Festa junina é cultura

Nossos hábitos culturais mudam com o tempo ou sempre mantemos a mesma cultura que herdamos de nossos pais e antepassados? Ou, usando categorias da antropologia: a cultura evolui ou permanece sempre a mesma? Em nossos dias ainda acontece o fenômeno do difusionismo cultural?

Você pode até não se interessar por antropologia, mas tenho certeza que sabe que festa junina é uma festa realizada no mês de junho e que se caracteriza, entre outras coisas pelas suas comidas típicas. E também já sabe que numa festa junina as principais comidas típicas são: batata doce, pipoca, amendoim, canjica, pé de moleque.... e cachorro quente; e que a principal bebida é o quentão... a cerveja e os refrigerantes...

Bom a festa junina é junina porque ocorre em junho. Algumas tradições dizem que veio de Portugal como festa joanina, para homenagear d. João VI. Mas não acredito muito nisso. Creio mais na versão ligada às festas das colheitas, tradição muito mais antiga e presente em quase todos os povos antigos. Algo como os bacanais e as dionisíacas, entre os gregos e romanos. Antes deles os hebreus já celebravam a festa do pão ázimo (sem fermento) que era o primeiro pão da colheita nova, depois de se jogar fora o antigo fermento que não deveria contaminar o novo pão da nova colheita.

É claro que com o desenvolvimento do cristianismo a festa junina ganhou os contornos das homenagens a santos muito populares: Santo Antônio, São João e São Pedro (comemorado junto com São Paulo). Festas celebradas justamente no mês de junho.

Sendo um festejo popular, sempre aglomerava gente; e gente come muito, quando se reúne. Ai não deu outra: começou-se a usar o que se tinha de mais abundante: milho, batata, mandioca... E para beber? Pinga. Não esquecendo que este é um festejo rural, em sua origem. Nós, da cidade, nos apropriamos porque somos festeiros. Mas se observarmos as comidas, bebidas e os trajes juninos, veremos que tudo isso é indicativo do universo rural.

A pinga (ou a Cachaça) era o principal ingrediente do quentão. Como a cachaça embriaga logo e a intenção é manter a festa pela noite a dentro, criou-se a mistura que deu mais sabor e amenizou a cachaça: água, cravo, canela, gengibre ingredientes que amenizaram a cachaça e deram ao quentão um toque afrodisíaco (de Afrodite, divindade ligada aos bacanais, por causa da beleza e da luxuria). Essas comidas típicas (milho, batata, e outros como o pinhão, nos estados do sul) nos remetem às festas das colheitas, dos povos antigos, quando se agradecia aos deuses pelas bençãos da terra e se pedia proteção para a próxima safra.

E o casamento caipira, das festas juninas? Faz parte da ideia de fartura. As famílias do mundo rural não têm salário. Sua renda é sazonal, com pico forte no final da safra, quando se vende a produção e quando se tem mais fartura. E não se casa um filho sem dinheiro e fartura. Portanto os casamentos das famílias rurais ocorriam quando essas famílias tinham fartura, no tempo das colheitas.

Do casamento regular e normal para esse teatralizado foi um passo curto. E, é claro, depois do casamento, a festa … muita dança e … quadrilha. Esta, sim, legitimamente francesa e cortesã. A quadrilha foi incorporada à festa junina vinda diretamente dos salões de festa da corte francesa. Tanto que, nas festas mais tradicionais, ainda se ouve o nome de alguns passos da quadrilha sendo anunciados num francês acaboclado.

Nestas alturas você deve estar se perguntando? Por que se disse, na lista das comidas tipicas que o cachorro quente, cerveja e refrigerante são típicos dos festejos juninos? Na realidade ainda não são. Mas estão se transformando. Não o cachorro quente e a cerveja se transformando em outra coisa, mas sendo transformados em comidas e bebidas típicas das festas juninas da cidade, das escolas... onde o objetivo não é a preservação da cultura, mas agrupar um grande numero de gente para comer... comer... beber... beber e dar lucro para a organização da festa que sempre tem um fim social para o dinheiro.

Então refazendo a afirmação. Cachorro quente e cerveja não são comidas típicas dos festejos juninos. Não daqueles genuinamente juninos e rurais, mas estão sendo incorporados nos festejos juninos que ocorrem nas cidades. Não para preservar uma cultura, mas para produzir outra. Não para celebrar a gratuidade da natureza que produz os frutos da terra, mas para se curvar ao capital que nos obriga a transformar elementos de nossa cultura em coisas a serem comercializadas. Não fazemos mais festas juninas para celebrarmos nossos deuses e nossos santos, mas para nos curvarmos ou novo deus, o capital.

Então, se daqui a cem anos alguém for fazer uma cronica como esta, comentando as festas juninas que acontecerão em 2113... ou daí pra frente, fará a lista das comidas tipicas da festa junina com o cachorro quente, a cerveja e o refrigerante. E assim se confirmará o difusionismo e a evolução da cultura. É o caráter vivo e dinâmico da cultura, que se preserva porque se renova...

E, como estamos terminando o mês de maio, que venha junho e todas as festas juninas.

 

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO