EUROPA

 

Nasci na Europa, em 1928.

 

Era uma Europa diferente, aquela;  umas vinte e poucas nações endividadas, povos desconfiados, empobrecidos,  preconceituosos.

 

Dez anos já haviam passado do fim da primeira grande hecatombe, à qual se seguira um tratado de paz injusto e perverso, estopim da segunda guerra mundial..

 

Ganhadores e perdedores sofriam do mesmo modo as consequências da loucura. Milhões de mortos, cidades destruídas, fortunas imensas queimadas no “esforço de guerra”,  deixando a miséria por toda a parte.

 

 

A Liga das Nações tentava timidamente colocar um pouco de ordem nas coisas.

Mas as relações entre as nações estavam pautadas por reivindicações, exigências,  cobranças,  recriminações.

 

O Fascismo semeava uma cartilha de suspeitas, de inimizade, de desprezo por todos os povos circunstantes e abria caminho para o Nazismo e o Franquismo.

A república francesa estava doente e enfraquecida pelas discussões internas.

 

Dez, quinze anos depois daquela guerra, as nações ainda choravam os seus mortos.

 

Percebíamos já então, vagamente, que os Alpes, nos quais dez exércitos diferentes haviam lutado, não eram de ninguém – deviam ser de todos, de nós todos.

 

Deus os havia plasmado, com seu dedo criador, espelhando neles a  sua beleza, a sua majestade, para que pertencessem a todos os povos. Não a um, apenas. 

 

Ainda crianças, descobríamos que não existia, e nunca existira, naquele chão sagrado, nenhuma daquelas grossas linhas vermelhas,  que no atlas  escolar dividiam Itália,  França,  Alemanha, Áustria e  dez outras nobres nações.

 

Durante anos,  ainda ficamos recolhendo e dando uma moradia digna aos restos de centenas de jovens, cheios de vida e de esperanças, trazidos  de toda  parte, para serem sacrificados nas montanhas, para defender aquelas malditas  fronteiras.

 

As ossadas que recolhíamos eram todas parecidas;  por vezes era impossível descobrir de quem teriam sido.

Então as deixávamos  juntas, para que, perdida a identidade, a raça, a língua, o credo, a nacionalidade, pudessem readormecer  em paz.

 

Tinham sido Homens, todos europeus, envolvidos naquela trágica e inútil farsa.

 

Não contentes com isso, os grandes nos impuseram uma nova carnificina.

E recomeçamos a lutar, os amigos de ontem virando inimigos, e vice versa.

 

Como fomos ludibriados! Como transformamos em cinza o nosso bem estar!

Como o sorriso e a alegria de nossos rapazes – de todas as línguas – viraram dor e lágrimas de outras tantas mães!

 

Depois que o grande vendaval varreu o nosso mundo, eu saí de lá; não quis mais ser vêneto, italiano, europeu, não quis mais ajudar a repintar aquelas linhas vermelhas que separavam tantos irmãos.

 

 

Muito tempo passou.

 

Lentamente, com sacrifícios enormes, com renúncias dolorosas, quem ficou acabou convencendo-se que a vida, o bem estar, o futuro de cada um depende de todos; que somos frutos de uma única árvore; que somos irmãos, no sentido mais amplo e maravilhoso da palavra.

 

Quem ficou, lutou contra o preconceito e conseguiu transformar este sonho, esta utopia – que assim a imaginávamos naqueles tempos – numa realidade; sólida, viva, palpável.

 

O esforço político foi apenas uma parte da grande mudança.

O resto foi trazido pelo livre mercado, pela abertura, pela troca de conhecimentos, de habilidades, de invenções.

Pelo livre trânsito de gente, de idéias, de cérebros.

Uma mudança ampla, vinda de baixo, movida pelas razões mais diversas, desembocando enfim na União Européia.

É como uma grande orquestra, em que músicos de todas as nacionalidades, tocam uma única sinfonia.

Ainda há notas desafinadas? Sim, claro, sempre haverá.

Terá que haver, necessariamente, pois esta é uma outra parte da mudança.

Lembro-me que,  estudando história, no Ginásio, fiquei  impressionado com  a capacidade dos  exércitos romanos de submeter todas as tribos da Europa e impor uma só lei: a Pax Romana.

Aquele era um continente de escravos.

Deixaram maravilhas, à custa de guerras, miséria e chicote.  

Como é diferente a Europa de hoje!

Vige a Pax Européia,

Este é  um continente de homens livres, capazes de discordar, de colocar suas opiniões, de se bater por elas.

 

Lembro-me quando, ao voltar pela primeira vez depois de muitos anos, agarrava-me ao passaporte com reverência e carinho.

 

Procurava aqueles conhecidos olhares inquisidores,  dos guardas de fronteira, capazes de me fazer sentir  culpado de quem sabe quais crimes.

 

Apresentava prontamente os meus documentos a qualquer pessoa fardada que me aparecesse pela frente,  disposto a me explicar e resolver dúvidas.

 

Ficava surpreso, vendo que ninguém mais fazia questão de vê-los; experimentava então um misto de alívio e de receio.

 

Ao passar por uma fronteira, em lugar de ser examinado por guardas de olhar carrancudo e acusador, recebia sorrisos amistosos e palavras agradáveis.

 

Desconfiava que seria tudo um engano, ou  que tudo não passasse de uma grande armação. Logo seria detido por algum policial vestindo uma farda estranha, falando uma língua desconhecida e eu estaria perdido para sempre.

 

Em vez disso, de repente, estava acontecendo o impossível:

Um Francês entrando tranquilamente na Alemanha, de férias, levando no carro equipamentos, mantimentos, cigarros!

Ou um Sueco,  saindo sossegado da Itália, levando atrás um reboque confortável,  para atravessar a França e ir tomar sol na costa espanhola. 

Como se estivessem todos em sua própria casa !

 

Só então me dei conta que todos, onde quer que estejam, em qualquer parte da Europa, estão realmente em sua própria casa!.

 

Os homens que fizeram este milagre acreditaram em nós, os homens de bem.

 

E criaram uma Europa de verdade,  transformando  uma mera expressão geográfica, em uma grande e única nação.

 

A eles vai, com toda a modéstia e a humildade, meu agradecimento.

 

Tudo tem de ser feito devagar, sem grandes solavancos, sem sustos, adaptando-se umas às outras  as mentalidades e as maneiras de ser.

Tudo evolui, aos poucos, para a generalização, para a aceitação.

 

Ainda temos, graças a Deus, línguas diferentes, comidas diferentes, culturas diferentes; e a música, a arte, os gostos , os costumes, as tradições.

 

É como estar em uma grande quermesse de província, onde cada um monta a sua barraca e mostra o que tem de melhor, o que sabe fazer melhor.

 

Não somos mais inimigos, não sentimos mais aversão, raiva, inveja dos  outros; não aceitamos mais a idéia tola que qualquer um de nós possa ser, ou se sentir,  superior aos outros.

 

Conservamos nossas tendências, nossas opiniões, até os nossos preconceitos.

 

Mas há alguma coisa, hoje, que nos une e que, aos poucos, vai cancelar nossas desconfianças. 

 

É muito mais que o Euro, o que nos mantém unidos hoje.

Estamos abraçando o nosso novo “status”

 

Somos  cidadãos livres de um Continente livre.

 

Começamos a sentir-nos assim, a pensar assim, a agir assim.

Apesar do longo caminho que ainda falta percorrer,

Tudo isto  já é mais que um milagre!