Felícia

A casa da costureira Felícia vivia sempre cheia de freguesas. Ela era a única costureira no São Diogo e isso facilitava muito seu trabalho. As mulheres daquele sítio levavam tecidos para a mesma fazer seus vestidos e também levavam as roupas dos maridos para serem remendadas e cingidas.  O dinheiro que Felícia ganhava dava para ajudar o marido Calisto nas despesas da casa.

Aquela era a década de setenta. Felícia era uma mulher de trinta e oito anos de idade, estatura média, pele branca, cabelos curtos  e o olhar sereno. Casou com Calisto aos dezessete anos, foi um casamento ajeitado pelos pais de ambos, porém, com o tempo ela aprendeu a amá-lo e mesmo ele sendo um tanto ignorante e sem paciência, a costureira sabia como ninguém tolerá-lo.

Calisto brigava muito com a esposa, sobretudo porque não queria que ela costurasse para fora, mas nunca lhe agrediu fisicamente. Eles tinham três filhos, duas meninas, uma de quinze anos e outra de treze, além de  um menino de um ano de idade, que era adotado.

Calisto sempre quis ter um filho homem, ele dizia que era para ajudá-lo quando crescesse. Quando veio a primeira filha, o mesmo ficou decepcionado, no entanto, tinha muitas esperanças nas próximas gravidezes da mulher, quando ela teve a segunda menina, ele continuou triste, mas ainda era otimista e esperava que Felícia lhe desse um homem, entretanto, Felícia nunca mais conseguiu engravidar ou devido a problemas no organismo ou por uma peripécia  do  destino. Então, Calisto adotou um menino. Assim que ele nasceu num hospital em Sousa, o marido de Felícia o pegou   e trouxe para seu lar.Tanto ele quanto a mulher tinha aquela criança como um verdadeiro filho. E as meninas adoravam o irmãozinho, principalmente Marileusa, a mais velha, que era muito apegada ao menino. Ela dava-lhe banho e comida, além de colocá-lo para dormir. Como Felícia não tinha tempo, era Marileusa sua mãe.

Calisto nunca quis que a esposa costurasse e depois que adotou João, não parava de reclamar e brigar para ela abandonar o trabalho e cuidar mais do filho. No entanto, Felícia resistia e não abandonava suas costuras.

O marido de Felícia era marchante. Um dia, quando ele voltou da matança,  não encontrou o almoço feito, porque sua mulher tinha recebido muitas encomendas e sua manhã tinha sido bastante cheia, enfurecido com isso, Calisto puxou a faca peixeira da cintura e quebrou a agulha da máquina de Felícia. Esta, nem chorou e nem brigou, apenas levantou-se da cadeira e foi para seu fogão providenciar a comida. As freguesas não presenciaram essa cena grotesca, já que tinham ido embora.

Quando a costureira fez o almoço e colocou na mesa, Calisto por birra e pirraça não quis almoçar e voltou para a matança.

_Calisto quebrou a agulha porque não encontrou o almoço pronto. Costuras agora só amanhã ou depois, quando alguém for a Sousa e eu mandar comprar uma agulha nova. Disse a costureira a suas freguesas, quando elas estiveram lá à tarde.

_Amanhã eu irei à cidade, posso trazer a agulha. Disse Marisa, uma das freguesas.

_Que bom, então fica certo. Disse Felícia contente.

As freguesas não estranharam a situação pois já eram acostumadas, seus maridos também eram os carrascos de suas vidas.  E naquele sítio era bastante natural o homem maltratar a mulher.

No dia seguinte, depois que a freguesa comprou a agulha, as costuras de Felícia voltaram ao normal. Aquele trabalho era sua vida e seu refúgio, por isso, ela costurava feliz. A partir daquele dia, ela não atrasou mais o almoço e conseguiu conciliar a costura com o serviço doméstico. Tudo ia ocorrendo muito bem, até que um dia, Felícia esqueceu  de colocar o sal no arroz. Quando o marchante foi almoçar e o arroz estava sem sal, mais uma vez, ele quebrou a agulha com a faca. Era uma situação que se não fosse deplorável, seria cômica. Depois desse episódio, Felícia não comprou mais as agulhas, as freguesas passaram a comprar e levá-las. Quando terminava a costura de cada uma, elas recolhiam as agulhas e levavam para que não fossem destruídas por Calisto.

_Ele pode agir como for, eu não deixo de trabalhar. Dizia Felícia.

Dias depois, seu filho ficou doente. Ele estava muito pálido, não comia nada, passava à noite sem dormir e chorava muito. Marileusa se desesperou, vendo o sofrimento do irmãozinho, que para ela era como um filho e então não parava de chorar. Felícia teve que cuidar de João e de Marileusa e parou de trabalhar. Quando as freguesas chegavam lhe encontrava abatida e preocupada com a doença de João e a melancolia da filha. Ela pedia que as mulheres deixassem as roupas, que um dia quando o menino melhorasse, ela costuraria.

_Por um marido a gente não abandona nada, mas pelos filhos deixamos qualquer coisa para trás. Dizia ela.

_E o que essa criança tem? Perguntou Marisa, sua freguesa.

_Não sei. Amanhã eu e Calisto vamos levá-lo a um médico. Espero que não seja nada grave.

_Já vi um caso assim e o menino...

_Não fale mais Marisa, veja Marileusa. Disse Felícia apontando para a filha que estava beijando a criança e chorando.

_Desculpe. Disse Marisa.

Calisto estava muito triste com a doença de João e culpava a mulher por ter descuidado do filho. Ele achava que se Felícia tivesse deixado trabalhar para cuidar da criança, isso não estaria acontecendo. Felícia sofria muito com essa acusação do marido. Ela amava João e se soubesse que ele ficaria doente, teria largado a costura.

No dia seguinte, ela e o marido foram à Sousa consultar o menino. Marileusa ficou em casa numa angústia imensa, abraçada as roupinhas do irmão.

O médico disse aos pais do menino que ele estava com uma forte anemia, quase crônica. E receitou-lhe alguns remédios, mas não deu esperanças. Naquele tempo, a medicina era atrasada, sobretudo no Sertão e ainda não tinha tido avanços.

Felícia e Calisto chegaram em casa completamente tristes e deprimidos. Eles esconderam de Marileusa a real situação de João. Mas esta apesar da pouca idade, percebia que a doença dele era grande. Ela não via mais no menino o sorriso de antes, nem o olhar alegre e esperto. Marileusa percebia através dos seus olhos tristes, como ele estava sofrendo com aquela doença. Ela queria poder fazer alguma coisa para tirar o irmão daquele sofrimento, no entanto, não sabia como. Era muito doloroso ver o menino naquele estado. A filha de Felícia já não se alimentava direito, nem dormia, pensando em João e com medo que ele morresse. Seu coração estava partido. Ela já não suportava mais vê-lo sofrer.

Felícia conversava com a filha e dizia que ela tivesse força e fosse corajosa naquela situação, porém, era em vão, a menina só abatia-se. Era difícil para Felícia ser forte naquele momento, mas tinha que ser,  para consolar Marileusa. Quanto a Calisto, este ficava pouco tempo em casa, ele preferia ficar na matança, assim  poupava-se de ver o filho sofrendo. Para ele também não estava sendo fácil.

As freguesas de Felícia estavam solidárias com a mesma e iam  a sua casa, confortá-la e visitar o pequeno João.

_Tenha fé em Deus. Dizia uma delas.

_Tenha paciência. Dizia outra.

_A vida é assim mesmo, cheia de fatalidades. Dizia Marisa.

_Agradeço a todas vocês, que estão sendo muito amigas, nesse momento. Disse Felícia.

Os medicamentos não surtiram efeito e o choro de Marileusa não deu jeito, João morreu e virou “anjinho”, como costumavam  dizer lá no São Diogo. Naquela década morreram muitas crianças naquele sítio. Felícia e Calisto sofreram muito, porém, não mais do que Marileusa, esta quase morreu também. Ela caiu numa profunda melancolia, não se alimentava, não dormia e passava a maior parte do tempo deitada numa cama, com os olhos fixos no nada. Sua irmã queria aproximar-se para conversar, mas não tinha jeito, sua mãe chorava implorando para ela tomar uma colher de caldo, seu pai lhe repreendia por ela não reagir. Entretanto, a menina parecia não ouvi-los. Marileusa não conseguia superar aquela perda. João foi muito importante na sua vida, que agora estava vazia.

_Eu não deveria ter permitido que essa menina cuidasse do irmão. Ela se apegou demais e agora vai enlouquecer. Dizia Felícia desesperada com o estado de choque da filha mais velha.

_A culpa é sua sim e eu bem que avisava para você largar as malditas costuras. Dizia Calisto.

_Como eu poderia adivinhar?

_Teimosa! Dizia Calisto.

Os dias e os meses iam passando e quando Felícia e Calisto acreditando que a filha havia enlouquecido, já estavam conformados, um dia, Marilusa acordou e disse:

_Quero seguir, quero ser feliz e viver a vida. Ajudem-me a vencer essa tristeza!

Felícia nem acreditou no que ouviu, parecia até um sonho. Sua alegria foi imensa. Ela correu abraçar a menina entre verdadeiras lágrimas de felicidade, dizendo que a amava e que iria ajudá-la a enfrentar aquela dor. Saber que a filha não havia ficado louca era maravilhoso, para aquela mãe que se sentia culpada pela situação que a menina enfrentava.

Quando Calisto voltou da matança e viu a filha recuperada também sentiu uma alegria muito grande, mas tentou disfarçar, para preservar sua imagem de “homem forte”.

Felícia voltou a costurar e sua casa voltou a ser alegre. A velha máquina de costura retornou ao trabalho e o coração da costureira voltou a ser feliz e tranquilo. Ela pensava em João todos os dias, lembrava-se dele como um anjo que passou em sua vida.

Marileusa tornou a ser quem era e logo começou a namorar. Todavia, jamais tirou o irmão do coração e lembrava-se do mesmo sem tristeza, somente com saudade.

As freguesas continuaram assíduas naquela casa. Quanto a Calisto, este continuou quebrando as agulhas.

Maria do Socorro Abrantes Sarmento.