“Fui indo... fui indo... fui indo...”                                             

                                               Pele do corpo enrugada. Rosto mostrando rugas como uma rede dendrítica de rios secos. As marcas implacáveis do tempo. Olhar fundo e quase opaco. Gestos miúdos e explicativos. Ancas secas, pernas arqueadas. Lá está ela conversando. O tempo passado é o seu presente. Fala numa linguagem quase onomatopaica. Lembra o francês: “Fui indo, fui indo... fui indo...” Lembro-me do último apito de partida do último trem da Estrada de Ferro Belém – Bragança. “Fui indo... fui indo... fui indo...”

                                              Paro, analiso, reflito: É a síntese extrema de uma situação que vem de algumas décadas atrás, assolando as cidades dos municípios do Nordeste Paraense, mais especificamente os da chamada região Bragantina e do Salgado (São Caetano de Odivelas, Curuçá, Marapanim, Maracanã, Bragança, etc.)

                                               O pescado, que era o alimento básico dos moradores dessas cidades “fui indo... fui indo... fui indo...”. Os grandes caminhões frigoríficos vindos de outros Estados, ou os caminhões geleiros vindos da capital, encostam-se à beira do trapiche e o peixe passa rapidamente da canoa para o caminhão. Some aqui e aparece na capital, ou em Fortaleza, ou em outras cidades brasileiras... Sobra nada?  Sim, sobram apenas os peixes de terceira e quarta categorias. O refugo. Estes serão vendidos para a população local.

                                               As festas de terreiro. O carimbó artesanal. As vozes naturais cantarolando letras musicais esquisitas. A poeira subindo do chão de barro batido. “Fui indo... fui indo... fui indo...” Hoje a música mecânica. Os treme-terras infernais dominam a festa chamada dançante. Monstruosos decibéis de canções bregas e sertanejas invadem cada núcleo de cada uma das células humanas presentes. O corpo treme, o chão treme, literalmente. Terão eles a missão de alienar as mentes indefesas, porque incultas, das pessoas que buscam diversão? Seria a fabricação de robôs orgânicos através da destruição dos seus neurônios já enfraquecidos pela nutrição deficiente? “Fui indo... fui indo... fui indo...”

                                               Desmancham-se casas, quintais e praças. Extinguem-se ferrovias (como a Estrada de Ferro de Bragança) sem ao menos examinar as causas dos seus déficits (como agora o fazem com a Empresa de Navegação da Amazônia, ENASA). O homem ribeirinho e o homem da terra firme ficam escravos dos senhores dos pés-de-borracha. E as cidades se tornam fantasmagóricas. A velha continua a falar sobre o passado presente. “Fui indo... fui indo... fui indo...”