“Eu quero falar Ofayé”:

A (in)visibilidade linguística no ensino e na pesquisa da língua materna indígena.

Prof. Me. Carlos Alberto dos Santos Dutra (Artigo apresentado ao Curso de Especialização em Cultura e História dos Povos Indígenas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul-UFMS em 2015.

Resumo: O artigo traz considerações sobre a língua materna do povo Ofaié, pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê que habita a aldeia Anodi, no município de Brasilândia-MS. Trata-se de um olhar de indigenista e historiador sobre a realidade de um povo dado como extinto, egresso de perseguições e massacres, e que hoje ocupa o espaço institucional sendo foco de diversas pesquisas acadêmicas e estudos científicos sobre a língua que se encontra em vias de extinção. Diante do contexto fragmentado e intercultural crescente experimentado por comunidades indígenas diminutas, com menos de dez falantes, como é o caso dos Ofaié, cabe indagar o que representa para a sua sobrevivência a preservação da língua? Para onde vai o povo que perdeu ou não mais faz uso da língua materna nas atividades rotineiras da aldeia? Qual a contribuição que a pesquisa e a escrita podem dar para o fortalecimento e sobrevivência da língua desta comunidade indígena? A experiência aqui relatada, metodologicamente vale-se do depoimento fornecido por indígenas diretamente ao autor, mesclados pela reflexão de jornalistas e pesquisadores, linguistas, antropólogos e historiadores que têm se dedicado ao estudo da língua e a história do povo Ofaié. Tudo com o objetivo de evidenciar os percalços enfrentados na luta em torno da preservação da língua, que permaneceu invisível por tanto tempo, e agora renasce e se transforma pela mão dos próprios indígenas com a grafia e sua reprodução em sala de aula.

Palavras-Chaves: Ofaié; Ofayé; Língua Indígena; Pesquisa; Educação Indígena.

INTRODUÇÃO.

A questão do desaparecimento de línguas indígenas no Brasil não é um fato recente na história contemporânea. Durante o processo do chamado descobrimento, estima-se que

[...] aqui habitavam 30 milhões de indígenas, 2 mil línguas diferentes em seu vocabulário e gramática. Os Incas e Astecas, no México somavam 20 milhões. Na península de Yucatan e nas montanhas no norte da Guatemala viviam 6 milhões de habitantes. Para se ter uma ideia do volume dessa população basta dizer que os conquistadores espanhóis vinham de um país cuja população não ultrapassava 3,5 milhões de habitantes. Portugal nesta época contava com pouco mais de mais de 1 milhão de habitantes e a Inglaterra 3 milhões. Só no Brasil, viviam mais de 5 milhões de indígenas. (DUTRA, 1994, p. 235).

            Na verdade, do total de línguas faladas no Brasil, pode-se afirmar que 75% delas se perderam ao longo dos 500 anos de colonização. Paradoxalmente, exemplifica Albert Denni Moore et al. (s/d, p. 37), só no Estado do Pará, “ainda hoje resistem 25 idiomas nativos (...), número equivalente ao de línguas faladas na Europa ocidental”. Apesar do número de línguas indígenas sobreviventes apontadas pelos estudiosos ser de aproximadamente 180 existentes no Brasil, o prognóstico é de que “o número de falantes no interior de cada grupo e região pode ser ainda bem mais reduzido”, explica o pesquisador do Museu Emilio Goeldi. Os números citados pelos autores acima ilustram bem essa situação:

Uma classificação recente lista 220 falantes de Yawalapiti – família Aruak, no Xingu – e 29 falantes de Arikapu – família Jaboti, em Rondônia. No entanto, linguistas que trabalham com essas línguas afirmam existir apenas três, e dois falantes, respectivamente, de cada uma. Certamente, o número de falantes é muito menor do que se pensava e, assim, a situação das línguas é ainda mais grave (MOORE, D.A; GALUCIO, A.V; GABAS JÚNIOR, N., s/d, p. 37).

Não diferente da realidade acima é o caso do povo Ofaié[1], do tronco linguístico Macro Jê, que vive no Estado de Mato Grosso do Sul, cujos falantes da língua materna apresentam um quadro de crescimento inversamente proporcional ao de sua população, conforme se pode observar na tabela abaixo. Se no final do século XIX e início do século XX (RIBEIRO, 1977, p. 85) os Ofaié foram estimados em 2000 indivíduos e, portanto, com igual número de falantes, a partir do vertiginoso declínio[2] da população verificado nos anos seguintes, seu número foi reduzido para 900 pessoas (NIMUENDAJU, 1913), depois para 200 (FONSECA, 1953), e por fim para 27 pessoas em 1977. De lá para cá, enquanto a população cresceu na proporção crescente: 58 em 2001 (FUNASA, 2001), 72 em 2008, e 110 em 2013, inversamente, o número de falantes regrediu para 22, depois 16, e por último, 09 falantes da língua materna, respectivamente, já contabilizando o falecimento recente da falante, professora Marilda Xartã Ofaié, ocorrido em março de 2015[3].

Mas, o que seria mesmo uma língua em perigo de extinção? Os autores acima dão a entender que uma língua se encontra em perigo de extinção quando cessa a transmissão de uma geração para outra, subsequente. Por isso somente o estudo da língua não garante a sua sobrevivência. O que nos leva a reconsiderar nos projetos e estudos linguísticos desenvolvidos pelas Universidades e escolas indígenas, a obrigação de incluir e considerar o interesse e a “vontade de transmitir o idioma às crianças” pelos integrantes dessas comunidades. Existem “várias metodologias de revitalização [de línguas indígenas] sendo utilizadas mundialmente” (MOORE; GALUCIO; GABAS JÚNIOR, s/d, p. 37), e cada vez mais os povos indígenas tornam-se partícipes dos processos relacionados à permanência da língua materna como valor cultural identificador de suas etnias.

Sem desprezar a necessidade de se ter informações cientificamente corretas através de levantamentos confiáveis sobre a situação de cada língua falada no Brasil, tarefa somente possível de ser desenvolvida por profissionais da linguística em contato direto com as comunidades indígenas, há de se ter presente que a ciência, nestes casos, está lidando com vidas humanas e processos históricos distintos. Ou seja, ao lado da pesquisa quantitativa e qualitativa realizada sobre o universo linguístico dos povos indígenas há de se ter cuidado com o universo e contexto das relações sociais, econômicas, políticas e simbólicas aos quais estes povos se encontram inseridos.

E ainda mais. Muitas vezes o maior responsável pelo desinteresse no uso da língua materna reside no fato de esses grupos estarem submetido a processos políticos e culturais tensos e de grande vulnerabilidade, tais como: disputas fundiárias, deslocamentos forçados e hegemonia da língua portuguesa como prevalecente no modelo de ensino formal.

É este o olhar que o interessado no estudo e preservação da língua materna dos povos indígenas deverá observar e imprimir na sua pesquisa participante, deitando o ouvido no coração latente da comunidade objeto de sua observação, percebendo suas palpitações e ansiedades. Sobretudo acompanhar os pequenos grandes passos que, no caso em questão, os Ofaié deram e estão dando em direção à recuperação de sua língua, tendo no horizonte a esperança de que a pesquisa e os estudos linguísticos devam contribuir para o fortalecimento da transmissão oral e a revitalização dos conhecimentos da cultura no espaço de reprodução privilegiado construídos por eles mesmos, que é a educação escolar indígena.

Neste sentido, a documentação e a criação de acervos com os materiais recolhidos e produzidos durante as pesquisas realizadas dentro e fora das aldeias, configuram-se valiosos instrumentos para despertar o interesse no uso comum da fala e da escrita da língua materna. Representam elementos essenciais para a sobrevivência e o reconhecimento da identidade étnica dos povos indígenas. Considerando, sobretudo o avanço tecnológico que hoje está ao alcance dos povos indígenas e suas instituições escolares mantidas pelo Estado brasileiro, a preocupação com a preservação da língua materna conforma meta imperativa.

A título de ilustração cabe lembrar que nos últimos dez anos, mais de uma dezena de acadêmicos[4], de diversas Universidades do país e também do exterior concluíram suas monografias, dissertações e teses nas áreas da linguística, comunicação, letras, antropologia e história versando sobre o povo Ofaié; pesquisas que contaram diretamente com a participação de monitores indígenas falantes dessa comunidade. Os materiais produzidos, armazenados em gravações, anotações e outras informações de maneira permanente, porém, nem sempre permaneceram acessíveis àqueles que colaboraram na elaboração das pesquisas com o fornecimento de dados empíricos. Tênue, portanto, ainda é o liame que une o conhecimento linguístico, o engajamento social e a luta política pela sobrevivência diária travada pelos povos indígenas no Brasil.

Deve-se, portanto, estar atento à relação construída entre a academia e as línguas indígenas. Nas palavras pedagógicas de Colete G. Craig (2000), esta relação é perpassada por quatro questões básicas:

a) uma questão ética-teórica do pesquisador face aos dados na relação com a teoria; b) uma questão ética-política do pesquisador no âmbito da própria academia; c) uma questão ética-compromissada em relação às línguas indígenas que pesquisa, não as tratando como se fossem desprovidas de sujeitos reais e concretos (aqui-e-agora); e d) uma questão ética-alteridade para com as comunidades indígenas que a academia não tem muito como prática ou em consideração (SOUZA e RODRIGUES, 2009, p. 5-6).

 

Isto porque, segundo a autora existe uma “inquietude” entre certos linguistas acadêmicos e as comunidades indígenas, relação esta que está envolta de “um estado de tensão constante”, parte dela advinda dos “interesses dentro da própria academia e (...) também o interesse das comunidades indígenas em questão” (CRAIG, 2000, p. 51, tradução nossa). Para ela, é fundamental a aliança entre os linguistas e a comunidade indígena[5]. Não sem razão, lembra a pesquisadora Lucy Seki que há muitos linguistas que se preocupam não só com a ciência, “mas também com o aspecto social da questão, e colocam a necessidade de estudar as línguas minoritárias tendo em vista contribuir para auxiliar as comunidades que assim o desejarem no sentido de preservar e/ou revitalizar suas línguas e sistemas de conhecimentos” (SEKI, 2000, p. 246).

Com o presente artigo firmamos convicção de que “o coração de uma língua são os seus falantes nativos”, e que toda a informação recolhida e esforços realizados no sentido de recuperar a língua materna devem reverter diretamente ao povo envolvido na forma de subsídios didáticos que favoreçam seu soerguimento, pois “para uma língua ameaçada, a primeira tarefa é fazer com que os falantes nativos a falem de novo” (HINTON, 2001, p. 13). Ou seja, é preciso auscultar o som da alegria e do lamento entoado nas aldeias balbuciado por povos indígenas esquecidos da história brasileira e cujas línguas se encontram nos últimos estertores, encurtando a distância entre a voz de seus anciões e os ouvidos e preocupações da academia.

Porque nem sempre os indígenas, os “protagonistas da mudança” (OLIVEIRA, 2014), possuem as rédeas do processo ensino-aprendizagem. Na maior parte das vezes carecem de espaço para postar a voz e serem contemplados nos conteúdos da educação escolar pretensamente indígena e que rotineiramente descuida no resguardo dos valores da cultura desses povos e tampouco lhes aponta a esperança de sobrevivência desejada. [...]