“Este rio é minha rua.”

                Os ribeirinhos paraenses, especialmente aqueles que vivem no estuário amazônico, mostram uma intensa e harmônica relação com o rio e suas vizinhas, as várzeas. O fenômeno das marés e a influência que exercem sobre suas vidas, faz parte da ciência, que não está registrada em manuais, porém, viva em suas mentes e a eles transmitida pelos seus antepassados.

                O assoalho da casa, construído sempre acima da cota da maior maré do lugar; o trapiche de madeira, com pisos em dois níveis, um para a preamar e outro para a baixa-mar, e o uso frequente de um estipe de buritizeiro, uma palmeira típica das várzeas, como porto flutuante, através da qual ele chega facilmente ao rio, são algumas provas desta estreita relação do homem com o ambiente ribeirinho.

                A íntima cumplicidade do homem do rio, desde os primeiros anos de sua existência, com a canoa, com o “casco”, com o barco, com a igarité, com o “motor”, ou com a montaria, demonstra insofismavelmente esta simbiose com a água.

                É de montaria que ele bota os matapis nas beiradas. É de montaria que ele instala o espinhel para pescar o peixe. É de montaria que ele vai colher os frutos da andiroba e do cacau, dentre outros. É de montaria que ele vai para a festa na comunidade vizinha. É de montaria que ele leva o parente doente ao posto, ou morto para o cemitério. É de montaria que ele traz o sal, o pano e outros materiais dos quais não dispõe no lugar. É de montaria que ele leva seus produtos para vender nos mercados consumidores de Belém. Enfim, é pelo rio que ele vive e morre. Acha graça ou chora. Vai ou vem.               

A casa de madeira, com fachada simples, de uma porta e uma janela quase sempre abertas como braços prontos para um abraço afetuoso, ocupam a parte mais alta da várzea, a pele do rio. Ao seu redor, o terreiro onde predomina a palmeira açaí. A presença de fruteiras exóticas como o jambeiro, a mangueira e o fruta-pão, denuncia a sua história mestiça com o colonizador. Os cacaueiros nativos, espalhados por entre a biodiversidade vegetal, tornam-se imunes à “vassoura-de-bruxa”. Deles colhem os frutos para retirarem as sementes, que depois de secos ao sol são comercializadas. O cupuaçuzeiro, primo do cacaueiro, de fruto de sabor inigualável, tem sempre o seu lugar no pomar. Tem também o urucu, de cujas sementes preparam o corante para a comida. A quase sempre cuieira, de cujo volumoso fruto esférico confecciona a cuia, uma vasilha usada para tomar o “vinho” de açaí ou o apimentado tacacá. Os pés de moca, que satisfaz o vício do café das horas frientas, na certeza da pureza do sabor. O cipó-alho e o pé de canela, condimentos que não podem faltar. Tudo isso, são adornos que o homem colocou na pele do rio, para embelezá-lo, além de satisfazer algumas das suas necessidades vitais.

                Enquanto o homem consumista da cidade sonha em ter um dia um automóvel, o ribeirinho sonha em ter um barco. Enquanto o homem da cidade dá as costas para o rio e para ele descarrega todos os seus dejetos, o ribeirinho o abraça, o compreende e o referencia. O poeta está certo quando diz: “Este rio é minha rua”.