Dizem alguns que vivemos de lembranças. Nem sei ao certo quem chegou a dizer uma coisa dessas, mas quem sou eu para discordar de alguma coisa ou de algum intelectual? E volta e meia nos surpreendemos com as lembranças ou elas aparecem tão sutilmente que nem nos damos conta que pensamos nelas.
Lembro-me de que certa vez caminhava pelo calçadão da praia e sentei-me em um dos bancos e vislumbrei a paisagem recortada do litoral e o verdor do mar infindo e tranquilo se espraiando aos confins que eu não conhecia.
O sol batia a pino num meio-dia seco, sem vento, sem novidades. Protetor solar nem era artigo de luxo, mas questão de necessidade para resguardar a pele já cansada de tantos anos vividos. Anos contrários aos últimos: repletos de solidão, da saudade das pessoas marcantes da vida da gente. Pessoas que eram a vida da gente.
Eu até que tinha sorte, apesar de não acreditar nesse tipo de coisa (a sorte), pois, na minha idade, muitos se encontravam jogados em asilos, em hospitais psiquiátricos, para idosos, entre outros mais. Nunca me achei, no entanto, um idoso no auge dos meus 65 anos. Vivi e vivo de maneira mais intensa que posso. Claro que hoje a disposição não é aquela de outrora, nem a paciência dos jovens era tão grande para aturar nossas pequenas manias ou ouvir nossas histórias.
Não me casei, não tive filhos e isso também nunca senti necessidade. Meus amigos dizem que quando chegasse a uma certa idade, a natureza reclamaria e que viria cobrar-me isso. Se ela um dia veio, deve ter errado de porta ou eu nunca a escutei chamar.
A verdade é que conheci tantas coisas, tantas gentes, tantos mundos, tantas alegrias, tantas decepções, tantos ódios, tantos amores, que não creio que viesse a parar sequer para pensar, isso se tivesse tempo também, em constituir família. Para mim, nunca senti necessidade disso. Nunca mesmo... Nem agora, aqui, sentado, sentindo essa maresia sonolenta e aprazível.
Por que vim morar no litoral se sempre gostei de montanhas? Talvez porque os momentos mais marcantes de minha vida tenham sido no litoral. Lembro de minha primeira vez numa praia. Nem era a mesma que eu estava agora, aquela foi a única vez que lá estive e creio que, nesse instante de minha vida, não volte mesmo lá.
Lembro que passava umas férias com os parentes na capital e que aconteceu de um dia pegarmos a estrada até o litoral. Eu devia ter meus doze ou treze anos e me lembro que todos os meus amigos e colegas contavam da ansiedade e do deslumbre quando viam o mar já na descida da serra. Minha sensação de ver o mar? Indiferente. Não que eu seja insensível, mas, sinceramente, não me chamou muito a atenção. E engraçado que estava eu ali, de novo, diante dele como da primeira vez que o vi.
No entanto, a praia em que me encontrava era especial. Lembro que eu viera nela primeira vez e a achara diferente da outra que havia ido quando adolescente. Mas, ficou só nisso. Era a mesma coisa de sempre: areia, gente, guarda-sol, camarões fritos no espeto, barraquinhas e o mar se espraiando para onde eu não sabia.
Voltei ali diversas outras vezes. Quem mandou eu ter amigos que gostavam mais de praia que de montanhas? Por essas e outras que sempre que voltava nesta praia era acompanhado, até o momento em que vim sozinho por definitivo. Para falar a verdade eu não sei dizer ao certo o porquê. Inconscientemente seriam as lembranças? Vejamos:
Nesta praia que aprendi a dirigir um carro; nela me apaixonei de verdade pela primeira vez; nela passei meu primeiro Natal e Ano-Novo sem ser em família (e isso, na época, dava uma sensação de crescimento, de amadurecimento, de liberdade, de autonomia); nela que chorei a morte de minha mãe; nela que chorei o nascimento de meu sobrinho; nela que perdi meu melhor amigo que, aliás, foi quem me trouxera aqui pela primeira vez. Pois é, não consigo mesmo achar motivos para ter vindo parar aqui. Esse meu lado debochado e irônico.
Quando me aposentei, eu já estava mesmo solitário. Irmã e família distantes, no interior; melhores amigos e amigos já mortos ou em mundos completamente distantes e inatingíveis. Graças a Deus que ao menos minha lucidez se conservava comigo.
Hoje meu círculo social restringe-se a um bom-dia para os vizinhos de rua, para a atendente e o caixa da padaria, a uns poucos colegas de umas poucas conversas, essas coisas. Por que eu fui ficar tão isolado assim? Por que fui me isolar assim?
Entretanto, não sou eu o grande culpado, se é que se pode dizer que haja um. Tudo mudou muito: alarme para casa, alarme para carro, alarme se alguém se aproxima, alarme para se alguém esbarra em você sem querer. Tantos medos e, o pai de todos eles, o medo de ser assaltado, sequestrado, mal-amado... E assim vamos nos fechando. Daí fico perguntando a mim mesmo: “Por que Deus não me leva logo como levou os outros?” e eu mesmo em seguida me respondo: “É bom mesmo ele se preocupar com outras coisas e me deixar quietinho aqui no meu canto”.
Medo de morrer? Quem? Eu? Imagina! Nunca tive medo de morrer. Está bem... Está bem... Tenho medo sim, e quem não tem? Mas, não é medo da morte em si que eu tenho... Tenho medo de algumas mortes: assassinato, por exemplo; de ser enterrado vivo... Só de pensar me angustio.
Lembro da primeira vez que vi uma pessoa morta. Foi uma tia, irmã de meu pai. Lembro do velório na casa dela, o caixão na sala. Não me lembro dela dentro dele: só me lembro do caixão. Lembro que foi a primeira vez que fiquei uma madrugada inteira acordado e brincando na praça que tinha perto da casa dela com meus primos. Cansado, meus primos foram dormir. Eu não tinha sono. Lembro que peguei uns gibis e passei o restante da madrugada lendo. Lembro que também foi nesse dia que percebi as falhas do caráter humano: enquanto velavam o corpo de minha tia na sala, meu tio, esposo dela, agarrava outra mulher nos fundos da casa. Nunca contei isso a ninguém... E também nunca senti a necessidade de confessar isso, se é que eu posso pensar que eu devesse confessar alguma coisa.
Mas a morte de minha tia não foi meu primeiro contato com a morte, apesar de ela ter sido a primeira pessoa que fui, digamos, velar. Quando era ainda criança, por volta dos quatro anos, ou cinco, algo assim, lembro que tinha pavor de meu avô paterno. Lembro também que todos os dias ele vinha nos visitar. E, nem sei como ao certo, ainda vislumbro sua silhueta chegando em casa: vestido em um terno claro, gravata e chapéu, sempre tão bem alinhado e nunca permitiu que sequer um dos filhos ou um dos netos. Diziam os parentes que até mesmo minha avó, sua esposa, nunca o vira sem camisa, de bermuda muito menos nu. Sim, tenho que ressaltar que ele era fruto de uma geração bastante conservadora e moral, religiosa e austera.
Não entendi, e eu era muito novo para tanto, porque um dia ele não viera visitar-nos. Foi então que senti que tudo que ele fazia quando vinha me fazer falta. Seu beliscão no meu nariz, ser pego em seu colo e ouvi-lo repetir toda vez: “Esse é o único que vai levar meu sobrenome”. Pois sim: meu pai era o único filho homem de vovô e eu era o único filho homem de papai. A família sempre gostara de lembrar a predileção de vovô por mim por esse fato. Pobre vovô. Deve ter se decepcionado comigo, já que não casei nem tive filhos, que me lembre ou que tenha registrado, naturalmente.
Voltando à morte do vovô, não entendi e senti falta dele naquele dia. Só lembro que entramos em um carro, com parentes já conhecidos, num dia frio e chuvoso. Ou será que a lembrança do frio e da chuva eu esteja inventando? O fato é que morte, para mim, até hoje, parece carregar junto essa imagem de dia frio e chuvoso.
E, por falar de vovô, lembro-me do meu avô materno. Esse sim eu sabia que amava. Vinha menos que o outro nos visitar, morava em outra cidade, mas eu sentia meu peito estufar de alegria e os dias mais chuvosos se ensolararem. A única coisa especial que me lembro dele é que um dia ele veio e eu brincava dentro do tanque de lavar roupas e o via na cozinha conversando com minha mãe tomando café.
Engraçado que não me lembro dele morrendo ou do dia de sua morte, apesar de ser mais crescido que da vez do avô paterno. Sempre que penso nele, lembro daquela vez no tanque e ele na cozinha. Será que foi a última vez que o vi vivo?
Senti meu ombro ser tocado por uma mão e uma voz ainda pouco conhecida dizer:
– Então, o que este meu amigo matusquela faz aqui sentado nesse sol ardente? – e sentou-se ao meu lado.
– Pois é, meu querido amigo mais velho. – eu disse. – Estou com visitas.
Ele olhou para a praia meio deserta procurando.
– E onde estão? – ele perguntou.
– Em minhas lembranças, ora essa.
Rimos com ternura e ficamos retomando nossas visitas. Intercalávamos entre as dele e as minhas. Mas isso já é uma outra história.