RESUMO: É sabido que a família é a primeira referência da criança e seu papel é considerado preponderante na aprendizagem. Assim, a relação do aprendente com o mundo que o cerca é marcado por tais influencias já em seus primeiros anos de vida em diferentes aspectos: cognitivo, emocional, social e histórico. Este estudo discute a possível relação entre crianças abrigadas e a motivação destas frente a aprendizagem. Vislumbra-se que a alta rotatividade dos cuidadores dos abrigos, bem como a consequente quebra de vínculos entre estes e as crianças fragiliza a motivação para aprender. Trata-se também de rever a formação das chamadas “mães sociais” enfocando na construção de vínculos contínuos como estratégia geradora de segurança na vida de crianças abrigadas. Também podemos conjecturar de tais constatações que a figura feminina sai do extremo da subserviência, para outro: da sua entrada no mercado de trabalho, para um padrão, mais emancipado ou massacrado: a mulher violão, perfeita, magra, que trabalha que sustenta, que pari quando quer e que desafia os ditames sociais. Não se pode esquecer que é por meio da interação com o outro que a criança interpreta a realidade a sua volta e a sua autoimagem. Investir em relações duradouras e de qualidade entre crianças e cuidadores são imprescindíveis.

PALAVRAS-CHAVE: família, aprendizagem, abrigo

INTRODUÇÃO

            A Psicopedagogia busca desvendar as causas da não aprendizagem ou da dificuldade de aprendizagens em crianças, adolescentes e adultos dentro do contexto social, político, cognitivo, orgânico, social e familiar. A família prescinde um papel crucial como instância educativa, pois se caracteriza como o primeiro referencial humano. O reconhecimento desta assertiva é de cunho legal, conforme nossa Carta Magna, 1988, que alega ser a educação direito da criança e dever do Estado e da família. (BRASIL, 1988).

            A Sociedade passa por profundas transformações em todos os seus aspectos e a família também ressente estas mudanças. Do modelo patriarcal com a figura do provedor, a outro que exigiu a presença feminina no mercado de trabalho, delegou-se aos poucos a função de educar, quase que exclusivamente feminina, para as instituições.

Assim, importa reconhecer que a família, a sociedade e as formas de aprender são dinâmicas e advém de outros condicionantes: culturais, políticos, econômicos e históricos.

Se até algumas décadas pesquisas e demais informações eram buscadas nas enciclopédias, atualmente, os sites de busca levam segundos para oferecer uma infinidade de informações sobre os mais diversos assuntos. Claro que tantas mudanças impactaram também a relação professor-aluno-família. Todavia, as formas de ensinar de muitas escolas ainda persiste na educação enciclopédica, desconsiderando as transformações das novas formações familiares. Há tempos atrás o professor recorria a figura dos pais, atualmente, muitas crianças não estão sob a tutela destes.

            Certamente, considerar tais pressupostos é imprescindível para o profissional que lida com as questões da aprendizagem, pois o aprendente hodierno está inserido numa realidade macro que interfere diretamente sua existência. Para Kosik,

Sem a compreensão que a realidade é totalidade concreta realidade concreta - que se transforma em estrutura significativa para cada fato ou conjunto de fatos – o conhecimento da realidade concreta não passa de mística, ou coisa incognoscível em si. (2002, p.44).

 

Por este viés, considera-se que qualquer intervenção, análise na forma do aprendente conceber o conhecimento se faz de modo inseparável do todo. O objetivo deste estudo é discutir se, a criança institucionalizada (abrigada) apresenta-se desmotivada, se é que se apresenta, frente a aprendizagem.

Não se ignora que a criança institucionalizada, por perder o vínculo com seus progenitores ou familiares mais próximos, segundo alguns estudos, pode apresentar mais dificuldades de ordem emocional, social e cognitiva. Bowlby defende que,

 

Nessa perspectiva, a literatura psicanalítica reconhece que a criação de um vínculo forte e duradouro é de extrema relevância para uma ligação emocional e para a orientação do desenvolvimento social, afetivo e cognitivo da criança (BOWLBY, 1990 apud FEIJO et al, 2016, p.4)

 

Neste sentido, além das considerações elencadas para a discussão deste trabalho, importa resgatar também de forma breve, alguns aspectos da história no tratamento dispensado a infância empobrecida e abandonada no Brasil.

 

 

BREVE HISTORICO DA LEGISLAÇÃO DE ATENDIMENTO AS CRIANÇAS CARENTES NO BRASIL

 

            No Brasil a história das crianças institucionalizadas está ligada a precarização de suas condições e a presença de famílias necessitadas nos mais diferentes aspectos, seja econômico, moral ou social. Há poucos registros da infância, e estes, geralmente estão ligados ao interesse de médicos, juristas e da igreja, o que se traduz na falta de protagonismo da infância. Estudiosos relatam o infanticídio e a mortalidade infantil como características desta faixa etária, sobretudo, das crianças mais pobres.

            Para Áries (1981) a descoberta da infância se deu no século XIII em que as crianças ainda eram tratadas como adultos em miniatura. Participavam de festas, jogos e brincadeiras vulgares. Apenas no século XVI e XVII devido atuação da igreja e dos poderes públicos um sentimento de infância aflorou, mas o atendimento a infância antes do século XIX foi praticamente inexistente. As crianças pobres e abandonadas iam para as chamadas Rodas[1] ou Casa dos Expostos.

Segundo Kuhlmann Jr. (2001) a caridade decorrente da religiosidade no século XVI se fazia presente nas instituições para atender os desafortunados. No século XVII a responsabilidade do estado com os miseráveis denota um caráter civilizatório. Já a filantropia era um conceito mais enfatizado no século XIX entendida como secularização ou “organização racional da assistência” trazia a ideia de um caráter civilizatório. Assim, nos séculos XIX e XX[2] em oposição ao atendimento hospitalar e carcerário das classes pobres foram criadas leis e instituições baseadas na assistência cientifica.

Ainda pela égide da institucionalização, na década de 40 foi criado o DNcr[3] – Departamento Nacional da Criança – primeiro programa voltado as necessidades da maternidade infantil  e adolescência  e o SAM - Serviço de Assistência ao Menor vinculado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores que funcionava como um reformatório e tinha péssima reputação, sendo substituído em 1964 pelo FUNABEM – Fundação do Bem Estar do Menor, que como seu antecessor, passou por denúncias de maus tratos com os menores.

Claro que a visão de criança pobre entrelaçada com a de criminalidade, o inchamento das cidades com a procura de trabalho nos grandes centros aliados aos interesses políticos foram impressos nas legislações. Todavia, de acordo com Lopes e Silva,

[...] é importante considerar também os principais documentos e acordos internacionais que trataram das questões da infância no decorrer do século XX no Brasil: a Declaração dos Direitos Humanos proclamada em 1948 pela ONU afirmando que todo ser humano é um ser de direito; o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) criado em 1950 com o princípio básico de promover o bem estar da criança e do adolescente em suas necessidades básicas; a Declaração dos Direitos da Criança proclamada em 1959 pela ONU verificando que as condições da criança exigiam uma declaração à parte, devido sua imaturidade física e mental, necessitava assim de proteção e cuidados, explicitando os direitos fundamentais da criança. [...].A partir da nova Constituição Federal de 1988 e da Convenção de 1989, efetivou-se eficazmente a construção e publicação da nova lei para a infância e adolescência: O Estatuto da Criança e do Adolescente - O ECA (Lei n. 8.069/1990. Deixa para trás a doutrina de “situação irregular”, revogando o Código de Menores de 1979, e dispõe sobre a política de “proteção integral” [...] o ECA[4] inclui todas as pessoas de 0 a 18 anos de idade como sujeitos de direito. (LOPES, SILVA, 207, p.4)

 

 

Não se pode negar os avanços advindos de lutas, movimentos sociais, legisladores e estudiosos envolvidos com a causa da infância abandonada. Entrementes, apesar de tais documentos e acordos internacionais contribuírem na compreensão da concepção de criança como sujeito de direitos e protagonista de sua história, há uma abismal distância entre o que se discorre no papel e no que se vivencia na vida prática.

DINAMICIDADE DO CONCEITO DE FAMILIA E A MULHER HODIERNA

 

            E inegável o quanto a discussão do significado do termo família tem tido notoriedade, haja vista, as diferentes organizações que se intitulam famílias. Apesar destas constatações, resiste no imaginário popular a figura da família nuclear: pai, mãe e filho, sendo que as demais configurações, não raro, são denominadas como “desestruturadas”.

            No Brasil colônia marcado pela família patriarcal em que a figura dominante do chefe do lar estava ligada a um bom nome e uma família para ter se prestigio e reconhecimento social. O homem deveria ter um expressivo número de filhos e ser capaz de sustentar sua casa. Já a mulher estaria incumbida de criar uma família através de um bom casamento - ideal reforçado pela igreja. O chefe da casa detinha o poder sobre a mulher, os filhos, os animais e os escravos, sendo o responsável por todos, e, estes por sua vez, deveriam ser submissos e reverenciar o patriarca com respeito absoluto. A mulher notoriamente casta, precisaria chegar virgem ao casamento e ser fértil para não envergonhar o nome do marido. Seria melhor ainda se tivesse filhos do sexo masculino. Neste cenário é recorrente a figura das chamadas amas de leite que amamentavam os filhos das senhoras brancas, pois estas deveriam se preocupar com afazeres domésticos, como: cozer, bordar, ler, contar e afins. Caso não se casasse, a mulher poderia optar por dedicar-se a castidade num convento.

            Com o fim do trabalho escravo, a Proclamação da República e a crescente industrialização e modernização oriundos do padrão europeu, uma nova configuração familiar se concretiza: um modelo burguês com poucos filhos, todavia, o homem continua como o detentor das decisões no seio familiar e o casamento está atrelado a indissociabilidade .Claro que com a entrada da mulher no mercado de trabalho e sua consequente independência do marido, o tempo da mulher com os filhos diminuiu, e algumas ações delegadas exclusivamente à mãe, passou a fazer parte das instituições. Assim, tanto o homem quanto a mulher dividem os compromissos financeiros, embora a educação dos filhos ainda recaia, na maioria das vezes, sob a tutela feminina. Diante dos ditames de uma sociedade capitalista, ser mãe não está vinculado a um projeto de prestigio, pelo contrário, adiar a maternidade para investir na carreira é o que se apregoa. Nas considerações de Paschoal,

 

Este modelo capitalista instiga três premissas: consumismo, moda e estética. O consumismo pode ser julgado pela compulsão incessante por objetos novos sem que haja a real necessidade. Esta inculcação por objetos sem a real necessidade se deriva da sociedade que valoriza o ter, sendo através dos objetos que o indivíduo define a sua personalidade e aceitação social. O consumismo é a busca de satisfação subjetiva e sensorial, imposta pela sociedade. (PASCHAOL,  2011, p.12).

 

A sociedade do consumismo dita a todos o que se deve ter, ser e representar para ser bem-sucedido. Todavia, é alarmante o aumento de pacientes insatisfeitos com o sentido da vida detectada nos consultórios médicos psiquiátricos e psicológicos. O que vislumbra que o acesso a bens materiais não corresponde diretamente a saúde mental. Segundo dados da revista mente saudável[5],

 

De acordo com um relatório divulgado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a população brasileira é a mais deprimida da América Latina. Essa triste constatação acaba de receber reforço de um levantamento realizado pela SulAmérica: em seis anos, houve um salto de 74% no número de antidepressivos adquiridos pelos segurados dessa operadora. Foram 35.453 unidades em 2010 contra 61 859 em 2016Seguindo a tendência global, o estudo encontrou maior prevalência do uso desses medicamentos entre mulheres e pessoas a partir dos 50 anos. Atualmente, os antidepressivos ocupam a segunda posição na lista de remédios mais vendidos contra desordens do sistema nervoso, com 6% do total na categoria. O primeiro lugar pertence aos analgésicos, que somam 10% das vendas. Já os ansiolíticos estão em terceiro. Aliás, a demanda pelos fármacos usados contra a ansiedade também avançou demais: de 17 197 unidades para 36 179 no mesmo período, o que corresponde a um incremento de 110%.(2017).

 

As formas de existir amplamente difundidas e aceitas pelas mídias a serviço do capital acabam por legitimar uma cultura de bens desnecessários, supérfluos e descartáveis, que além de colaborar na poluição do planeta, apresenta-se totalmente incólume as necessidades humanas. São mecanismos aceitos culturalmente que desumanizam o homem, reduzindo-o a mero consumidor. Neste viés, a família atravessa uma crise, contudo, é inegável a busca pela segurança familiar, ensejada nas aprendizagens socializadoras referenciais e primordiais que concentra em seu núcleo.  As leis também procuram preservar o direito a convivência familiar entendendo seu papel crucial na formação cidadã.

O ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente apregoa em seu 4º artigo que,

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 1990)

 

A família moderna é impactada pela cultura capitalista socialmente difundida e preconiza aprendizagens quanto a forma de se relacionar com a sociedade, com a alimentação, com o mundo do trabalho e a luta pelos valores difundidos no interior destas relações. Também é responsável em pela escolarização e permanência dos seus entes na educação formal e informal. Assim, as famílias, para Meira,

[...] modificam a formação de vínculos e o estabelecimento de sistemas de referência, tornando mais complexas as relações entre as gerações. Neste quadro, as redes sociais bem como as referências pessoais acabam sendo visivelmente mais frágeis, resultando em maior risco para os elos mais vulneráveis do sistema familiar – crianças e adolescentes, mulheres e idosos.[...] que frequentemente implicam, de uma forma ou de outra, a exclusão social, seja no sentido da convivência, seja na participação cidadã (2003, p. 4).

 

Ainda pelo viés deste autor, a perda de tradições em que se consideravam o casamento, o trabalho, a sexualidade e o amor transformaram-se em projetos individuais. A mídia reforça tais pressupostos apregoando a busca do prazer, sendo que qualquer discussão que indague seus pressupostos adquire tons de repressão. A falta de autoridade[6]/ responsabilidade dos pais, bem como a clareza do seu papel enquanto referência fragilizam vínculos familiares. Neste sentido, Petrini afirma que,

o enfraquecimento dos vínculos familiares multiplica as famílias confinadas a um único genitor, quase sempre a mãe. A experiência diz quanto é difícil criar um filho estando só, cuidando, ao mesmo tempo, do trabalho, da casa e da prole. Sabe-se, também, que a criança desenvolve de modo equilibrado o próprio “eu” na relação com um pai e uma mãe. Mais precisamente, a criança amadurece no ambiente criado pelo amor recíproco entre um homem e uma mulher (op. cit., p. 5).

 

O adoecimento das mulheres torna-se evidente, o excesso de obrigações, o assédio, o salário desigual, o preconceito e o feminicídio são condições que incidem diretamente na vida das mulheres e, consequentemente, dos filhos - crianças que também são apreendentes. Assim explicitam Lages, Detoni e Sarmento,

 

[...] a necessidade de se inserir no mercado de trabalho, o cansaço ocasionado pela dupla jornada de trabalho e a preocupação com quem deixar os filhos causa uma divisão emocional entre as exigências do trabalho e as exigências com cuidados da família, gerando, com frequência, uma dupla culpabilidade – a culpa pelo abandono do lar, e a culpa por se emancipar. Tal fato aumenta a predisposição das mulheres para a aquisição de doenças, ou a sua cronificação, e a sofrer acidentes (s.d., p. 4).

 

Pode-se conjecturar de tais constatações que a figura feminina sai do extremo da subserviência, para outro: da sua entrada no mercado de trabalho, para um padrão, mais emancipado ou massacrado: a mulher “violão”, perfeita, magra, que trabalha, que sustenta, que pari quando quer e que desafia os ditames sociais. A mulher que morre quando diz “não”, que não dá conta dos padrões inacessíveis de uma sociedade machista. Mesmo com o conforto acarretado pela aquisição de novos bens advindos da participação feminina no mercado de trabalho, a mulher é ainda a maior responsável pelos filhos, pelo seu sucesso e sua aprendizagem, tanto na escola como na vida. Uma sociedade que maltrata a mulher não tem como não maltratar sua criança. Assim, embora se considerem novas configurações familiares na sociedade: as recasadas, as divorciadas, as que têm um só o pai, mãe, avó ou combinações destes, percebe-se a supremacia do padrão nuclear. A felicidade das crianças e adolescentes se concatena diretamente com relações familiares seguras. Costa pondera que problemas como repetência, evasão escolar, drogas, álcool, agressividades e condutas antissociais estão relacionados ao ambiente familiar. Costa afirma que,

a nova definição de família, tornando-a mais inclusiva e sem preconceitos; a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres na sociedade conjugal; a consagração do divórcio: a afirmação do planejamento familiar como livre decisão do casal; e a previsão da criação de mecanismos para coibir a violência no interior da família são o resultado das lutas feministas junto aos legisladores constituintes. (COSTA, 2004, p. 21).

 

Vale considerar o quanto uma convivência harmônica e segura em que pessoas que tem objetivos comuns, voltados para o bem da coletividade traz benefícios para todos os membros da família, independente da consanguinidade. Neste sentido o termo família se alarga, independente dos seus formadores. Para Lipovetsky (2002 apud SALAZAR, 2002, p. 1), a sociedade moderna carece da emergência de uma ética moderna a fim de reforçar as democracias quanto a sua responsabilidade com os valores humanos. Este autor analisou a ética e a caracterizou em três momentos na história: a ética do dever, entre 1700 a 1950, onde foi recorrente a obrigação e sacrifício pela família, à pátria e à sociedade mediante normas; a ética da contracultura dos anos 60 e 70 que se opôs veementemente à ética anterior e exaltava a liberdade individual e coletiva. A família neste contexto era vista como obsoleta e repressiva. Já a ética da felicidade dos anos 80 depreciou a obrigação com o próximo e a família, exaltando o usufruto do presente, o templo do eu. O que se pretende refletir é a necessidade de crianças, mulheres terem a garantia mínima de viver, ter seu lugar na sociedade que prioriza o ter, o fazer. Que lugares reservamos para aqueles que não se encaixam nos padrões de produção de nossa sociedade? Mulheres sozinhas, muitas mães, que sozinhas são a família de seus filhos? Abandonadas, ameaçadas e punidas no discurso dos detentores do “saber”. Mães que precisam, tanto quanto os seus filhos de um lugar, de pessoas para se sentirem pertenças. Além das políticas públicas há que se pensar em novas formas de existir e coexistir.

Como já mencionado anteriormente, a dinamicidade do mundo hodierno faz com que as famílias busquem a inserção de valores em instituições que apregoem aquilo que acreditam: escolas confessionais ou não, preparatórias, militares, bilingues ou técnicas, não apenas de conhecimento, mas de valores. Muito debate-se a importância de construção de conhecimentos que não apenas informe, mas forme um cidadão, de uma escola participativa, empática, conhecedora das subjetividades familiares em seus diferentes contextos. As diferentes estratégias para as famílias tornarem-se de fato parceiras na arte de educar.

Em qualquer contexto educativo em que haja alguma alteração das expectativas de aprendizagens ou comportamentais que se operem nas crianças, geralmente, a primeira ação tomada é convocar os responsáveis pelo aprendente, ou seja, a sua família. No caso da criança abrigada, recorre-se a instituição. A anamnese[7]é um dos instrumentos utilizados para o levantamento de informações sobre o indivíduo pesquisado. Dentro da psicopedagogia, tal instrumento é imprescindível para conhecer o sujeito cognoscível. Compreender os motivos de como se deu a ruptura dos vínculos familiares colabora neste processo.

É fato que o tipo de cidadão que se busca formar advém do tipo de sociedade que o produz. Cabe aos profissionais como intelectuais da educação considerar, então, que, o tipo de escola e de família que se projeta não está num campo neutro. Sem adentrar aos aspectos dos tipos de família que se estruturam no cotidiano: se adequados ou não, o que se objetiva neste estudo é compreender as motivações da criança abrigada e seu impacto diante do conhecimento, haja vista que muitas destas, perderam, se não totalmente, parcialmente o contato com suas famílias de origem. Nas considerações de Petrini,

 

A família por ser o lugar da primeira socialização e por desempenhar funções socialmente importantes junto aos seus membros, constitui um ponto nevrálgico com relação a um amplo conjunto de necessidades. Com efeito, quando a família se encontra em situação de fragilidade e ausente da existência das pessoas, os problemas enfrentados tendem a agravar-se. Pelo contrário, à proporção que a família consiga interagir nas novas circunstancias socioculturais, pode contribuir para amenizá-las. A família, é portanto, um sujeito social, alvo estratégico de políticas públicas [...].(2003, p.18).

 

Neste sentido, muitas crianças já chegam à instituição com histórico comprometedor relativo à conduta de alguns familiares: foram afastadas de seus progenitores devido a negligência ou violência física, psicológica e sexual.

 

 

A CRIANÇA ABRIGADA E A APRENDIZAGEM

 

            É recorrente no senso comum que crianças institucionalizadas tendem a ter um maior déficit de aprendizagem. Crianças com histórico de inabilidade social tendem a ter prejuízo cognitivo, pois nem sempre o estabelecimento do atendimento estritamente as necessidades de alimentação e higiene, garantem um aporte afetivo, importante para a aprendizagem. Nas palavras de Andrade,

Os problemas de aprendizagem dessas crianças e adolescentes parecem ser decorrentes, dentre outras variáveis, da insegurança emocional e material fruto da ausência de familiares e de um ambiente estimulador, já que o alto índice de criança/adolescente por cuidador no abrigo em pauta não favorece a construção de laços afetivos e significativos de forma a contribuir para o funcionamento intelectual adequado. (ANDRADE, S.M, 2011.p.11).

 

O abrigamento deveria ser um último recurso provisório para uma criança, justamente para defendê-la e dar-lhe condições de dignidade frente a quebra de vínculos a qual foi exposta. Um desafio duplo: enfrentar o afastamento e se adaptar a uma nova realidade. Sabe-se que estas crianças chegam fragilizadas a estes lares. Embora os abrigos contem com uma rede de apoio para a formação de novos vínculos, o afastamento do convívio familiar pode comprometer potencialidades e o desenvolvimento saudável. Refletindo nas considerações de Oliveira e Camões,

 

As crianças institucionalizadas são privadas de seu espaço subjetivo, dos seus conteúdos individuais, da realidade dos vínculos afetivos. São despojadas de experiências sociopsicológicas da normalidade infantil. A sensação é de vazio, a dor, às vezes a indiferença ou a perplexidade. São filhos da solidão... o sonho destas crianças é de terem uma mãe e um pai. E por não entenderem bem as angústias do mundo, a sua personalidade está cheia de contradições (OLIVEIRA, CAMÕES, 2003).

 

Assim deve-se considerar a responsabilidade dos profissionais, sobretudo, “mães sociais” que atuam com estas crianças, pelo viés de suas necessidades especificas. O continuo rodizio destes profissionais, pode comprometer a motivação de aprendizagem da criança. A experiencia de constantes separações, como já a vivenciada pela família de origem se repete na vida destas crianças, tendo impactos negativos em sua formação. Claro que os cuidadores também necessitam ter suas demandas consideradas, como apoio, valorização salarial e formação constante. Entrementes, não se pode esquecer que é por meio da interação com o outro que a criança interpreta a realidade a sua volta e a sua autoimagem. Investir em relações duradouras e de qualidade entre crianças e cuidadores são imprescindíveis. Nas considerações de Bowlby,

 

Assim, quando a criança permanece por longo período em um hospital ou instituição residencial a perda da mãe, com o passar do tempo, faz com que os cuidados recebidos percam o significado, sendo que as rupturas sucessivas com as figuras maternas, as quais a criança se dedicou, faz com que ela se ligue cada vez menos a outras figuras, deixando de importar-se com toda e qualquer pessoa (BOWLBY, 2009,p.18).

 

Tais elucidações, requerem cada vez mais preparação dos cuidadores para amenizar o impacto de sucessivas separações e os danos que estes possam vir a causar nos acolhidos. Para Gabatz, citando o que apregoa o CONANDA, CNAS[8],

[...] propõe:-Reuniões periódicas de equipe (discussão e fechamento de casos; reavaliação de Planos de atendimento individual e familiar, construção de consensos, revisão e melhoria da metodologia);-formação continuada sobre temas recorrentes do cotidiano, assim como sobre temas já trabalhados na fase de capacitação inicial, orientada pelas necessidades institucionais (promovida pela própria instituição e/ou cursos externos),- estudos de caso-Supervisão institucional com profissional externo-Encontros diários de 15-20 minutos entre os profissionais dos diferentes turnos para troca de informações-Grupo de escuta mútua; -espaço de escuta individual;-avaliação, orientação e apoio periódicos pela equipe técnica. (GABATZ,2016, p. 40)

 

A formação de vinculo saudável é um fator que protege a criança e deve ser estimulado nos espaços que existam crianças, adolescentes e adultos. Gabatz alerta para a situação das crianças em abrigos, devido a separação com a família, mas apregoa também que,

[...] mesmo quando as experiências iniciais de interação são negativas, a criança colocada em um ambiente que propicia o estabelecimento de vínculo seguro e comportamento de apego pode superar a experiência negativa e desenvolver-se normalmente. (GABATZ, 2016, p.45).

 

Não se alude a uma desvalorização da família ou sua substituição, contudo, precisa-se refletir que há diferentes formas de famílias e de abrigos. Em locais em que a totalidade das crianças foram afastadas por negligencia e abuso, os investimentos na formação de vínculos saudáveis e duradouros precisa ser priorizado.

 

 

 

 

CONCLUSÃO

 

O descaso com as crianças abandonadas desde o Brasil colônia até os dias atuais é um desafio aos estudiosos da área da infância e legisladores. Por muito tempo, tais crianças e famílias foram responsabilizadas por sua condição, numa visão historicamente “míope”. Todavia, quando se discute como se dá a aprendizagem destas crianças que ressentem a presença da família, como funcionam os abrigos que acolhem estas crianças e quais relações e enfrentamentos permeiam o trabalho dos cuidadores sociais, não se pode criar generalizações. É sabido, como já mencionado, que os abrigos com a figura da mãe/pai social apresentam, em sua maioria, uma alta rotatividade destes profissionais, o que não sustenta vínculos afetivos significativos.

Pesquisadores defendem que, os laços afetivos são mais importantes que os de consanguinidade. Ademais, geralmente, ter um referencial que se interesse, se envolva na vida do aprendente, que seja um aporte moral, ético e afetivo assegura, com mais probidade a formação de um cidadão mais saudável e com pretensões cognitivas. De acordo com Wadsworth (1996) as ações das crianças sobre os objetos e as interações com os outros são fundamentais na construção do conhecimento. Desta forma, se há um bloqueio por parte/causa/razão afetiva, o conhecimento encontra obstáculos para se efetivar.

Os estudos que englobam esta temática endossam a premissa que crianças com pouco vínculo referencial positivo podem realmente apresentar desmotivação frente aos desafios da aprendizagem. Todavia, há que se considerar que a perda de vínculos não ocorre somente em ambientes de institucionalização, mas podem advir do seio familiar pelos mais infinitos motivos, o que não é objetivo deste estudo.

Neste sentido, pode-se conjecturar que seria interessante estudar formas de acolhimento afetivo ordenado, rotineiro e contínuo para as crianças abrigadas. É necessário que a criança confie que suas emoções e capacidades possam ser expressas e negociadas, valorizando a sua autoestima e consequente melhoria do comportamento, disponibilidade e atenção para o aprender, independentemente do local em que se encontra. Para tanto, se faz imprescindível investimentos no aperfeiçoamento e qualificação continua dos cuidadores dos abrigos, ações para diminuir o alto fluxo destes profissionais e evitar a consequente quebra de vínculos com as crianças. Este trabalho não tem a pretensão de esgotar as premissas discutidas, mas colaborar com o debate sobre a aprendizagem da criança abrigada.

 

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SCHMITZ, Júlia, SKRSYPCSAK, Daniel. A Organização dos espaços na educação infantil.Disponível em http://faifaculdades.edu.br/eventos/SEMIC/6SEMIC/arquivos/resumos/RES5.pdf Acesso em: 19 abr.2019

 

WADSWORTH, B.J. Inteligência e afetividade da criança na teoria de Piaget. São Paulo: Pioneira, 1996.

 

[1]Criado por Romão Duarte em 1739 para atender crianças abandonadas.

[2]O século XX constituiu um cenário muito importante para a infância brasileira no que se refere à legalidade. Três leis essenciais buscaram atender à realidade da infância brasileira: o Código de Menores de 1927 ( em que as ações para com os menores deveriam deixar de ser punitivas para serem protetivas), o Código de Menores de 1979 (promoveu novas diretrizes para medidas de proteção, vigilância e assistência aos menores em situação irregular. Ainda que os documentos e acordos internacionais enfatizassem a valorização do ser humano e da infância, pouco inovou enquanto lei para a infância, ao contrário, agravou ainda mais a situação ampliando os poderes da autoridade Judiciária. O Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA de 1990. Disponível em https://www.fe.unicamp.br/pf-fe/publicacao/4969/art11_25.pdf

[3] Transformado em 1970 em Coordenação Materno Infantil.

[4] O E.C.A suprime o termo “menor infrator” para cidadão de direitos.

[6]Reporta-se ao termo autoridade, definido pelo direito legalmente estabelecido para se fazer obedecer.

Já autoritarismo é o mando absoluto e arbitrário.

[7]É um dos elementos essenciais à confecção de diagnósticos médicos é a anamnese realizada com os pacientes, mediante a qual se buscam elementos em sua biografia que corroborem alguma hipótese de diagnóstico. Trata-se de uma tarefa essencialmente interpretativa, em que há uma relação reflexiva entre as hipóteses formuladas pelos médicos e os comportamentos e motivações associados ao diagnóstico. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v4n1/03.pdf  .Acesso em: 21. maio. 2018.

[8]CONANDA; CNAS. Conselho Nacional dos Direitos da criança e do Adolescente. Conselho Nacional de Assistência Social. Orientações Técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília, 2009.105p.Disponível em:http://www.mds.gov.br/cnas/noticias/orientacoes_tecnicas_final.pdf. Acesso em: 19 abril.2019.

RESUMO: É sabido que a família é a primeira referência da criança e seu papel é considerado preponderante na aprendizagem. Assim, a relação do aprendente com o mundo que o cerca é marcado por tais influencias já em seus primeiros anos de vida em diferentes aspectos: cognitivo, emocional, social e histórico. Este estudo discute a possível relação entre crianças abrigadas e a motivação destas frente a aprendizagem. Vislumbra-se que a alta rotatividade dos cuidadores dos abrigos, bem como a consequente quebra de vínculos entre estes e as crianças fragiliza a motivação para aprender. Trata-se também de rever a formação das chamadas “mães sociais” enfocando na construção de vínculos contínuos como estratégia geradora de segurança na vida de crianças abrigadas. Também podemos conjecturar de tais constatações que a figura feminina sai do extremo da subserviência, para outro: da sua entrada no mercado de trabalho, para um padrão, mais emancipado ou massacrado: a mulher violão, perfeita, magra, que trabalha que sustenta, que pari quando quer e que desafia os ditames sociais. Não se pode esquecer que é por meio da interação com o outro que a criança interpreta a realidade a sua volta e a sua autoimagem. Investir em relações duradouras e de qualidade entre crianças e cuidadores são imprescindíveis.

PALAVRAS-CHAVE: família, aprendizagem, abrigo

 

 

INTRODUÇÃO

 

            A Psicopedagogia busca desvendar as causas da não aprendizagem ou da dificuldade de aprendizagens em crianças, adolescentes e adultos dentro do contexto social, político, cognitivo, orgânico, social e familiar. A família prescinde um papel crucial como instância educativa, pois se caracteriza como o primeiro referencial humano. O reconhecimento desta assertiva é de cunho legal, conforme nossa Carta Magna, 1988, que alega ser a educação direito da criança e dever do Estado e da família. (BRASIL, 1988).

            A Sociedade passa por profundas transformações em todos os seus aspectos e a família também ressente estas mudanças. Do modelo patriarcal com a figura do provedor, a outro que exigiu a presença feminina no mercado de trabalho, delegou-se aos poucos a função de educar, quase que exclusivamente feminina, para as instituições.

Assim, importa reconhecer que a família, a sociedade e as formas de aprender são dinâmicas e advém de outros condicionantes: culturais, políticos, econômicos e históricos.

Se até algumas décadas pesquisas e demais informações eram buscadas nas enciclopédias, atualmente, os sites de busca levam segundos para oferecer uma infinidade de informações sobre os mais diversos assuntos. Claro que tantas mudanças impactaram também a relação professor-aluno-família. Todavia, as formas de ensinar de muitas escolas ainda persiste na educação enciclopédica, desconsiderando as transformações das novas formações familiares. Há tempos atrás o professor recorria a figura dos pais, atualmente, muitas crianças não estão sob a tutela destes.

            Certamente, considerar tais pressupostos é imprescindível para o profissional que lida com as questões da aprendizagem, pois o aprendente hodierno está inserido numa realidade macro que interfere diretamente sua existência. Para Kosik,

Sem a compreensão que a realidade é totalidade concreta realidade concreta - que se transforma em estrutura significativa para cada fato ou conjunto de fatos – o conhecimento da realidade concreta não passa de mística, ou coisa incognoscível em si. (2002, p.44).

 

Por este viés, considera-se que qualquer intervenção, análise na forma do aprendente conceber o conhecimento se faz de modo inseparável do todo. O objetivo deste estudo é discutir se, a criança institucionalizada (abrigada) apresenta-se desmotivada, se é que se apresenta, frente a aprendizagem.

Não se ignora que a criança institucionalizada, por perder o vínculo com seus progenitores ou familiares mais próximos, segundo alguns estudos, pode apresentar mais dificuldades de ordem emocional, social e cognitiva. Bowlby defende que,

 

Nessa perspectiva, a literatura psicanalítica reconhece que a criação de um vínculo forte e duradouro é de extrema relevância para uma ligação emocional e para a orientação do desenvolvimento social, afetivo e cognitivo da criança (BOWLBY, 1990 apud FEIJO et al, 2016, p.4)

 

Neste sentido, além das considerações elencadas para a discussão deste trabalho, importa resgatar também de forma breve, alguns aspectos da história no tratamento dispensado a infância empobrecida e abandonada no Brasil.

 

 

BREVE HISTORICO DA LEGISLAÇÃO DE ATENDIMENTO AS CRIANÇAS CARENTES NO BRASIL

 

            No Brasil a história das crianças institucionalizadas está ligada a precarização de suas condições e a presença de famílias necessitadas nos mais diferentes aspectos, seja econômico, moral ou social. Há poucos registros da infância, e estes, geralmente estão ligados ao interesse de médicos, juristas e da igreja, o que se traduz na falta de protagonismo da infância. Estudiosos relatam o infanticídio e a mortalidade infantil como características desta faixa etária, sobretudo, das crianças mais pobres.

            Para Áries (1981) a descoberta da infância se deu no século XIII em que as crianças ainda eram tratadas como adultos em miniatura. Participavam de festas, jogos e brincadeiras vulgares. Apenas no século XVI e XVII devido atuação da igreja e dos poderes públicos um sentimento de infância aflorou, mas o atendimento a infância antes do século XIX foi praticamente inexistente. As crianças pobres e abandonadas iam para as chamadas Rodas[1] ou Casa dos Expostos.

Segundo Kuhlmann Jr. (2001) a caridade decorrente da religiosidade no século XVI se fazia presente nas instituições para atender os desafortunados. No século XVII a responsabilidade do estado com os miseráveis denota um caráter civilizatório. Já a filantropia era um conceito mais enfatizado no século XIX entendida como secularização ou “organização racional da assistência” trazia a ideia de um caráter civilizatório. Assim, nos séculos XIX e XX[2] em oposição ao atendimento hospitalar e carcerário das classes pobres foram criadas leis e instituições baseadas na assistência cientifica.

Ainda pela égide da institucionalização, na década de 40 foi criado o DNcr[3] – Departamento Nacional da Criança – primeiro programa voltado as necessidades da maternidade infantil  e adolescência  e o SAM - Serviço de Assistência ao Menor vinculado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores que funcionava como um reformatório e tinha péssima reputação, sendo substituído em 1964 pelo FUNABEM – Fundação do Bem Estar do Menor, que como seu antecessor, passou por denúncias de maus tratos com os menores.

Claro que a visão de criança pobre entrelaçada com a de criminalidade, o inchamento das cidades com a procura de trabalho nos grandes centros aliados aos interesses políticos foram impressos nas legislações. Todavia, de acordo com Lopes e Silva,

[...] é importante considerar também os principais documentos e acordos internacionais que trataram das questões da infância no decorrer do século XX no Brasil: a Declaração dos Direitos Humanos proclamada em 1948 pela ONU afirmando que todo ser humano é um ser de direito; o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) criado em 1950 com o princípio básico de promover o bem estar da criança e do adolescente em suas necessidades básicas; a Declaração dos Direitos da Criança proclamada em 1959 pela ONU verificando que as condições da criança exigiam uma declaração à parte, devido sua imaturidade física e mental, necessitava assim de proteção e cuidados, explicitando os direitos fundamentais da criança. [...].A partir da nova Constituição Federal de 1988 e da Convenção de 1989, efetivou-se eficazmente a construção e publicação da nova lei para a infância e adolescência: O Estatuto da Criança e do Adolescente - O ECA (Lei n. 8.069/1990. Deixa para trás a doutrina de “situação irregular”, revogando o Código de Menores de 1979, e dispõe sobre a política de “proteção integral” [...] o ECA[4] inclui todas as pessoas de 0 a 18 anos de idade como sujeitos de direito. (LOPES, SILVA, 207, p.4)

 

 

Não se pode negar os avanços advindos de lutas, movimentos sociais, legisladores e estudiosos envolvidos com a causa da infância abandonada. Entrementes, apesar de tais documentos e acordos internacionais contribuírem na compreensão da concepção de criança como sujeito de direitos e protagonista de sua história, há uma abismal distância entre o que se discorre no papel e no que se vivencia na vida prática.

DINAMICIDADE DO CONCEITO DE FAMILIA E A MULHER HODIERNA

 

            E inegável o quanto a discussão do significado do termo família tem tido notoriedade, haja vista, as diferentes organizações que se intitulam famílias. Apesar destas constatações, resiste no imaginário popular a figura da família nuclear: pai, mãe e filho, sendo que as demais configurações, não raro, são denominadas como “desestruturadas”.

            No Brasil colônia marcado pela família patriarcal em que a figura dominante do chefe do lar estava ligada a um bom nome e uma família para ter se prestigio e reconhecimento social. O homem deveria ter um expressivo número de filhos e ser capaz de sustentar sua casa. Já a mulher estaria incumbida de criar uma família através de um bom casamento - ideal reforçado pela igreja. O chefe da casa detinha o poder sobre a mulher, os filhos, os animais e os escravos, sendo o responsável por todos, e, estes por sua vez, deveriam ser submissos e reverenciar o patriarca com respeito absoluto. A mulher notoriamente casta, precisaria chegar virgem ao casamento e ser fértil para não envergonhar o nome do marido. Seria melhor ainda se tivesse filhos do sexo masculino. Neste cenário é recorrente a figura das chamadas amas de leite que amamentavam os filhos das senhoras brancas, pois estas deveriam se preocupar com afazeres domésticos, como: cozer, bordar, ler, contar e afins. Caso não se casasse, a mulher poderia optar por dedicar-se a castidade num convento.

            Com o fim do trabalho escravo, a Proclamação da República e a crescente industrialização e modernização oriundos do padrão europeu, uma nova configuração familiar se concretiza: um modelo burguês com poucos filhos, todavia, o homem continua como o detentor das decisões no seio familiar e o casamento está atrelado a indissociabilidade .Claro que com a entrada da mulher no mercado de trabalho e sua consequente independência do marido, o tempo da mulher com os filhos diminuiu, e algumas ações delegadas exclusivamente à mãe, passou a fazer parte das instituições. Assim, tanto o homem quanto a mulher dividem os compromissos financeiros, embora a educação dos filhos ainda recaia, na maioria das vezes, sob a tutela feminina. Diante dos ditames de uma sociedade capitalista, ser mãe não está vinculado a um projeto de prestigio, pelo contrário, adiar a maternidade para investir na carreira é o que se apregoa. Nas considerações de Paschoal,

 

Este modelo capitalista instiga três premissas: consumismo, moda e estética. O consumismo pode ser julgado pela compulsão incessante por objetos novos sem que haja a real necessidade. Esta inculcação por objetos sem a real necessidade se deriva da sociedade que valoriza o ter, sendo através dos objetos que o indivíduo define a sua personalidade e aceitação social. O consumismo é a busca de satisfação subjetiva e sensorial, imposta pela sociedade. (PASCHAOL,  2011, p.12).

 

A sociedade do consumismo dita a todos o que se deve ter, ser e representar para ser bem-sucedido. Todavia, é alarmante o aumento de pacientes insatisfeitos com o sentido da vida detectada nos consultórios médicos psiquiátricos e psicológicos. O que vislumbra que o acesso a bens materiais não corresponde diretamente a saúde mental. Segundo dados da revista mente saudável[5],

 

De acordo com um relatório divulgado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a população brasileira é a mais deprimida da América Latina. Essa triste constatação acaba de receber reforço de um levantamento realizado pela SulAmérica: em seis anos, houve um salto de 74% no número de antidepressivos adquiridos pelos segurados dessa operadora. Foram 35.453 unidades em 2010 contra 61 859 em 2016Seguindo a tendência global, o estudo encontrou maior prevalência do uso desses medicamentos entre mulheres e pessoas a partir dos 50 anos. Atualmente, os antidepressivos ocupam a segunda posição na lista de remédios mais vendidos contra desordens do sistema nervoso, com 6% do total na categoria. O primeiro lugar pertence aos analgésicos, que somam 10% das vendas. Já os ansiolíticos estão em terceiro. Aliás, a demanda pelos fármacos usados contra a ansiedade também avançou demais: de 17 197 unidades para 36 179 no mesmo período, o que corresponde a um incremento de 110%.(2017).

 

As formas de existir amplamente difundidas e aceitas pelas mídias a serviço do capital acabam por legitimar uma cultura de bens desnecessários, supérfluos e descartáveis, que além de colaborar na poluição do planeta, apresenta-se totalmente incólume as necessidades humanas. São mecanismos aceitos culturalmente que desumanizam o homem, reduzindo-o a mero consumidor. Neste viés, a família atravessa uma crise, contudo, é inegável a busca pela segurança familiar, ensejada nas aprendizagens socializadoras referenciais e primordiais que concentra em seu núcleo.  As leis também procuram preservar o direito a convivência familiar entendendo seu papel crucial na formação cidadã.

O ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente apregoa em seu 4º artigo que,

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 1990)

 

A família moderna é impactada pela cultura capitalista socialmente difundida e preconiza aprendizagens quanto a forma de se relacionar com a sociedade, com a alimentação, com o mundo do trabalho e a luta pelos valores difundidos no interior destas relações. Também é responsável em pela escolarização e permanência dos seus entes na educação formal e informal. Assim, as famílias, para Meira,

[...] modificam a formação de vínculos e o estabelecimento de sistemas de referência, tornando mais complexas as relações entre as gerações. Neste quadro, as redes sociais bem como as referências pessoais acabam sendo visivelmente mais frágeis, resultando em maior risco para os elos mais vulneráveis do sistema familiar – crianças e adolescentes, mulheres e idosos.[...] que frequentemente implicam, de uma forma ou de outra, a exclusão social, seja no sentido da convivência, seja na participação cidadã (2003, p. 4).

 

Ainda pelo viés deste autor, a perda de tradições em que se consideravam o casamento, o trabalho, a sexualidade e o amor transformaram-se em projetos individuais. A mídia reforça tais pressupostos apregoando a busca do prazer, sendo que qualquer discussão que indague seus pressupostos adquire tons de repressão. A falta de autoridade[6]/ responsabilidade dos pais, bem como a clareza do seu papel enquanto referência fragilizam vínculos familiares. Neste sentido, Petrini afirma que,

o enfraquecimento dos vínculos familiares multiplica as famílias confinadas a um único genitor, quase sempre a mãe. A experiência diz quanto é difícil criar um filho estando só, cuidando, ao mesmo tempo, do trabalho, da casa e da prole. Sabe-se, também, que a criança desenvolve de modo equilibrado o próprio “eu” na relação com um pai e uma mãe. Mais precisamente, a criança amadurece no ambiente criado pelo amor recíproco entre um homem e uma mulher (op. cit., p. 5).

 

O adoecimento das mulheres torna-se evidente, o excesso de obrigações, o assédio, o salário desigual, o preconceito e o feminicídio são condições que incidem diretamente na vida das mulheres e, consequentemente, dos filhos - crianças que também são apreendentes. Assim explicitam Lages, Detoni e Sarmento,

 

[...] a necessidade de se inserir no mercado de trabalho, o cansaço ocasionado pela dupla jornada de trabalho e a preocupação com quem deixar os filhos causa uma divisão emocional entre as exigências do trabalho e as exigências com cuidados da família, gerando, com frequência, uma dupla culpabilidade – a culpa pelo abandono do lar, e a culpa por se emancipar. Tal fato aumenta a predisposição das mulheres para a aquisição de doenças, ou a sua cronificação, e a sofrer acidentes (s.d., p. 4).

 

Pode-se conjecturar de tais constatações que a figura feminina sai do extremo da subserviência, para outro: da sua entrada no mercado de trabalho, para um padrão, mais emancipado ou massacrado: a mulher “violão”, perfeita, magra, que trabalha, que sustenta, que pari quando quer e que desafia os ditames sociais. A mulher que morre quando diz “não”, que não dá conta dos padrões inacessíveis de uma sociedade machista. Mesmo com o conforto acarretado pela aquisição de novos bens advindos da participação feminina no mercado de trabalho, a mulher é ainda a maior responsável pelos filhos, pelo seu sucesso e sua aprendizagem, tanto na escola como na vida. Uma sociedade que maltrata a mulher não tem como não maltratar sua criança. Assim, embora se considerem novas configurações familiares na sociedade: as recasadas, as divorciadas, as que têm um só o pai, mãe, avó ou combinações destes, percebe-se a supremacia do padrão nuclear. A felicidade das crianças e adolescentes se concatena diretamente com relações familiares seguras. Costa pondera que problemas como repetência, evasão escolar, drogas, álcool, agressividades e condutas antissociais estão relacionados ao ambiente familiar. Costa afirma que,

a nova definição de família, tornando-a mais inclusiva e sem preconceitos; a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres na sociedade conjugal; a consagração do divórcio: a afirmação do planejamento familiar como livre decisão do casal; e a previsão da criação de mecanismos para coibir a violência no interior da família são o resultado das lutas feministas junto aos legisladores constituintes. (COSTA, 2004, p. 21).

 

Vale considerar o quanto uma convivência harmônica e segura em que pessoas que tem objetivos comuns, voltados para o bem da coletividade traz benefícios para todos os membros da família, independente da consanguinidade. Neste sentido o termo família se alarga, independente dos seus formadores. Para Lipovetsky (2002 apud SALAZAR, 2002, p. 1), a sociedade moderna carece da emergência de uma ética moderna a fim de reforçar as democracias quanto a sua responsabilidade com os valores humanos. Este autor analisou a ética e a caracterizou em três momentos na história: a ética do dever, entre 1700 a 1950, onde foi recorrente a obrigação e sacrifício pela família, à pátria e à sociedade mediante normas; a ética da contracultura dos anos 60 e 70 que se opôs veementemente à ética anterior e exaltava a liberdade individual e coletiva. A família neste contexto era vista como obsoleta e repressiva. Já a ética da felicidade dos anos 80 depreciou a obrigação com o próximo e a família, exaltando o usufruto do presente, o templo do eu. O que se pretende refletir é a necessidade de crianças, mulheres terem a garantia mínima de viver, ter seu lugar na sociedade que prioriza o ter, o fazer. Que lugares reservamos para aqueles que não se encaixam nos padrões de produção de nossa sociedade? Mulheres sozinhas, muitas mães, que sozinhas são a família de seus filhos? Abandonadas, ameaçadas e punidas no discurso dos detentores do “saber”. Mães que precisam, tanto quanto os seus filhos de um lugar, de pessoas para se sentirem pertenças. Além das políticas públicas há que se pensar em novas formas de existir e coexistir.

Como já mencionado anteriormente, a dinamicidade do mundo hodierno faz com que as famílias busquem a inserção de valores em instituições que apregoem aquilo que acreditam: escolas confessionais ou não, preparatórias, militares, bilingues ou técnicas, não apenas de conhecimento, mas de valores. Muito debate-se a importância de construção de conhecimentos que não apenas informe, mas forme um cidadão, de uma escola participativa, empática, conhecedora das subjetividades familiares em seus diferentes contextos. As diferentes estratégias para as famílias tornarem-se de fato parceiras na arte de educar.

Em qualquer contexto educativo em que haja alguma alteração das expectativas de aprendizagens ou comportamentais que se operem nas crianças, geralmente, a primeira ação tomada é convocar os responsáveis pelo aprendente, ou seja, a sua família. No caso da criança abrigada, recorre-se a instituição. A anamnese[7]é um dos instrumentos utilizados para o levantamento de informações sobre o indivíduo pesquisado. Dentro da psicopedagogia, tal instrumento é imprescindível para conhecer o sujeito cognoscível. Compreender os motivos de como se deu a ruptura dos vínculos familiares colabora neste processo.

É fato que o tipo de cidadão que se busca formar advém do tipo de sociedade que o produz. Cabe aos profissionais como intelectuais da educação considerar, então, que, o tipo de escola e de família que se projeta não está num campo neutro. Sem adentrar aos aspectos dos tipos de família que se estruturam no cotidiano: se adequados ou não, o que se objetiva neste estudo é compreender as motivações da criança abrigada e seu impacto diante do conhecimento, haja vista que muitas destas, perderam, se não totalmente, parcialmente o contato com suas famílias de origem. Nas considerações de Petrini,

 

A família por ser o lugar da primeira socialização e por desempenhar funções socialmente importantes junto aos seus membros, constitui um ponto nevrálgico com relação a um amplo conjunto de necessidades. Com efeito, quando a família se encontra em situação de fragilidade e ausente da existência das pessoas, os problemas enfrentados tendem a agravar-se. Pelo contrário, à proporção que a família consiga interagir nas novas circunstancias socioculturais, pode contribuir para amenizá-las. A família, é portanto, um sujeito social, alvo estratégico de políticas públicas [...].(2003, p.18).

 

Neste sentido, muitas crianças já chegam à instituição com histórico comprometedor relativo à conduta de alguns familiares: foram afastadas de seus progenitores devido a negligência ou violência física, psicológica e sexual.

 

 

A CRIANÇA ABRIGADA E A APRENDIZAGEM

 

            É recorrente no senso comum que crianças institucionalizadas tendem a ter um maior déficit de aprendizagem. Crianças com histórico de inabilidade social tendem a ter prejuízo cognitivo, pois nem sempre o estabelecimento do atendimento estritamente as necessidades de alimentação e higiene, garantem um aporte afetivo, importante para a aprendizagem. Nas palavras de Andrade,

Os problemas de aprendizagem dessas crianças e adolescentes parecem ser decorrentes, dentre outras variáveis, da insegurança emocional e material fruto da ausência de familiares e de um ambiente estimulador, já que o alto índice de criança/adolescente por cuidador no abrigo em pauta não favorece a construção de laços afetivos e significativos de forma a contribuir para o funcionamento intelectual adequado. (ANDRADE, S.M, 2011.p.11).

 

O abrigamento deveria ser um último recurso provisório para uma criança, justamente para defendê-la e dar-lhe condições de dignidade frente a quebra de vínculos a qual foi exposta. Um desafio duplo: enfrentar o afastamento e se adaptar a uma nova realidade. Sabe-se que estas crianças chegam fragilizadas a estes lares. Embora os abrigos contem com uma rede de apoio para a formação de novos vínculos, o afastamento do convívio familiar pode comprometer potencialidades e o desenvolvimento saudável. Refletindo nas considerações de Oliveira e Camões,

 

As crianças institucionalizadas são privadas de seu espaço subjetivo, dos seus conteúdos individuais, da realidade dos vínculos afetivos. São despojadas de experiências sociopsicológicas da normalidade infantil. A sensação é de vazio, a dor, às vezes a indiferença ou a perplexidade. São filhos da solidão... o sonho destas crianças é de terem uma mãe e um pai. E por não entenderem bem as angústias do mundo, a sua personalidade está cheia de contradições (OLIVEIRA, CAMÕES, 2003).

 

Assim deve-se considerar a responsabilidade dos profissionais, sobretudo, “mães sociais” que atuam com estas crianças, pelo viés de suas necessidades especificas. O continuo rodizio destes profissionais, pode comprometer a motivação de aprendizagem da criança. A experiencia de constantes separações, como já a vivenciada pela família de origem se repete na vida destas crianças, tendo impactos negativos em sua formação. Claro que os cuidadores também necessitam ter suas demandas consideradas, como apoio, valorização salarial e formação constante. Entrementes, não se pode esquecer que é por meio da interação com o outro que a criança interpreta a realidade a sua volta e a sua autoimagem. Investir em relações duradouras e de qualidade entre crianças e cuidadores são imprescindíveis. Nas considerações de Bowlby,

 

Assim, quando a criança permanece por longo período em um hospital ou instituição residencial a perda da mãe, com o passar do tempo, faz com que os cuidados recebidos percam o significado, sendo que as rupturas sucessivas com as figuras maternas, as quais a criança se dedicou, faz com que ela se ligue cada vez menos a outras figuras, deixando de importar-se com toda e qualquer pessoa (BOWLBY, 2009,p.18).

 

Tais elucidações, requerem cada vez mais preparação dos cuidadores para amenizar o impacto de sucessivas separações e os danos que estes possam vir a causar nos acolhidos. Para Gabatz, citando o que apregoa o CONANDA, CNAS[8],

[...] propõe:-Reuniões periódicas de equipe (discussão e fechamento de casos; reavaliação de Planos de atendimento individual e familiar, construção de consensos, revisão e melhoria da metodologia);-formação continuada sobre temas recorrentes do cotidiano, assim como sobre temas já trabalhados na fase de capacitação inicial, orientada pelas necessidades institucionais (promovida pela própria instituição e/ou cursos externos),- estudos de caso-Supervisão institucional com profissional externo-Encontros diários de 15-20 minutos entre os profissionais dos diferentes turnos para troca de informações-Grupo de escuta mútua; -espaço de escuta individual;-avaliação, orientação e apoio periódicos pela equipe técnica. (GABATZ,2016, p. 40)

 

A formação de vinculo saudável é um fator que protege a criança e deve ser estimulado nos espaços que existam crianças, adolescentes e adultos. Gabatz alerta para a situação das crianças em abrigos, devido a separação com a família, mas apregoa também que,

[...] mesmo quando as experiências iniciais de interação são negativas, a criança colocada em um ambiente que propicia o estabelecimento de vínculo seguro e comportamento de apego pode superar a experiência negativa e desenvolver-se normalmente. (GABATZ, 2016, p.45).

 

Não se alude a uma desvalorização da família ou sua substituição, contudo, precisa-se refletir que há diferentes formas de famílias e de abrigos. Em locais em que a totalidade das crianças foram afastadas por negligencia e abuso, os investimentos na formação de vínculos saudáveis e duradouros precisa ser priorizado.

 

 

 

 

CONCLUSÃO

 

O descaso com as crianças abandonadas desde o Brasil colônia até os dias atuais é um desafio aos estudiosos da área da infância e legisladores. Por muito tempo, tais crianças e famílias foram responsabilizadas por sua condição, numa visão historicamente “míope”. Todavia, quando se discute como se dá a aprendizagem destas crianças que ressentem a presença da família, como funcionam os abrigos que acolhem estas crianças e quais relações e enfrentamentos permeiam o trabalho dos cuidadores sociais, não se pode criar generalizações. É sabido, como já mencionado, que os abrigos com a figura da mãe/pai social apresentam, em sua maioria, uma alta rotatividade destes profissionais, o que não sustenta vínculos afetivos significativos.

Pesquisadores defendem que, os laços afetivos são mais importantes que os de consanguinidade. Ademais, geralmente, ter um referencial que se interesse, se envolva na vida do aprendente, que seja um aporte moral, ético e afetivo assegura, com mais probidade a formação de um cidadão mais saudável e com pretensões cognitivas. De acordo com Wadsworth (1996) as ações das crianças sobre os objetos e as interações com os outros são fundamentais na construção do conhecimento. Desta forma, se há um bloqueio por parte/causa/razão afetiva, o conhecimento encontra obstáculos para se efetivar.

Os estudos que englobam esta temática endossam a premissa que crianças com pouco vínculo referencial positivo podem realmente apresentar desmotivação frente aos desafios da aprendizagem. Todavia, há que se considerar que a perda de vínculos não ocorre somente em ambientes de institucionalização, mas podem advir do seio familiar pelos mais infinitos motivos, o que não é objetivo deste estudo.

Neste sentido, pode-se conjecturar que seria interessante estudar formas de acolhimento afetivo ordenado, rotineiro e contínuo para as crianças abrigadas. É necessário que a criança confie que suas emoções e capacidades possam ser expressas e negociadas, valorizando a sua autoestima e consequente melhoria do comportamento, disponibilidade e atenção para o aprender, independentemente do local em que se encontra. Para tanto, se faz imprescindível investimentos no aperfeiçoamento e qualificação continua dos cuidadores dos abrigos, ações para diminuir o alto fluxo destes profissionais e evitar a consequente quebra de vínculos com as crianças. Este trabalho não tem a pretensão de esgotar as premissas discutidas, mas colaborar com o debate sobre a aprendizagem da criança abrigada.

 

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[1]Criado por Romão Duarte em 1739 para atender crianças abandonadas.

[2]O século XX constituiu um cenário muito importante para a infância brasileira no que se refere à legalidade. Três leis essenciais buscaram atender à realidade da infância brasileira: o Código de Menores de 1927 ( em que as ações para com os menores deveriam deixar de ser punitivas para serem protetivas), o Código de Menores de 1979 (promoveu novas diretrizes para medidas de proteção, vigilância e assistência aos menores em situação irregular. Ainda que os documentos e acordos internacionais enfatizassem a valorização do ser humano e da infância, pouco inovou enquanto lei para a infância, ao contrário, agravou ainda mais a situação ampliando os poderes da autoridade Judiciária. O Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA de 1990. Disponível em https://www.fe.unicamp.br/pf-fe/publicacao/4969/art11_25.pdf

[3] Transformado em 1970 em Coordenação Materno Infantil.

[4] O E.C.A suprime o termo “menor infrator” para cidadão de direitos.

[6]Reporta-se ao termo autoridade, definido pelo direito legalmente estabelecido para se fazer obedecer.

Já autoritarismo é o mando absoluto e arbitrário.

[7]É um dos elementos essenciais à confecção de diagnósticos médicos é a anamnese realizada com os pacientes, mediante a qual se buscam elementos em sua biografia que corroborem alguma hipótese de diagnóstico. Trata-se de uma tarefa essencialmente interpretativa, em que há uma relação reflexiva entre as hipóteses formuladas pelos médicos e os comportamentos e motivações associados ao diagnóstico. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v4n1/03.pdf  .Acesso em: 21. maio. 2018.

[8]CONANDA; CNAS. Conselho Nacional dos Direitos da criança e do Adolescente. Conselho Nacional de Assistência Social. Orientações Técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília, 2009.105p.Disponível em:http://www.mds.gov.br/cnas/noticias/orientacoes_tecnicas_final.pdf. Acesso em: 19 abril.2019.