UM MUNDO SEM POESIA

Ela chegou atrasada ao congresso e se sentou ao lado de um homem, mas nem olhou para o lado, procurando se concentrar no que dizia o apresentador que abria os trabalhos.   Ao perceber que estava sendo observada, virou-se e encontrou os olhos dele focados nela. Ele aproveitou e disparou, sem mais nem menos: “O que falta nesse mundo é poesia, não acha?” Ela ficou sem palavras. Não sabia se respondia ou se ignorava o comentário. Mas sorriu, não porque achou a frase engraçada, mas porque achou o cara engraçado e simpático. Pensando bem, eram palavras bonitas e como um médico poderia dizê-las assim, de repente, para uma pessoa que não conhecia. O jeito simpático e brincalhão logo a envolveu e ficaram conversando nos intervalos entre uma palestra e outra ou mesmo naquelas em que o palestrante era enrolado ou o assunto não era muito interessante.

Quando houve a pausa para o almoço, foram juntos. Ele sempre contando histórias engraçadas ou fazendo comentários jocosos sobre as pessoas que estavam na plateia ou na mesa de conferências. “Você viu aquele gordo com focinho de porco? Parecia que estava vendo uma espiga de milho na sua frente. Até babava”.  Entraram em um restaurante pequeno, mas muito bem decorado, próximo ao congresso. Pediram os pratos e ele pediu cerveja, comentando que sem uma cerveja não ia dar para engolir o congresso inteiro.

- Você sabia que Jesus Cristo bebia cerveja? Perguntou à moça que se assustou um pouco.

- Mas não era vinho que se bebia na época?

- Isso é conversa. A verdade é que naquele tempo o povo chamava de vinho toda bebida fermentada e os palestinos não conheciam a cultura da uva para fabricar o vinho. O trigo e a cevada já eram bem mais conhecidos. A cultura do trigo entre os hebreus já tinha muitos séculos. Além disso, foram os egípcios que inventaram a cerveja e você deve se lembrar de que os judeus passaram bons tempos por lá.

- Mas será que eles não conheciam a uva. Afinal o vinho é mais fácil de armazenar, não é, respondeu ela ainda intrigada com a história.

- Imagine! Não era cerveja engarrafada, geladinha.  Eles guardavam em barris e durava tanto quanto o vinho, mas não muito, porque na época não havia  conservantes.  O gás era produzido pela própria fermentação. Talvez não fosse tão saborosa quanto essa aqui (o Garção acabara de servir a cerveja), mas deixava as pessoas alegres. O vinho era mais complicado para fazer e as videiras precisavam de muito cuidado para o cultivo.

- E aquela história da bíblia em que Cristo transforma água em vinho?

- É o jeito que as pessoas contavam as histórias. Provavelmente os vasos estavam cheios de cerveja em processo de fermentação.  O pessoal chegou para festa e ninguém esperava que já estivesse no ponto ou a mulher pensou que fosse água armazenada e se surpreendeu com a cerveja pronta. Não sei se foi bem assim, mas pode ser...

Terminado o congresso ele a convidou para jantar num lugarzinho especial que ele conhecia. Era um pequeno restaurante de um espanhol com quem ele fizera amizade desde os tempos de estudante. Ela alegou que precisava passar em casa, tomar um banho se trocar. Ele insistiu muito para que ela fosse jantar com ele com seu jeito brincalhão e debochado e ela acabou por concordar.

No restaurante do espanhol tinha uma placa: “La vida buena es cara. Hay la barata, pero no es vida”. Ela já foi logo perguntando se a placa não indicava que os preços eram “salgados”. Ele foi logo explicando que o seu amigo espanhol cobrava um preço justo e que não se preocupasse que seria por sua conta. De jeito nenhum, replicou ela: vamos dividir a conta ou nada de jantar. No final ela pagou a conta, pois o cartão dele estava com problemas. Podia pendurar, mas ela fez questão de pagar.

E foi assim que os dois se conheceram. Não foram felizes para sempre, mas ela fez dos amigos dele, seus amigos, teve esperanças, riu, chorou e por fim foi embora e nunca mais se viram. Talvez ela tenha saudades daqueles tempos ou apenas se recorda como um filme que viu num fim de semana. Hoje os cabelos brancos continuam insistindo em deixar recordações. A história da cerveja, o restaurante espanhol, os amigos dele que ela ainda vê, são coisas que às vezes passam como um flash, nada mais. O trabalho em um país distante do Brasil, as noites com os gatos, o marido estrangeiro e a paisagem que contrasta com as Minas Gerais a fazem pensar se valeu a pena. Talvez não saiba ou não quer pensar nisso, mas se lembra dos versos do Camões: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.