Filosofia do cotidiano e a Popozuda

Piri, Pipiri, Pipiri, Piri, Piriguete; lepo lepo; é o tham; tiririca; lapda na rachada; bonde do tigrão; tche tche rere tche  tche rere tche tche rere tche tche rere tche tche tche tche; calcinha preta; Vem ni mim Dodge Ram Focker 280; calipso; popozuda; psirico; ... isso é só para mencionar alguns exemplos da riqueza na linguagem musical dos últimos tempos. Tem muito mais. Nem me recordo de todos. Aliás, a maioria nem conheço. Mas não é necessário!

Do ponto de vista da linguagem a criatividade é crescente. E não é de hoje. Quem não se lembre daquela marchinha chamado a atenção para a “cabeleira do zezé”? E o “Trêm das onze” fazendo: “Quaz, Quaz, Quaz Quaz, Quaz Quaz, Pascarigudum, Pascarigudum, Pascarigudum...”? Ou então “a fonte a cantar chuá, chuá e a água a correr chuê, chuê”? Na realidade são muitos os exemplos... desde antigamente... até hoje!

Aliás, tem uma música inteirinha só com palavras e sons estranhos para nosso ouvido comum. Entretanto ela é plena de significados dentro de uma proposta e releitura nacionalista. É um símbolo de resistência ou provocação para redescobrirmos o Brasil. Trata-se de “Querelas do Brasil” de Maurício Tapajós e Aldir Blanc e imortalizada por Elis Regina. Depois de afirmar que “O Brazil não conhece o Brasil” e que “O Brasil nunca foi ao Brazil”, vem uma sequência da palavras, aparentemente incompreensíveis e sem sentido. Analise aqui comigo a primeira estrofe: “Tapir, jabuti, iliaana, alamanda, ali alaúde, piau, ururau, aki ataúde, piá-carioca, porecramecrã Jobim, akarone, jobim-açu. Uou, uou, uou. Pereê, camará, tororó, olerê. Piriri, ratatá, caratê, olará”.

Preste bastante atenção e dê asas à imaginação. Você verá que não se trata de algo incompreensível. É só um discurso nacionalista mostrando como nós, os brasileiros, desconhecemos o Brasil; pior: estamos perdendo nossa identidade para nos tornarmos prisioneiros abobalhados por uma cultura alienígena.

Meu propósito com este texto, entretanto, não são as musicas, mas a prova.

Só quis demonstrar, inicialmente, que ao longo de quase um século de música brasileira os autores brasileiros sempre foram irreverentes e criativos. Ou você acha que cantar: “olha a  cabeleira do Zezé. Será que ele é? Será que ele é” não foi uma provocação irreverente, para a época? Portanto, a irreverência nas letras das músicas é sinônimo de criatividade. Ao longo dessas décadas perdemos muito em profundidade, mas não perdemos a criatividade irreverente. E, inclusive, nos dias atuais as letras das músicas podem ser “uma porcaria” do ponto de vista da profundidade ou do discurso político, ou da proposta de autonomia cultural. Mas não podemos negar que a irreverência e o deboche permanecem. E tem muita gente que – criativamente – descobriu como ganhar dinheiro com isso: explorando o duplo sentido!

Talvez também por esse motivo – e não somente para protestar contra o apelo comercial das músicas descartáveis – foi que aquele professor de filosofia tenha elaborado aquela questão com aquele enunciado: “Segundo a grande pensadora contemporânea Walesca Popozuda, se bater de frente: a) é só tiro, porrada e bomba; b) é só beijinho no ombro; c) é recalque; c) é vida longa”. Não perguntei a ele. Só estou imaginando o que ele pode ter imaginado que poderia desafiar seus alunos pensarem ao analisar sua proposta. Mas a falta de reflexão parece que levou o pessoal a condená-lo impensadamente...

Creio podermos assegurar que a polêmica se fez não por causa da violência que perpassa nossa sociedade – retratada na música; também não foi por causa da bunda grande da Popozuda; nem porque a bunduda é mulher loira. Nada disso! A polêmica se fez por causa do “pensadora”. Grande ela já é, afinal popozuda significa bunda grande. Também é uma cantora contemporânea, pois vive entre nós. É loira e mulher. Mas nada disso entra na discussão.

Portanto a polêmica vem do “pensadora”. Mas, se pensarmos bem, essa característica também não cabe discussão: ela é uma pensadora, pois é gente e gente é gente, também por ser capaz de pensar. Não somos “animais racionais”? Apesar de Dom e Raval, no tempo da ditadura, terem cantado que “nós, os homens, somos todos meio animais irracionais”.

Em síntese: O fato é que condenar a criatividade é falta de criatividade.

neri de paula carneiro

mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

rolim de moura - ro