Experiência de Políticas Públicas e Inclusão Produtiva para Mulheres Trabalhadoras Rurais do município de Ichu-Ba. 

Gisleide do Carmo Oliveira Carneiro 

Entendendo que as políticas públicas abrangem vários segmentos sociais e possuem variada gama de definições – sendo que nenhuma dentre elas é tida como consensual na comunidade acadêmica –, e tentando evitar as armadilhas da simplificação exagerada e da tentação de mergulhar numa discussão polêmica e virtualmente interminável, adotamos uma definição que serve para os objetivos do presente estudo. Nesse sentido, políticas públicas são aqui inicialmente entendidas como o somatório de ações governamentais que influenciam diretamente na vida dos cidadãos. Acreditamos que este conceito abrange todas as iniciativas conjuntas das mais diferentes esferas do poder público e suas tentativas de, por meio de programas de ação governamental, coordenar os meios à disposição do Estado para a realização de metas de interesse coletivo.

As políticas públicas, por serem ações desencadeadas por organismos estatais, abrangem um amplo arco de possibilidades. Elas visam agir sobre os mais diversos segmentos da sociedade civil e costumam envolver algumas etapas que incluem clara percepção de um dado problema, definição de um objetivo e um planejamento de ações que visam à eliminação do problema. No Brasil, uma das vertentes de atuação das políticas públicas se encontra no âmbito da agricultura familiar, segmento produtivo que forma o conjunto dos grandes responsáveis pela geração de renda em zonas interioranas do país. Apesar de sua importância para a economia de uma parcela significativa da população rural, a agricultura familiar possui poucos recursos e escassa capacidade de investimento. Por isso, se faz tão necessária a injeção contínua de recursos financeiros provenientes de programas de apoio e incentivo à agricultura familiar.

Nesse direcionamento, a I Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (CONDRSS) – realizada em 2008, que teve como tema “Por um Brasil Rural com Gente: Sustentabilidade, Inclusão, Diversidade, Igualdade e Solidariedade”, define, no seu documento final, que o país, através das suas instâncias de governo, fomente a implantação e o controle de políticas públicas de desenvolvimento rural sustentável e solidário que garantam os recortes em gênero.

Nessa mesma proposta, os rumos da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER) foram objeto de debate na 2ª Conferência Nacional realizada em 2016 com a abordagem temática “Agroecologia e Alimentos Saudáveis”.  Avança no debate o Sistema Nacional de Ater, Ater e Políticas Públicas para a Agricultura Familiar, Formação e Construção de Conhecimento na Ater, Ater e Mulheres Rurais, Ater e Jovens Rurais e, Ater e Povos e Comunidades Tradicionais. Isso demonstra que novos olhares se voltam para a Agricultura Familiar e para o Desenvolvimento Sustentável do Brasil Rural. No Brasil, em especial na Bahia, a agricultura familiar passou ao longo dos anos por um grande descaso; na década 1990, pouca atenção foi dada à agricultura familiar. Dos poucos Programas criados para este público, surgiu o Programa Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF), voltado para a abertura de crédito para as famílias. Porém, a falta de assessoramento técnico permanente e qualificado para que estas famílias tivessem acesso ao crédito para estruturação da propriedade na geração de trabalho e renda – que não aconteceu devido, também, aos juros altos praticados e à intensificação da burocracia para acesso –, levou as famílias a migrarem para os grandes centros urbanos à procura de melhoria das condições de vida. O crédito, embora oficialmente disponibilizado, continuou inacessível aos agricultores/as em razão de serem financiamentos sem nenhum planejamento ou participação das famílias na escolha dos ítens financiáveis, elaborados em pacotes e fora de sua realidade, fato que levou muitos ao crescente endividamento e, consequentemente, muitos agricultores ao descrédito em relação ao crédito – dimensão esta a ser desconstruída e em seu lugar colocada a real perspectiva  do crédito no desenvolvimento da agricultura familiar. Podemos observar, na nossa análise, que os avanços significativos relativos às mulheres foram a partir do ano de 2002.

No movimento de luta, a partir do ano de 2002, foram implementados, no município de Ichu, localizado no Território do Sisal, o Programa Nacional Geração de Emprego e Renda (PRONAGER) e o Projeto Prosperar, tendo como participantes as famílias rurais do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Através destas iniciativas surgiram empreendimentos produtivos informais, a exemplo do Empreendimento Nossa Polpa e, anos após, mulheres e homens rurais constituíram a Cooperativa de Produção Comercialização e Serviço Padre Leopoldo Garcia Garcia (COOPERAGIL), que ganha força no município como um modelo alternativo de economia centrada no trabalho coletivo, tendo como base o cooperativismo, de modo autogerido, visando à reprodução ampliada da vida.

  1. COOPERAGIL foi fundada em 01 de dezembro de 2007 com a missão de desenvolver, produzir e comercializar produtos da agricultura familiar de forma a garantir a inclusão socioprodutiva dos seus cooperados através do trabalho digno, da economia solidária e da responsabilidade socioambiental e com a visão de estar entre as principais cooperativas de produção do mercado e ser referência de excelência em produtos e serviços da agricultura familiar do Estado da Bahia. Atuando no segmento econômico da agricultura familiar através da produção, comercialização de seus produtos e prestação de serviços, está localizada no município de Ichu e tem raio de ação para fins de admissão nas comunidades do município.

Atualmente possui 48 cooperados/as. Seu quadro social é organizado em grupos de produção de associados, nos municípios da área atuação, com a função de articular, entre os seus membros, meios e providências para o melhor funcionamento da cooperativa, sendo suas atividades disciplinadas em regimento próprio, aprovado em Assembleia Geral. Entretanto, estes 48 cooperados/as se agrupam em 04 grupos de produção sendo 02 de derivados da mandioca (bolos, broa, sequilhos, beiju, etc), 01 de polpas de frutas, 01 de artesanatos, além de alguns cooperados produtores de hortaliças.

Apesar de conter elementos novos, o rural no Brasil ainda apresenta a persistência de antigos e graves problemas: concentração de terras, trabalho quase servil, cultura machista, patriarcal e racista. Neste contexto, as mulheres rurais vivenciam diferentes situações onde suas vidas passam por controle e pelo poder disciplinador da sociedade. Estas mulheres se deparam cotidianamente com afirmações contrárias às suas realidades, sendo a cada instante negado o seu espaço como protagonista de direitos e “desqualificada” sua identidade enquanto mulher rural.

Iniciativas são mais que necessárias no contexto da zona rural. Segundo dados do IBGE/PNAD (2009), no contexto do Semiárido, a pobreza atinge 52% da sua população rural; dessa população, as mulheres são as mais vulneráveis, pois elas, historicamente, foram excluídas dos processos de participação sociopolítica e econômica. Além do mais, 47,7% das mulheres rurais são consideradas não economicamente ativas, e isso se deve às poucas iniciativas de geração de trabalho e renda, bem como à pouca valorização do trabalho feminino e à sua invisibilidade no campo produtivo.

No município de Ichu, local onde se insere este estudo, 17,2% das mulheres são extremamente pobres, contra uma média estadual de 13,79%. Esta desigualdade se acentua quando comparada à média nacional que é de 6,62% em relação aos dados de porcentagem de pobres e de vulneráveis à pobreza. Quase a totalidade da população brasileira se encontra nessa margem de risco social, como demonstram os dados apresentados no Atlas Brasil (2013), na tabela 1 a seguir. Em consonância com estes dados, inferem-se, também, números baixos relativos ao Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), apresentando o município de Ichu índice abaixo da média do Estado e da média nacional, constatando o déficit existente em investimentos na educação, na renda, na expectativa de vida, dentre outros parâmetros.

 

Tabela 1 – Índice de Desenvolvimento Humano-Comparativo: Brasil, Bahia e Ichu

Espacialidades

IDHM 2010

% de extremamente pobres 2010

% de pobres 2010

% de vulneráveis à pobreza 2010

Brasil

0,727

6,62

15,2

32,56

Bahia

0,66

13,79

28,72

52,71

Ichu (BA)

0,631

17,2

34,31

56,78

 

Fonte: Atlas Brasil, 2013.

 

Desse modo, as desigualdades sociais que afetam a vida das mulheres no meio rural e, da mesma forma, os resquícios culturais do coronelismo nordestino – que atribui grande poder ao homem e coloca a mulher em uma situação de submissão e subordinação social –, estão presentes no Território do Sisal. A partir deste contexto, é que se percebe que as mulheres rurais buscaram alternativas de geração de trabalho e renda, organizando-se em empreendimentos de produção, através dos quais elas têm se ajudado mutuamente, buscando a superação das desigualdades de gênero, raça e classe.

Para as mulheres rurais, a alternativa de se organizarem em empreendimentos de produção, na geração de trabalho e renda, garante a sua permanência no campo. Também colaboram para esta permanência  as ações de políticas públicas traçadas para as mulheres agricultoras familiares que têm como objetivo fundamental organizarem-se em Empreendimento Econômico Solidário (EES). A união destas mulheres não é apenas  em função do  beneficiamento da  produção, mas também para que elas possam ocupar espaços nos acessos à política, interferindo na construção e implementação de política para agricultura familiar que mobiliza mulheres na perspectiva de váris políticas, a exemplo da aplicação da Lei Maria da Penha, a campanha de documentação, o enfrentamento à violência doméstica, ATER para mulheres, acesso ao crédito específico via PRONAF, inserção das mulheres em comissões municipais de água, de diretorias sindicais e de associações, dentre outros. Destaca-se neste campo, igualmente, a organização das mulheres em cooperativas de serviço e de beneficiamento da produção para gerar renda, ter acesso aos mercados, beneficiar seus produtos e participar dos programas governamentais – com destaque aqui para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE) –, especialmente os voltados para as mulheres rurais.

Considerando todo este contexto e o fato de que as políticas públicas se apresentam como um dos vieses de possíveis ajustes sociais buscando uma sociedade mais igualitária, torna-se pertinente o estudo destas ações uma vez que elas interferem no desenvolvimento social com um todo. A relevância deste estudo situa-se, também, no reconhecimento do papel das mulheres rurais na sociedade, papel este que permite desenvolver a compreensão sobre a problemática das questões ligadas ao gênero, à emancipação, à agricultura familiar e à geração de trabalho e renda. Problemáticas estas refletidas na luta das mulheres para o exercício pleno da cidadania, na busca de seus direitos e no embate no próprio contexto familiar e no espaço de trabalho pelo reconhecimento de ser pessoa e usufruir dos direitos e deveres até mesmo previstos legalmente.

Entendemos que os efeitos advindos do acesso às políticas públicas da agricultura familiar, no Território do Sisal, ajudarão a problematizar o campo de trabalho bem como a aperfeiçoar as possibilidades de pensá-lo, questioná-lo, criando, assim, condições de aprofundá-lo e, desta forma, contribuir na melhoria de vida dos sujeitos envolvidos no processo além de dar possibilidade de sistematizar e dar cientificidade às curiosidades e hipóteses geradas no campo de trabalho.

No universo tão amplo de questões a serem estudadas, no qual se encontram as políticas públicas da agricultura familiar, nesta pesquisa optamos por discutir sobre os sentires e fazeres das mulheres rurais – especificamente as da comunidade de Barra pertencente ao município de Ichu-BA – entendendo-os como efeitos do acesso destas mulheres a estes programas governamentais. Em tese, buscamos analisar como elas se organizam para estar nos espaços de incidência política, participação social e de geração do trabalho e renda, conciliando-os com as labutas do dia a dia e com os afazeres de casa.

Esta experiência se dá no município de Ichu, pertencente ao Território de Identidade do Sisal, na comunidade de Barra com 10 mulheres rurais do Empreendimento “Nossa Polpa”, filiadas a COOPERAGIL (Figura 1). Estas mulheres participantes deste processo fazem parte do programa do governo de transferência de renda, o Bolsa Família, e buscam iniciativas no enfrentamento à pobreza e na garantia de direitos.

 

 

 

 

                                Figura 1 – Grupo de Mulheres “Nossa Polpa”

 

           Fonte: Dados da pesquisa, 2017.

 

 

REFERÊNCIAS:

 

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