WERNER LEBER

ÉTICA

A ética, tão mencionada, não é um tema fácil. Todos dela falam. Mas do que falam afinal? Tenho a impressão de que com a ética ocorre o mesmo que com a liberdade, tão bem expressa nas palavras de alguém: “Liberdade, não há quem te explique e também não há quem não saiba quem és”. A ética é o estudo das questões morais. A ética ocupa sempre espaços centrais nos estudos de filosofia, mas também do direito, da administração, da economia, das sociedades corporativas, da medicina, da biologia. Há, muitas éticas, as tais éticas profissionais. Em filosofia, todos as correntes de pensamento, desde as antigas às modernas, ocuparam-se com a ética. Como não ver os tratados de Platão, de Marx, de Nietzsche, de Habermas como temas éticos? E Kant, Rousseau, Hegel, Sartre, Levinas, Foucault, Hannah Arendt e tantos outros? Todos e todas, sem exceção, esbarraram em questões éticas quando não delas trataram explicitamente como, por exemplo, Aristóteles, Nietzsche, Sartre e Kant.

Questões éticas e a moralidade

Há situações em que a Lei Ordinária (“normas jurídicas”), coincide com preceitos ético-morais. Por exemplo, matar, roubar, jurar falso testemunho, caluniar, chantagear, falsificar documentos, são atitudes passíveis de punição legal porque há Lei Constitucional que prevê sanções e punições para quem assim agir, como também eticamente essas atitudes são reprovadas. Nesse caso, ética e Lei coincidem. Na vida prática, as regras morais que regem os espaços sociais desaprovam essas atitudes porque elas são nocivas para a vivência em sociedade. Todavia, há situações reprováveis moralmente (eticamente) que não são necessariamente passíveis de punição legal. Se, por exemplo, em um almoço de família, onde imperam os costumes ocidentais da civilização atual, alguém resolver comer com as mãos em vez de usar os talheres, certamente será engraçado, patético e por fim será moralmente reprovado por depor contra as regras morais instituídas. Mas não há um Lei Civil expressa que possa condenar a pessoa que assim proceder. A pessoa não será presa ou levada a pagar multa por esse ato. Ela será, certamente, reprovada moralmente pelo seu grupo porque isso demonstra desajuste social ou desrespeito e desafio às regras estabelecidas. Claro também, se essa pessoa estiver em uma tribo indígena ou em um mosteiro budista, comer com as mãos não seria um problema. Daí que, cada sociedade (ou grupo social) tem seus valores e modos aceitos de proceder e outros que são reprovados.

Todavia, o que se discute neste primeiro capítulo é: o que devo fazer? Não há uma regra ética universal previamente estipulada. Decisões éticas exigem autonomia de quem as toma. Muitas vezes elas precisam ser tomadas em pouco tempo porque a situação assim o exige. O mais importante é sempre ter consciência de que nós somos dotados de senso ético, por meio do qual tomamos decisões e nos posicionamos em relação às situações vivenciais que enfrentamos. E, desse modo, às vezes acertamos e outras vezes não.

Como ser moral em situações inusitadas

Existem situações ético-morais que conflitam a moralidade cultivada em âmbito privado ou familiar com aquela dos espaços sociais e públicos. Por exemplo, é possível e provável que muitas pessoas que confessam a tradição cristã tenham o hábito de fazer orações em família antes das refeições. Mas quando se está em público, em um restaurante ou uma festa, por exemplo, isso nem sempre é possível porque no contexto existem ateus, agnósticos e pessoas que cultivam outros hábitos e que também precisam ser respeitados. Vejam, nem estou a defender esse hábito e nem estou o condenando. Apenas sei que tal situação pode ocorrer. Aqui vale então o senso moral: eu preciso diferenciar minha ética privada e familiar daquela que é praticada em espaços públicos, espaços esses que inclui também a escola. Vou dar outro exemplo. Você é judeu ortodoxo e, como se sabe, judeus ortodoxos não comem alimentos que contenham mistura de carne e leite. Uma pizza ou estrogonofe (já estou com fome), por exemplo, pode conter leite e carne se ela tiver queijo e linguiça calabresa, ou derivado de leite e carne, caso do estrogonofe. Se você for convidado por seus amigos a visitar a casa deles, se eles não souberem que você é judeu e te oferecerem na maior das boas intenções uma pizza ou estrogonofe com esses ingredientes, o que você faria? Você está diante de uma situação que envolve o senso moral. Você não quer trair a sua tradição, mas também não quer desagradar seus amigos que tão bem te receberam. E agora? É o dilema! A vida prática envolve sempre conflitos éticos. Outra situação. Em casa e também em público, meus pais nunca obrigaram a mim e a meus irmãos a chamá-los de senhor e senhora. Só me dei conta desse problema quando, em casa de amigos, via que eles se dirigiam a seus respectivos pais, como senhor, e às suas respectivas mães, como senhora. Vendo que eu assim não procedia, me censuravam: “você não chama sua mãe de Senhora?” Bem, seja como for, na escola, que é um espaço público, fui obrigado a chamar meus professores e professoras, respectivamente, de senhores e senhoras. Isso foi algo estranho para mim. Esse é um conflito entre a moral de âmbito privado e aquela de âmbito público. Creio que vocês compreendem o quero enfatizar. É bem provável que vocês também já tenham vivido situações assim. Elas são bem mais comuns do que a gente imagina.

Ética e Moral: diferenças

Ética é o estudo das questões morais. Muitos a chamam também “Filosofia Moral”. No entanto, é inadequado traduzir moral por ética ou vice-versa, ainda que existam relações e imbricações muito próximas entre elas. A ética é o campo teórico da filosofia (do pensamento e da capacidade avaliativa dos humanos) que analisa as questões morais. A ética ocupa-se em estudar os valores morais. O estudo dos valores chama-se “axiologia”. Todas as sociedades têm preceitos (indícios, regras) e valores morais. A moralidade varia conforme os valores culturais de cada contexto ou grupo social, como foi dito acima. De um modo basilar, dizemos que a ética se ocupa da verificação e do entendimento da seguinte questão: por que o ser humano é dotado de senso moral, isto é, da capacidade de reconhecer o certo, o errado, o justo, o injusto, o bem e o mal?  Por que o ser humano é dotado da capacidade de fazer opções e de tomar decisões? Ainda que essas noções optativas e avaliativas variem de uma sociedade (de uma cultura) a outra, todas as têm. A ética estuda também “como que” (“desde onde”) racionalmente os seres humanos estabelecem as regras morais. Essas regras são construções socioculturais. Dizemos que moral, em linhas gerais, é o conjunto de regras e normas de procedimento institucionalizado e aceito como válido em determinado grupo social. Já a ética é o estudo sistemático do “porquê” destas regras. “Que princípio filosófico orienta os critérios e normas que se considera válidas?” é a questão investigada pela ética. Dizendo o mesmo somente de outro modo, a ética estuda e procura entender como que os seres humanos institucionalizam e justificam as normas que consideram válidas. A ética é o campo filosófico e, portanto, reflexivo-investigativo das questões que fundamentam a regras morais.

Valores

Certa vez alguém escreveu a seguinte frase: “os valores não são, mas valem”. Se não me engano, ela é tributária de Miguel Morente ou de Adolfo Sanches Vasquez, ambos espanhóis. Nós humanos temos valores. Somos dotados de capacidade que denominar “julgativa”. Até mesmo o mais vil dos bandidos tem valores e se sente no direito de julgar outros criminosos. Vou dar um exemplo: é comum nas prisões brasileiras, os prisioneiros condenarem estupradores e, assim que puderem, matá-los. Mas vejam bem, quem está a julgar o estuprador são outros criminosos – tão ou pior que ele - que mataram pessoas a sangue frio em assaltos, que tiraram a vida de inocentes da forma mais cruel possível, que praticaram roubos milionários em bancos lesando o patrimônio de milhares de pessoas, que assassinaram seus próprios parentes a marteladas e pauladas, que foram traficantes e levaram milhares e milhões de jovens às drogas, jogando-os no crime e na morte, desgraçando a vida de seus pais, amigos e parentes. Como pode então criminosos desse naipe sentirem-se na condição de julgar alguém que cometeu estupro? Em que o estupro é pior que os crimes que citei acima? Mas o fazem. Se eles são os melhores possíveis, é sempre uma questão de senso moral, de capacidade avaliativa. Para mim, quem matou alguém a sangue frio para dele tirar um automóvel é tão ou mais sem valor que um estuprador. Mas vejam que os criminosos apenados das prisões e penitenciárias não pensam assim. Sentem-se no direito de condenar um estuprador em nome de “seus bons valores”.

O ser humano é dotado de senso moral – a capacidade avaliativa diante de situações que exigem decisões. O que escrevi acima é meu senso moral diante daquele problema. Talvez muitas pessoas sentem-se alinhadas com os pensamentos de assassinos que julgam estupradores como piores que eles. Creio que esse senso comum é bem forte e bem difundido no Brasil. Basta assistir esses programas televisivos e demagógicos sobre polícias e bandidos dos finais de tarde da TV brasileira para se convencer que até mesmo jornalistas e outros comentadores se alinham facilmente com pensamentos do tipo que acima apontei.

Valores ético-morais não se confundem com valores econômicos. Valores econômicos são só preços. Quanto vale ser honesto? Seria difícil traduzir esse valor em um preço econômico. Há, todavia, pessoas que acham isso possível. Esses, aos meus valores, são corruptos, vilipendiadores e canalhas. Talvez vocês não concordem comigo por vivermos em uma sociedade onde praticamente tudo está traduzido em preços. Não seria também por isso que estamos nos interrogando a respeito da corrupção que grassa no Brasil, da saúde falida, da falta de estradas, da falta de infraestrutura portuária e etc? E olha que hoje o montante arrecado com tributos é o dobro do que era há dez anos. Mas nada mudou: o Brasil enriqueceu, tornou-se a 8ª economia do planeta, mas continuamos corruptos como sempre fomos – quero dizer: a corrupção continua nos patamares em que sempre esteve. Não seria por confundir valor com preço que os novos ricos brasileiros cultivam hábitos de consumo exagerados, como comprar apartamentos luxuosos e automóveis dos mais caros para se exibir? Uma dezena de jogadores de futebol se incluem nesse rol. Está aí uma questão onde valor é confundido com preço. Nem todas as pessoas que têm objetos de vultuosos preços têm bons valores. O fato de acharem que valor é o mesmo que preço, já mostra o quão pouco sabem diferenciar consumo de valores, ou o quanto seus valores se reduzem apenas ao consumo. É daí que vem aquela frase tão comum nos dias atuais: “meu sonho de consumo é....”. Aqui então cabe um outro comentário que li recém em alguma revista por aí: “devemos educar nossos filhos para que aprendam o valor das coisas e não apenas seus preços”. Não seria esse um grave problema atual? Vejam, nessa minha pergunta já se encontra um valor moral (um pressuposto moral) que eu cultivo. Muitos não concordariam comigo, bem sei e lamento.