EXPOSIÇÃO MIDIÁTICA DO SUSPEITO E O GARANTISMO PENAL

 

                            *Gleriston Albano Cardoso Alves

1 INTRODUÇÃO

Em uma sociedade cada vez mais desvirtuada em seus valores, fruto de uma agenda orquestrada pelas próprias elites para a manutenção de seus privilégios, vemos cada vez mais a banalização dos valores que outrora eram basilares tanto na sua conformação social, política e moral quanto na própria organização estrutural do Estado. A igualdade formal prevista no caput do art. 5° da Lei Maior esta cada vez mais distante de sua eficácia em igualdade material e esta realidade se arrasta para todas as relações humanas. Pior ainda, é ver o tratamento diferenciado dispensado ainda entre homens e mulheres ou entre brancos e negros nas relações de trabalho. Na seara penal a coisa não é diferente. É notória a distinção, o acautelamento no tratamento de suspeitos de infrações penais ao se verificar que um destes se trata de alguém integrante de um galho mais alto na “árvore da sociedade”.

2 DESENVOLVIMENTO

A própria degradação das relações de trabalho e emprego, a marginalização dos espaços urbanos  em que cada vez mais se afasta as pessoas de renda inferior do parque urbano da cidade, da infra-estrutura em que se conforma os serviços públicos, cria as condições para que se crie o sentimento de inferioridade nessa população que já é, por todo o aspecto cultural da sociedade brasileira em sua gênese autoritária e em sua predileção e adoração pelos chamados “doutos”, não é de se olvidar que já tivemos a alcunha de “ República dos Bacharéis”, em relação às classes ditas mais favorecidas economicamente. Nossa sociedade ainda tem muitos resquícios da fidalguia dos tempos de Colônia e Império que se retratam pelo costume ainda existente de as pessoas menos letradas de chamar aqueles que possuem formação acadêmica, ou ainda quando estão em situação qualquer a qual se sintam em relação de subordinação àquele “ser superior” à sua frente, de chamá-los de “doutor” como uma espécie de título de nobreza moderno, sem origem na “vontade divina”. Nas palavras de WACQUANT (1999, pg. 9):

Essa tradição de violência policial inscreve-se em uma tradição nacional multissecular de controle dos miseráveis pela força, tradição oriunda da escravidão e dos conflitos agrários, que se viu fortalecida por duas décadas de ditadura militar, quando a luta contra a “subversão interna” se disfarçou em repressão aos delinqüentes. Ela apóia-se numa concepção hierárquica e paternalista da cidadania, fundada na oposição cultural entre feras e doutores, os “selvagens e os “outros”, que tende a assimilar marginais, trabalhadores e criminosos, de modo que a manutenção de ordem classe e a manutenção da ordem pública e confundem.[1]

Para dar resposta aos altos índices de criminalidade de nossos tempos, o Estado-penal se constitui de forma a punir em uma espécie de vingança do Estado e da sociedade daquele que teve conduta abjeta em detrimento de um caráter ressocializador e  preventivo o qual deveria possuir a punição penal. O Estado através de seu imperium exercido por meio da força policial delimita as ações pautado muitas vezes em seus agentes pela prévia condenação individual do suspeito de determinado crime e tratando-os não como suspeitos mas como se já tivessem uma sentença judicial condenatória transitada em julgado contra este.

 Como se não bastasse a condenação prévia por parte dos policiais, a mídia com o sensacionalismo que lhe é peculiar, expõe muitas vezes alguém que é suspeito de um crime como se condenado fosse e, como se a lesão à presunção de inocência prevista no inciso LVVII do art.5° da Constituição da República não fosse o bastante , expõem as pessoas em rede aberta de televisão de forma vexatória tanto os suspeitos como as vítimas e familiares ferindo-lhes de forma clamorosa o seu direito fundamental à imagem previsto no inciso V da Carta Política. Ademais, não se nega que a atividade da imprensa possui uma variedade de garantias constitucionais, como a liberdade de manifestação do pensamento, de expressão e de acesso à informação, previstas no texto constitucional (art. 5º, incisos IV, IX e XIV) mas estas, segundo os princípios de proporcionalidade e razoabilidade, devem ser sopesados a fim de colocar a frente do direito à informação a própria dignidade da pessoa humana que muitas vezes é lesada por estes programas. De maneira brilhante o CENTRO DE DEFESA DA CRIANCA E DO ADOLESCENTE – FORTALEZA (2011, pg. 47) assevera:

Notadamente, os programas desumanizam humanos, negam a cidadania a pessoas acusadas de delitos e pregam ou promovem a violação de direitos, mesmo que seja o direito à vida, uma das garantias constitucionais, portanto, inviolável, segundo a Constituição Federal, e sagrado, de acordo com as várias denominações religiosas existentes no Brasil. O consentimento de sua violabilidade para os casos de quem pratica crimes, além de ir contra a lei dos homens e a lei de Deus, expõe uma forte contradição, haja vista a regularidade com que, durante os programas policiais, são feitas referências a ambas as leis.[2]

O Estado brasileiro alimenta uma dicotomia que divide as pessoas basicamente em duas qualidades: cidadãos ditos “de bem” e os bandidos. Esses por sua própria condição e natureza advém das classes menos favorecidas em termos econômicos e são os responsáveis pelas mazelas da sociedade e portanto devem ser ferozmente combatidos de forma exemplar, expurgados e jogados para nossas prisões as quais tem como último objetivo uma recuperação do detento servindo apenas para retirar das ruas os indivíduos considerados como escória pela sociedade por sua própria condição natural “inferior”.

Mormente a participação estatal nessa realidade, a mídia dá sua grande contribuição para esse cenário. Os apresentadores de programas policiais agem como verdadeiros promotores muitas vezes sem se preocupar minimamente com uma imparcialidade a qual deveria ser o norte da mídia e o pior muitas vezes instigando a violação a direitos fundamentais do cidadão que, segundo a cabeça destes, não passam de tolerância à bandidagem. Alguns chegam ao absurdo de fazer menção ao fato de os presos se alimentarem sem trabalhar para custear-se. Não é demais lembrar que a Lei de Execuções Penais prevê o trabalho como direito do preso e que inclusive provoca a remissão de sua pena à proporção de um dia para cada três de trabalho e que este costumeiramente tem este direito tolhido pela própria falta de estrutura do Estado-Penal.

A repercussão negativa de fatos, envolvendo indignação, revolta e clamor público, todos gerados pelo sensacionalismo e exposição intensa de diversos casos de crimes bárbaros na mídia não é razão determinante para influenciar decisões judiciais e bem assim a trajetória do processo penal.

O problema se cria a partir do momento em que os direitos e garantias fundamentais insertos na Constituição Federal se tornam ameçados, pois a população boçal que acusa, julga e condena o suspeito ou réu é incapaz de entender os fundamentos do direito.

Infelizmente, o que se vê, é que o sensacionalismo da mídia gera uma influência na sistemática de formação do sentimento social ameaçando os direitos e garantias fundamentais insertos na Constituição Federal.

A mídia por diversas vezes por intermédio de seus apresentadores estabelece uma causa naturalística para a criminalidade. Não leva em consideração as condições sócio-econômicas oferecidas pelo Estado e simplesmente colocam que a índole do suspeito é que faz com que este venha a cometer crimes. E a gravidade das infrações penais é motivo para que se negue cada vez mais os direitos fundamentais ao agente do crime por parte dessa mídia. Tal reflete na sociedade e ao mesmo tempo é por ela refletida.

Decerto é que por vezes o tiro sai pela culatra. O rigor estatal no intuito de diminuir a criminalidade atacando os efeitos e não a causa do problema além de não surtir o efeitos esperado muitos vezes surte o efeito contrário

O garantismo penal é a proteção dos direitos fundamentais do cidadão, mesmo que contra os interesses da maioria, evitando, assim, as arbitrariedades dos castigos, das proibições e dos processos, mediante a imposição de regras iguais para todos e em respeito à dignidade da pessoa humana.  Assim, o garantismo penal, como poder mínimo que não viola direitos do cidadão, não pode ser ameaçado por influências geradas no sentimento popular principalmente pelo sensacionalismo da mídia. O problema do clamor público gerado pelo sensacionalismo da mídia não se trata de mera tecnicidade jurídica, pois os direitos e garantias constitucionais que fundamentam o Direito é que protegem o homem do autoritarismo e do arbítrio estatal influenciados pela televisão. Tais direitos foram conquistados graças à coragem e o despreendimento de sucessivas gerações que nos antecederam e que dispuseram a derramar o próprio sangue para alcançar tais objetivos. Na lição de Ferrajoli:

Segundo um primeiro significado, “garantismo” designa um modelo normativo de direito: precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o modelo de “estrita legalidade” SG, próprio do Estado de direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do estado em garantia dos direitos do cidadão.

[...]

Em um segundo significado, “garantismo” designa uma teoria jurídica da “validade” e da “efetividade” como categorias distintas não só entre si mas, também, pela “existência” ou “vigor” das normas. Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantém separados o “ser” e o “dever ser” no direito; e, aliás, Põe como questão teórica central, a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendentemente garantistas) e práticas operacionais (tendentemente antigarantistas), interpretando-a com a antinomia – dentro de certos limites fisiológica e fora destes patológica – que subsiste entre validade (e não efetividade) dos primeiros e efetividade (e invalidade) das segundas. [...]

Segundo um terceiro significado, por fim, “garantismo” designa uma filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Neste último sentido o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o “ser” e o “dever ser” do direito. E equivale à assunção, para os fins da legitimação e da perda da legitimação ético-política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo. (FERRAJOLI, 2006, p. 785-787).[3]

Tornou-se comum os operadores do direito confundirem o garantismo com o abolicionismo penal, sendo este a defesa da liberdade selvagem do homem enquanto que aquele rechaça tal doutrina afirmando que o Estado tem o dever de regrar tal independência. O garantismo também repele o Estado Liberal que age com excesso no direito de punir.

3 CONCLUSÃO

Deve-se ponderar, portanto, entre o poder-dever do Estado para assegurar a ordem pública e paz social da sociedade sem esquecer dos devidos direitos e garantias individuais do ser humano. Tratar um suposto delinquente de forma de desumana como numa espécie de vingança do Estado e da sociedade sem lhe observar suas garantias fundamentais é ser ainda mais desumano tamanha a desproporcionalidade entre as forças em conflito. Não se deve primar por um abolicionismo penal para legitimar toda e qualquer liberalidade do instinto predatório do ser humano, mas dotar-lhe de um mínimo de garantias que são previstas e positivadas no ordenamento jurídico e podem ser inferidas por um próprio direito natural utilizando-se da racionalidade unívoca do ser humano. 

 

REFERÊNCIAS

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 7° Ed. ver. e atual. De acordo com a Emenda Constitucional n° 70/2012 – São Paulo: Saraiva, 2012.

CEDECA. Centro de Defesa da Criança e do Adolescente. Televisões: Violência, Criminalidade e Insegurança nos Programas Policiais do Ceará. Textos e edição de Raimundo Madeira. 1ª ed. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2011.

CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. 1ª ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal – 3° Ed. 2010.

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. 1ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001

 

 

 

 



[1] WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. 1ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

[2] CEDECA. Centro de Defesa da Criança e do Adolescente. Televisões: Violência, Criminalidade e Insegurança nos Programas Policiais do Ceará. Textos e edição de Raimundo Madeira. 1ª ed. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2011.

[3]  FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal – 3° Ed. 2010.