Estudo Dirigido do capítulo IX (Mobilidade Social. Ricos e Pobres) da obra "A civilização do Renascimento" (1994) de Jean Delumeau e do filme "O Mercador de Veneza" (2004)

 

Autoria: Milene do Carmo Gomes, graduação em História pela UFJF.

Estudo Dirigido:

DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento.  Vol.1. Lisboa: Estampa,1994. (Cap. 9)

Filme: O Mercador de Veneza (2004), dir. Michael Radford. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bKKuPYcaDt4 

 

1- Jean Delumeau

 

De origem de uma família religiosa, Jean Delumeau nasceu em 18 de junho de 1923 na cidade francesa de Nantes. Estudou em colégios tradicionais como o Lycée Masséna em Nice, e, posteriormente, no Lycée Thiers em Marselha. Com a conclusão no ensino básico, ingressou na Escola Normal Superior de Paris, onde formou-se como historiador, sendo professor de História na École polytechnique, na Universidade de Rennes II e na Universidade de Paris I. Delumeau foi membro do conselho editorial de diversas revistas acadêmicas, além de visitar várias universidades em inúmeras partes do mundo, bem como ser membro honorário do Instituto Universitário de França e da Academia Europeia.

Conhecido como “historiador das religiões", Jean Delumeau se tornou no final dos anos 1970 o principal nome da “História das Mentalidades”, movimento historiográfico que renovou os estudos históricos, enfatizando temas como crenças religiosas, cultura popular, medo, entre outros, para além das abordagens da História Política e Econômica. O historiador também se dedicou a estudar o período do Renascimento, com uma das obras mais importantes, “A civilização do Renascimento” (1994), além de  “História do Medo no Ocidente” (1978), “A Confissão e o Perdão” (1990), “Mil Anos de Felicidade, O Que Sobrou do Paraíso” (2000), “De Religiões e de Homens” (1997) e “O Pecado e o Medo” (1983). Delumeau faleceu em janeiro de 2020 aos 96 anos.

 

2- Ideias centrais do autor no capítulo IX: “Mobilidade Social. Ricos e Pobres”

 

Jean Delumeau no capítulo IX - “Mobilidade Social. Ricos e Pobres.” da obra “A civilização do Renascimento” (1994) aponta os movimentos da dinâmica social da sociedade europeia, sobretudo nos séculos XV e XVI. Ou seja, o fenômeno de mudança de posição dentro da hierarquia social que se encontrava em um estágio de formação, está sob a ótica das transformações sociopolíticas, culturais, religiosas e econômicas do período, que desencadearam a ocorrência da mobilidade social na modernidade europeia. 

Ao contextualizar os aspectos sociais da civilização do Renascimento, o autor disserta a respeito da existência de trocas entre países, principalmente no âmago das artes e da cultura, sentido preponderante à época do humanismo, bem como ao contexto histórico do Renascimento, apresentado acerca de viagens de intelectuais, pintores, músicos, arquitetos, escultores e artistas de um modo geral aos países europeus, tal como viagens de espanhóis e portugueses a fim de se  instalarem nas recém terras conquistadas na América. A importância dessas trocas que se relacionam com a migração de camponeses para as cidades, fator que se estabelece muito em virtude da expulsão campesina pelos donos de rebanhos de carneiros, implica no crescimento demográfico urbano e na proliferação de pestes mortíferas nos centros urbanos em formação inicial.

É evidente que os camponeses saíam dos campos fugidos dos proprietários de rebanhos, e nesse sentido, buscavam ascensão social na dinâmica urbana. Todavia, a situação não seria homogênea e benéfica para todos, pois o número de pobres e marginalizados era crescente, embora existissem alguns mecanismos que possibilitariam certa ascensão social, como o comércio, a migração para as colônias, bens fundiários, os ofícios e a Igreja.. Nesse período, há a formação da burguesia salientado pelo comércio- que o autor coloca como um “estádio de transição” (DELUMEAU, p. 280, 1994) ; o numeroso desenvolvimento da classe média; a ascensão de famílias (como os Médicis na Itália) e o declínio de outras, movido pela redistribuição da renda; além do crescimento de populações urbanas, onde os pobres ficavam cada vez mais pobres e os ricos cada vez com condições melhores (sobretudo no século XIV). 

Príncipes e aristocratas financiam as manifestações artísticas e culturais típicas do Renascimento que levam escritores como Shakespeare, Erasmo e Maquiavel, além de artistas, conquistadores e reformadores ambicionarem uma possível ascensão social  através de seus ofícios. Os mais pobres, por sua vez, foram vítimas diretas do aumento dos preços, impostos e inflação, como por exemplo, o acréscimo no preço da carne, trigo e vinho, produtos agrícolas que geraram lucro aos grandes proprietários, e não aos camponeses. Os mercadores transformavam em bens fundiários aquilo que ganhavam, isso mostra como a dinâmica social estava embutida no cenário urbano congruente às relações comerciais.

Delumeau descreve nesse contexto de demarcações de diferenças entre ricos e pobres que as casas dos aristocratas e reis eram organizadas em volta de pátios interiores, e havia a construção de palácios de descanso e divertimento e vilas, ações que colaboravam para o afastamento da aristocracia e da realeza para com os pobres e marginalizados das cidades, fazendo com que os encontros fossem mais incomuns. Outro exemplo dessa separação está no casamento entre ricos e nas festas de lazer e diversão que contavam com um número restrito e objetivo de pessoas do mesmo “grupo” social, além do uso de coches- carruagens que eram de serventia dos nobres na circulação nas cidades e nos passeios.

Não se pode esquecer que a marginalização viabilizou o acréscimo do número de prostitutas e casas de prostituição, afirmação que o autor exemplifica com o caso de Roma que no século XVI “tinha então cerca de 17 prostitutas em cada 100 habitantes do sexo feminino” (DELUMEAU, p. 286, 1994), onde essas mulheres estavam cada vez mais subtraídas ao fim da escala social. O mesmo acontecia com os judeus, que eram vistos como indivíduos à parte da sociedade e viviam em guetos, ou seja, grupos bem específicos residiam a par da sociedade, mostrando como eram estreitas as relações de segregação espacial, além das diferenças morais, religiosas, e sociais. 

O preconceito contra aqueles que realizavam atividades manuais também estava presente nessa sociedade, além do luxo do vestuário e do surto da moda- que surgiu na Europa no século XIV-, fez com que as diferenças entre ricos e pobres ficassem ainda mais evidentes. Mulheres ricas exalavam roupas elegantes, jóias caras e tecidos de luxo, no entanto, passaram a usar roupas justas, fendidas de alto a baixo, presas com botões e laços, enquanto os homens abandonaram o vestido longo e solto. Todas essas transformações apontam para uma inovação no âmbito da moda, que representava a subida da sociedade ociedental e um prazer daqueles que tinham tempo e dinheiro para dedicar-se ao uso de vestuários mais requintados, fazendo com que a nobreza atraísse aqueles que ambicionavam um dia entrar na camada superior da sociedade. No mundo dos ricos, as silhuetas das mulheres apontavam para certo alargamento, onde a “plenitude das carnes” era valorizada- principalmente nas artes, seja pelo excesso de especiarias e doçarias nas mesas de camadas dominantes e pelo princípio de “beleza” da época que enfocava às “carnes plenas”.  

Entretanto, os mais pobres estavam imersos no contexto de revoltas camponesas, penúrias alimentares e elevados índices de mortalidade, o indica que as massas estavam subalimentadas. A fome,  a mendicidade, o aumento do desemprego e do banditismo foram traços marcantes de todo o dinamismo social das camadas mais pobres na Europa do séculos XV e XVI que já se encontravam marginalizados perante a aristocracia e a nobreza dominantes nesse período.

 

3- Relações do Filme “O Mercador de Veneza” com o Capítulo IX “Mobilidade Social. Ricos e Pobres” de Jean Delumeau

 

O capítulo “Mobilidade Social. Ricos e Pobres”  livro de Jean Delumeau (1994) e o filme “O Mercador de Veneza” (2004) , sob direção de Michael Radford, se contrastam ao expor as relações sociais na europa no século XVI. O filme se passa em Veneza no século XIV, tendo como embasamento a obra de Shakespeare de mesmo título, relata a história do personagem Bassânio que deseja-se casar com Pórcia, uma dama rica e herdeira  de uma fortuna imensa. No entanto, para que isso acontecesse era necessário que ele fizesse uma viagem pelo mar e não tinha dinheiro para tal. Nesse sentido, Bassânio pede a Antônio- um mercador cristão- três mil ducados, mas este não possuía a quantia. Sendo assim, é solicitado um empréstimo do valor à Shylock- um judeu agiota rico-, e, se caso o dinheiro não fosse pago por Antônio no prazo indicado, o judeu poderia retirar uma libra de carne do corpo de Antônio através de um corte no peito. No decorrer do filme, Bassânio se casa com Pórcia e Antônio não consegue sanar a dívida. O caso vai a julgamento e Pórcia, disfarçada de um jovem juiz, percebe falhas no contrato e Shylock se encontra em uma situação comprometedora. Por fim, o judeu, que não pode derramar sangue cristão em julgamento- com sujeição a pena de morte-, perde metade dos bens e é obrigado a se converter ao cristianismo.

Se pode analisar tanto no filme como no capítulo de Delumeau como os judeus estavam à mercê da sociedade, não possuindo um “status” de cidadãos, vivendo em guetos e debaixo de restrições, como por exemplo, se caso saíssem à noite, eram obrigados a colocar um gorro vermelho para serem identificados como tais, além de não terem direito à propriedade. A prática da usura, condenada pela Igreja, era comum entre judeus agiotas, que emprestavam dinheiro às pessoas, estando claro como havia um conflito religioso  entre cristãos e judeus. A existência de guetos como bairros próprios para os judeus já apontam para a inferiorização dessas comunidades perante a sociedade cristã européia do século XIV e isso é um traço bem explorado pelo filme.

Mais um aspecto pertinente que se relaciona tanto ao filme como ao capítulo do livro está vinculado a outra relação social, agora ligada às prostitutas e a atuação destas no contexto urbano. Mais uma vez marginalizadas pela sociedade, indiferentes na moralidade e na segregação espacial, mulheres que não tinham outra saída a não ser os caminhos hostis da prostituição são apresentadas no filme, sendo expostas sexualmente e vulneravelmente a essas práticas. O que chama atenção é que os homens que pertenciam a alguma camada superior da sociedade eram os frequentadores dessas casas de prostituição, os mesmos homens que alegavam coadunar com a moralidade ética e religiosa da sociedade europeia do período. Muitos desses deixavam suas esposas em casa para "visitar" esses espaços, situação essa que não está de acordo com os princípios bíblicos acerca do casamento.

São evidentes também como as vestimentas dos personagens remontam as descrições de Delumeau. Os homens já não usam roupas largas e longas, mas roupas mais justas. As mulheres- ricas- usufruem sofisticadamente do luxo de vestidos mais ostentosos e justos, que apertam a parte superior do corpo e são presas com botões ou laços. O aspecto “moda” é requintado e vislumbrado pela sociedade, obviamente pela alta sociedade da modernidade. 

O fato do filme ser inspirado na obra de William Shakespeare “O Mercador de Veneza” (2008) remonta ao que Delumeau escreveu sobre o financiamento aristocrático de artistas e escritores, o que impulsionou certa ambição destes de ascender socialmente. Assim, o próprio Shakespeare pode ser citado como exemplo do historiador em seu texto. O filme e o capítulo convergem em vários pontos na chave da mobilidade social e da contextualização de relações próprias ao século XVI na Europa.

 

4- Comentário Livre

 

Os dois suportes- o texto de Delumeau e o filme sob direção de Michael Radford- embora distintos, abordam as questões da mobilidade social e das hierarquias de forma a complementar-se. Os recursos de Jean Delumeau se debruçaram sobre pesquisas sérias e uma análise social dos ricos e pobres na modernidade, partindo de investigações que sustentaram as definições de algumas ideias colocadas como centrais pelo autor, como as trocas culturais, o aumento das cidades, do comércio, o surgimento da burguesia, a marginalização dos pobres (que continuaram cada vez mais pobres), o desemprego, fome, e miséria, a prostituição, as segregações espaciais, o aparecimento da classe média e o enriquecimento das aristocracias, além das descrições das vestimentas e da moda. Delumeau, portanto, sintetiza de maneira sucinta as articulações que possibilitariam ou não indivíduos ascenderem socialmente dentro da hierarquia do século XVI na Europa. Assim, sua perspectiva é semântica e fundamental para compreender  a mobilidade social, sendo o conjunto por inteiro- o texto e a obra- de extrema pertinência nos estudos sobre essa época moderna renascentista.

O filme por sua vez, ao usufruir de um artefato literário e romântico, consegue tratar as questões da mobilidade social muito fortemente, possibilitando que o espectador consiga entender o contexto veneziano do século XVI a partir das relações exibidas. A marginalização dos judeus e prostitutas, as vestimentas, o cenário urbano, os aspectos marítimos, o aparecimento do comércio nos centros urbanos, a burguesia recém formada, a linguagem, a influência do cristianismo são exemplos marcantes de como eram as conexões hierárquicas do mundo moderno e o filme é capaz de trazer ao público a fixação dessas características singulares a época. 

Ambos suportes têm suas especificidades e alcançam o público leitor e espectador de modo simples, claro e objetivo, promovendo conhecimento histórico e científico, tratando das hierarquias tradicionais do Antigo Regime e da dinâmica da mobilidade social. Ademais, pensar essas camadas sociais e os mecanismos que reforçavam os “lugares” dos indivíduos na sociedade europeia nos séculos XV e XVI, sobretudo, é entender que ascender socialmente era um processo- se assim se pode chamar- restrito e difícil, pois os ricos se tornavam cada vez mais ricos, buscando o acúmulo de capital e riquezas, enquanto os mais pobres viviam em situações complexas, por vezes tendo que vender sua mão de obra, seu corpo ou seus bens para sobreviver a esse cenário. As possibilidades de ascensão e mobilidade evoluíram em certa medida, entretanto, é um engano achar que as oportunidades eram para todos sem distinção. Os ricos precisam dos pobres para trabalhar, enquanto os pobres necessitavam trabalhar para sobreviver. A modernidade é um período de avanços que “promoveram” o Ocidente, mas também de criações, conquistas, aparecimentos e condições que modificaram o status quo estabelecido e o futuro da humanidade.

 

5- Referências Bibliográficas

 

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Morre o historiador francês Jean Delumeau, autor do clássico “História do Medo no Ocidente” (notícia). In: Café História – História feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/morre-o-historiador-jean-delumeau. Publicado em: 13 jan. 2020.

DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento.  Vol.1. Lisboa: Estampa,1994. (Cap. 9)

GARCIA, Caio Alexandre Guimarães; HACK, Ricardo Elias; WALTER, Guilherme Eduardo. “O Mercador de Veneza”. In: WebArtigos. Disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/resenha-critica-o-mercador-de-veneza/132545, 2014.

RADFORD, Michael. “O Mercador de Veneza". Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=bKKuPYcaDt4 , 2013.

SHAKESPEARE, William. Trad. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes.  O mercador de Veneza. 2 reimp. São Paulo: Martin Claret, 2008.