Ética cristã: há uma ética cristã? (5)

A ética não tem crença. Não tem denominação religiosa. Não tem deuses nem templos. Então por que alguns indagam sobre uma ética cristã?

Vamos partir do que sabemos: cristão é aquele que foi batizado e segue os ensinamentos de Jesus, procurando imitá-lo a fim de que os valores ensinados pelo Nazareno não sejam apenas um discurso vazio, nem só um conjunto de escritos de quase dois mil anos. Ser cristão é atualizar esses ensinamentos de forma que se possa confirmar sua contemporaneidade. Embora tenha uma história longa, o cristianismo não é uma crença para adoração estática, mas que exige tomadas de posições. É uma fé que exige compromisso de quem a abraça. É diferente do budismo, por exemplo, que exige mais introspecção. O cristianismo exige ação.

A propósito disso, as palavras de Jesus, no evangelho de Mateus, (7,21), não deixam dúvida. Importa mais a prática do que a recitação de fórmulas: “Nem todo aquele que diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade do meu Pai”.

O evangelista Marcos (7,5-8), diz algo semelhante, quando coloca Jesus discutindo com os fariseus a respeito de ritos e tradições:

Perguntaram-lhe, pois, os fariseus e doutores da Lei: «Porque é que os teus discípulos não obedecem à tradição dos antigos e tomam alimento com as mãos impuras?» Respondeu: «Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, quando escreveu: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Vazio é o culto que me prestam e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos. Descurais o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens.» (grifo no original)

E se o mundo, ou a sociedade em que vivemos, ainda tem mais violência, corrupção, pobreza... do que solidariedade e justiça; amor e altruísmo; alegria e felicidade não é por fatalidade. Não é porque essas categorias e conceitos sejam sonhos complexos e difíceis de serem alcançados, mas porque aqueles que dizem seguir os ensinamentos de Jesus de Nazaré ainda não o fazem radicalmente. O fazem com palavras e não com seus atos. Esquecem as palavras do apóstolo Tiago (Tg 2,17): “a fé sem obras é morta”.

Essa não é uma reflexão que nasce de forma aleatória, mas, pelo contrário, está fundamentada nas palavras do próprio Jesus, segundo o afirma Mateus, (7,24-27):

Todo aquele, pois, que escuta estas minhas palavras, e as pratica, assemelhá-lo-ei ao homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha. E desceu a chuva, e correram rios, e assopraram ventos, e combateram aquela casa, e não caiu, porque estava edificada sobre a rocha. E aquele que ouve estas minhas palavras, e não as cumpre, compará-lo-ei ao homem insensato, que edificou a sua casa sobre a areia. E desceu a chuva, e correram rios, e assopraram ventos, e combateram aquela casa, e caiu, e foi grande a sua queda.

Também sabemos que ética é a reflexão sobre os comportamentos morais e estes são reflexo dos valores construídos, defendidos e vividos por uma sociedade específica. A ética, portanto é um retrato dos comportamentos e atos que podem ser caracterizados em sua moralidade. Não, devemos esquecer, além disso, que os comportamentos e os valores defendidos e preservados em uma sociedade específica resulta de uma construção cultural. E, como reflexo de uma cultura, os valores e a própria moralidade dos atos estão sempre em construção.

Aqui podemos perceber um ponto em comum. E uma explicação sobre o porquê de uma ética cristã: trata-se de refletir sobre os valores cristãos. E aqui, também, está a explicação para o fato da sociedade dita cristã, continuar não vivenciando os valores cristãos: é porque a ética cristã diz respeito à reflexão sobre os valores cristão, mas não é a vivência desses valores.

Esse portanto é o desafio da ética cristã: deixar de se constituir apenas como reflexão sobre os comportamentos dos cristãos, para se concretizar na moralidade dos atos dos cristãos. E aqui se impõe a indagação sobre como devem ser os comportamentos e a moralidade dos cristãos.

Uma resposta negativa seria dizer que não é o que se tem feito até o tempo presente. O cotidiano da sociedade em que estamos inseridos, em que pese ser chamada de sociedade cristã, evidencia e prevalecem valores contrários à queles valores e comportamentos que estão presentes no cotidiano da vida dos cristãos.

Numa visão positiva poder-se-ia dizer que a ética cristã – a reflexão sobre os comportamentos dos cristãos – além de ser essa reflexão, teria a incumbência de ajudar não só na análise dos comportamentos, como também na sugestão de quais os comportamentos que se enquadram nos princípios cristãos. E para isso o fiel teria que pautar sua vida a partir daquilo que é a vida e ensinamentos de Jesus. E isso acontecendo, a sociedade seria, autenticamente cristã. E o trabalho da ética cristã seria uma análise de fatos e não de propostas.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura - RO