Desculpa se eu te atrapalhei enquanto você tentava viver a sua vida, juro que não foi a minha intenção. Eu nunca quis ser só mais uma distração, um passatempo, eu só estava aqui perdida, fazia tempo que não sabia o que era viver e quando vi sua porta aberta, eu apenas entrei, de verdade, não foi minha intenção te atrapalhar. Eu estava há anos vagando pelos corredores escuros, as vezes espiava a vida pelo buraco da fechadura, é eu sei que isso é feio, eu não deveria fazer, mas os corredores são tão escuros que quando eu via luz vindo da fechadura, sentia o calor que ela transmitia, que eu achava que não haveria problema espiar.

 Algumas pessoas até me convidavam para entrar de vez em quando, mas nunca por muito tempo, nada muito profundo, acho que elas só estavam me fazendo um favor, ou elas sentiam o frio passando pelas suas fechaduras e quando abriam a porta e me viam, me convidavam para entrar apenas por educação ou talvez para reservar seu espacinho no céu. O problema é que quando eu menos imaginava, era colocada para fora e só me restava olhar através da fechadura novamente. Essas fechaduras eram as mais tristes para mim, porque eu sabia que havia vivido um pouco daquele calor, daquele amor e que nunca mais iria desfrutar daquilo. Outras vezes eu tentava abrir algumas portas, vai que por descuido alguém tivesse esquecido de trancar. Nesses casos eu só entrava para me aquecer e não morrer de frio, mas sabia que aquilo duraria apenas uma noite, mas apesar disso eram abraços aconchegantes. Sair dessas portas não era ruim, muito pelo contrário, me sentia bastante privilegiada por poder ter tido a oportunidade ou sorte de ter entrado por aquela porta.

 É bem difícil ficar sozinha nos corredores, apenas observando pelas fechaduras, as vezes uso meu próprio sangue para me aquecer, e também para me lembrar que eu ainda estou viva.

 Ás vezes eu penso que só me resta as cicatrizes de viver no escuro.

 Um certo dia, ou melhor, noite, estava vagando como sempre pelos corredores, passando a mão nas portas, sentindo a viva sendo deixada escapar um pouquinho pelas fechaduras, que percebi sua porta aberta, no início achei que era só mais uma pessoa querendo fazer uma boa ação ou que era uma pegadinha e que quando eu me aproximasse a porta se fecharia bem na minha cara. Mas não, eu me aproximei e a porta continuava aberta, quando eu entrei pensei que mão houvesse ninguém lá, eu já encontrei alguns lugares assim, era uma pena eu não poder me apossar desses lugares quando estão vazios.

 Olhei ao redor e te vi saindo de outro cômodo com um copo na mão, roupas surradas, o ar estava denso e agradável, pela primeira vez alguém me convidou para sentar.

- Desculpa, a porta estava aberta e eu entrei, mas posso sair se você quiser.

- Huuuummm, talvez eu devesse pedir para você sair, você tem cara de encrenca e é provável que eu me apaixone.

- Se apaixonar? Acho difícil, todos que disseram estar apaixonado por mim, só fizeram isso para se aproveitar de mim.

- Talvez... mas que você é apaixonante, você é.

- Obrigada?!

- Aceita uma dose? É horrível.

- Adoraria.

 Ficamos nessa por dias, cheguei a acreditar que tinha encontrado alguém como eu, porque durante esse tempo que passamos juntos, percebi que nossa única diferença era que eu viva nos corredores e você naquele quarto sujo, mas nós dois estávamos sozinhos.

 De verdade, eu nunca imaginei que ficar tanto tempo longe dos corredores pudesse contaminar alguém. Eu nunca tive a intenção de deixar seu lar bagunçado e frio.

- Acho melhor eu ir embora.

- Talvez seja uma escolha inteligente.

- Eu não sou muito inteligente.

- Uma última dose antes de ir?

- Seria bom.

 E foi assim que nunca mais nós vimos e que eu nunca mais tentei entrar em nenhuma porta, ou espiar através das fechaduras, minha única tentativa de sobreviver foi com meu sangue, mas já não havia mais sangue em mim, não havia me restado nada, agora eu podia finalmente parar de vagar e morrer. Enquanto eu sentia meu corpo morrendo, apreciava o doce sabor da última dose que ainda estava em minha boca.