dessas cidades “fui indo... fui indo... fui indo...”. Os grandes caminhões frigoríficos vindos de outros Estados, ou os caminhões geleiros vindos da capital, encostam-se à beira do trapiche e o peixe passa rapidamente da canoa para o caminhão. Some aqui e aparece na capital, ou em Fortaleza, ou em outras cidades brasileiras... Sobra nada? Sim, sobram apenas os peixes de terceira e quarta categorias. O refugo. Estes serão vendidos para a população local.
As festas de terreiro. O carimbó artesanal. As vozes naturais cantarolando letras musicais esquisitas. A poeira subindo do chão de barro batido. “Fui indo... fui indo... fui indo...” Hoje a música mecânica. Os treme-terras infernais dominam a festa chamada dançante. Monstruosos decibéis de canções bregas e sertanejas invadem cada núcleo de cada uma das células humanas presentes. O corpo treme, o chão treme, literalmente. Terão eles a missão de alienar as mentes indefesas, porque incultas, das pessoas que buscam diversão? Seria a fabricação de robôs orgânicos através da destruição dos seus neurônios já enfraquecidos pela nutrição deficiente? “Fui indo... fui indo... fui indo...”
Desmancham-se casas, quintais e praças. Extinguem-se ferrovias (como a Estrada de Ferro de Bragança) sem ao menos examinar as causas dos seus déficits (como agora o fazem com a Empresa de Navegação da Amazônia, ENASA). O homem ribeirinho e o homem da terra firme ficam escravos dos senhores dos pés-de-borracha. E as cidades se tornam fantasmagóricas. A velha continua a falar sobre o passado presente. “Fui indo... fui indo... fui indo...”