Nada mais cruel para um árabe orgulhoso de suas origens do que ser chamado de turco. É uma ofensa irreparável. Contou-me  a "Turca" uma professora e amiga de origem libanesa que numa recepção no consulado do Líbano em São Paulo, um paulistano desavisado cometeu a gafe de chamar um culto libanês de turco. A resposta foi brilhante, com uma profunda explanação sobre as diferenças históricas, étnicas e culturais entre turcos e árabes. Encerrada a explanação, o brasileiro impressionado com a eloquência, elogiou: "Como fala bem este turco, não?".
A "turca" a quem me referi, é a Professora Hamide Assain José, que completou oitenta primaveras no mês passado. Parece ser pouco, já que muita gente alcança esta idade atualmente, com o aumento da expectativa de vida. Mas o caso dela é diferente, pois ainda está na ativa como professora vibrando com o que faz, sentindo-se feliz em ser útil à sociedade e às novas gerações. Hamide ainda cuida de dois filhos adotivos, administra a casa em Embu com um grande jardim e ainda tem tempo para ler e preparar suas aulas. O apelido de "turca" fica por conta da mania dos brasileiros de considerar como turcos todos os povos árabes, pois no início do século passado os imigrantes do Oriente Médio recebiam passaporte turco para viajar. Na realidade, de árabe ela tem apenas o nome e sangue paterno, que partiu muito cedo. A mãe era brasileira de origem italiana e obviamente católica.
Quem escreve, caro leitor, foi aluno desta grande mestra. Estávamos no fim dos anos 60, em plena ditadura e eu resolvi publicar um jornalzinho no colégio em São Caetano do Sul. A diretora, Lúcia Jorge Abdalla, uma mulher arejada, mas também muito cuidadosa, encarregou a Hamide, professora de Língua e Literatura Portuguesa como responsável pelo "O Praxe", um mensário, impresso em mimeógrafo, sobre assuntos gerais com uma tiragem de mais de mil exemplares. O Praxe era um tanto debochado como O Pasquim, semanário dirigido por humoristas e cartunistas cariocas durante o governo militar. No Praxe tinha sempre uma entrevista com um professor mais descolado e textos produzidos pelos alunos. Quem imaginou que ela era uma censora do jornal se enganou. Ela aprovava tudo e defendia a liberdade de expressão dos alunos. Censurada pelo conselho de professores de que o jornal estava extrapolando os limites, muito estreitos naqueles tempos sombrios, ela declarou em alto e bom som: "Sou uma educadora e não uma censora".
Ela sempre foi uma pessoa desligada de vaidades, amável e gentil, mas capaz de colocar a boca no trombone quando percebe injustiças e preconceitos. Na sua juventude sempre gostou de aventuras e por isso resolveu partir para o Líbano, terra do seu pai, para conhecer melhor a cultura árabe. Por lá ficou alguns anos estudando árabe e francês (a segunda língua do Líbano), hospedada na casa de um tio que era uma pessoa muito influente em uma pequena aldeia.
Contou ela que um dia ouviu um grande alvoroço nas ruas. Olhou pela janela e viu centenas de soldados marchando à frente de tanques de guerra. Sem demora saiu do quarto onde estava esquecendo-se de que estava de calças compridas, um vestuário proibido para mulheres muçulmanas e sem a tradicional burca. As mulheres das aldeia começaram a gritar impropérios de todo o tipo, que por delicadeza, prefiro omiti-los. Chegou a ser ameaçada fisicamente. Felizmente, graças a uma das esposas do tio, um homem influente no povoado, conseguiu se safar. "Naquele momento desejei que se abrisse uma cratera no chão e me sugasse", disse ela sobre essa triste experiência.
Mas outro perigo estava prestes a ameaçar a sua tranquilidade no país e não se tratava de nenhuma guerra, coisa comum até hoje no país das doces tâmaras. Um rico comerciante pediu ao seu tio a sua mão em casamento para que fosse uma de suas esposas, já que na cultura local os homens podem desposar quantas mulheres for capaz de sustentar. Como o casamento, ainda mais nestas circunstâncias, não estava nos seus planos, resolveu partir o mais rapidamente possível antes que a negociação se concretizasse. O comerciante ofereceu um bom dote pela donzela, mas isso não a deixou lisonjeada. Se minha memória não falha, foram alguns cavalos, camelos e vacas, além de um bom dinheiro. Como os casamentos por aqueles lados é mais uma transação econômica do que romântica, cometerei a indelicadeza de dizer que ela era uma donzela muito bem cotada no mercado.
Ajudada por uma das esposas do tio, conseguiu escapar sorrateiramente na calada da noite montada em um velho jumento, pois o tio tinha, de acordo com as leis locais, poder pátrio sobre a sobrinha, podendo obrigá-la a aceitar o casamento. No caminho, na escuridão do deserto, foi guiada pelas estrelas, tal como os reis magos e chegou de madrugada em Beiruthn, capital do país. Como brasileira, obteve o salvo conduto emitido pela embaixada brasileira e conseguiu deixar o Líbano apesar das pressões das autoridades locais.
Na volta ao Brasil aproveitou para conhecer a Grécia, país que imaginava encantado por causa da mitologia, sua antiga paixão. "Idealizava que os gregos fossem esculturas humanas. Ledo engano; povo é povo em qualquer lugar", comentava ela. Chegando ao Brasil ingressou na polícia feminina de São Paulo, onde teve contato com o submundo e contava até casos pitorescos, como o de um governador que visitava as delegacias disfarçado para ver se os policiais estavam trabalhando. Era o Janio Quadros. Logo ela percebeu que ser policial não era o que almejava para seu futuro e resolveu aceitar um trabalho de professora primária no Amazonas, ensinando para filhos de trabalhadores de uma construtora. A partir desta experiência, foi seduzida pela educação, que se transformou no seu objetivo de vida.
Quando se pensava que a Hamide envelheceria estoicamente como uma vestal, ela surpreendeu e aceitou os sedutores galanteios do jornalista Carlos Clementino Lacerda. Mas como ela sempre foi um pássaro que preferia voar só, livre de obstáculos e convenções, o casamento, apesar dos longos anos de namoro, durou pouco e lá foi ela construir o seu refúgio em meio a um matagal na pequena Embu.
Hoje ao lado dos filhos adotivos, Maria Augusta e Airton, vive em uma agradável casa em Embu, repleta de livros e rodeada por muitas plantas e flores. Ao ser cobrada por um discurso enquanto manejava com dificuldades a faca para repartir o seu bolo de aniversário, usou de poucas palavras para expressar a sua alegria por aquele momento: "Uma passagem bíblica diz que O Senhor é meu pastor e nada me faltará; eu digo mais: como tenho amigos certamente nada também me faltará e nunca estarei só durante a minha travessia".