Escatologia: recomeçar a vida e o mundo (5 Recomeçar?)

Sabendo que a discussão da Escatologia concentra-se no fim último do ser humano e do mundo, ousamos perguntar: o que existirá depois desse fim?

Então precisamos atentar para o sentido desse fim. O sentido literal do termo refere-se ao discurso sobre o fim, entendido como ponto final. Entretanto, tanto a filosofia como a teologia levam a discussão para outro nível: o fim como finalidade, destino.

Dessa forma a escatologia ocupa-se em discutir a finalidade da existência: por que existe tudo e não o nada? Qual o sentido da existência humana, principalmente sabendo que essa existência, por si mesma, beiro o absurdo? Cabe ao ser humano criar ou buscar um sentido para tudo ou tudo que existe tem um sentido em si mesmo, o qual deve ser descoberto/percebido a partir das indagações humanas? Filosofia e teologia apontam respostas, que nem sempre se completam ou se encontram, mas isso se deve ao fato de que ambas as áreas do conhecimento possuem objetivos distintos.

Aqui estamos nos ocupando da Escatologia cristã e, neste caso, um dos pontos de reflexão é o que podemos denominar de momento de transição (cabendo frisar que não se trata de um momento cronológico, mas existencial) da realidade tal como a conhecemos e entendemos para uma outra forma de ser. A esse “momento” a teologia cristã denomina de juízo final.

Este, possivelmente, é um dos pontos mais críticos da discussão a respeito da escatologia. Não que o fim seja controvertido, assustador ou duvidoso mas pelo fato de alguns exageros e equívocos que se produziram ao longo dos séculos. Ao longo dos tempos foram sendo associadas à escatologia inúmeras imagens catastróficas da literatura apocalíptica, para caracterizar o “fim do mundo”. E com isso a perspectiva de mundo, criado por Deus para nele acontecer a realização humana foi se perdendo e, consequentemente, prevaleceu o medo do fim substituindo a esperança/confiança no que está além.

Devemos reforçar a afirmação de que a perspectiva da escatologia cristã, não está no ponto final, mas no além. A vida terrestre de cada pessoa, destina-se à morte como transição para a vida além da morte (BOFF, 2012); da mesma forma a vida do mundo, criação de Deus, não se destina à extinção, mas à transfiguração. Isso porque pela encarnação de Jesus Cristo ele “não assumiu simplesmente a natureza humana, mas a matéria do mundo e o próprio mundo” afirma Leonardo Boff (2015). E o teólogo ecologista continua, agora falando sobre Jesus Cristo: “A ressurreição representa a transfiguração de todo o universo. Vê o mundo não como algo a se resolver, mas a se admirar e louvar. Deus-Trindade é relação eterna, por isso todas as coisas são sua ressonância e vivem sempre relacionadas” (BOFF, 2015).

Partindo disso, somos levados a algumas importantes constatações: inicialmente se faz necessário reconhecer que o mundo, e tudo que nele existe, é obra de Deus. E tudo que Deus fez é bom (Gn 1,3.10). E tudo que é bom foi colocado nas mãos do ser humano, não para ser agredido, degradado e maltratado, mas para ajudar no crescimento das pessoas. Lembrando que foi esta a ordem dada pelo criador: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves de céu e todos os animais que se movem pelo chão” (Gn 1, 28).

O mundo portanto, não só é belo e bom, mas é também um complemento do ser humano. é o mundo que o ser humano deve crescer. É no mundo que vivemos enquanto aguardamos o encontro definitivo com Deus, na “casa comum do Céu”, como ensina o Papa Francisco na encíclica Laudato si (LS).

Em segundo lugar, se o mundo é obra de Deus, toda agressão ao mundo é uma agressão ao seu criador. Isso implica dizer que não só a defesa dos direitos humanos e a valorização da pessoa são ações importantes para a preservação da obra de Deus, mas também as ações em defesa do meio ambiente fazem parte da defesa da vida e gratidão ao criador. Dessa forma, o discurso ecológico ganha conotações teológicas. E os danos e agressões ao meio ambiente devem ser vistas como ações pecaminosas.

Isso é o que nos ensina o papa Francisco em sua encíclica “Laudato si”. Nela o papa enaltece a atuação de São Francisco de Assis, visto que ele indicou a necessária relação fraternal com toda a criação e especial carinho com a mãe terra: “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa, produz frutos diversos, flores e ervas.” (São Francisco, 1224)

Entretanto, e de acordo com o papa, nossa “casa comum” vem sendo agredida há muito tempo, não pelos pobres e trabalhadores, mas pela ganância do capital. Demonstra que o magistério da Igreja, desde João XXIII até Bento XVI vem insistindo na sacralidade da criação e condenando os pecados contra a obra de Deus. E o santo Padre aponta a origem da violência contra a natureza:

A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que « geme e sofre as dores do parto» (Rm 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (LS, 2).

E, de acordo com o Papa, enquanto caminhamos para a consumação, na vida eterna compartilhada, devemos compartilhar, também, os esforços em favor da “casa comum”.

Estamos a caminhar para o sábado da eternidade, para a nova Jerusalém, para a casa comum do Céu. Diz-nos Jesus: «Eu renovo todas as coisas» (Ap 21, 5). A vida eterna será uma maravilha compartilhada, onde cada criatura, esplendorosamente transformada, ocupará o seu lugar e terá algo para oferecer aos pobres definitivamente libertados.

Na expectativa da vida eterna, unimo-nos para tomar a nosso cargo esta casa que nos foi confiada, sabendo que aquilo de bom que há nela será assumido na festa do Céu. Juntamente com todas as criaturas, caminhamos nesta terra à procura de Deus. (LS, 243-244).

O fato é que com o sacrifício da cruz, o Senhor redimiu tudo e todos. Entretanto, as práticas de muitas pessoas as afastam dessa proposta salvífica e, em razão disso, crescem as agressões à natureza e ao ser humano. Nesse caso, o pecado se sobrepõe à graça salvadora. Essa situação tem mostrado que na medida em que se amplia o avanço da selvageria do capital, mais se expande o afastamento da proposta salvífica e mais cresce a degradação humana e à natureza. Ao pecado pessoal, junta-se nestes últimos tempos, o pecado social/estrutural. Esse é o que faz crescer: a pobreza estrutural; as práticas de grupos que ajudam na degradação humana e ambiental; a superposição do capital sobre o trabalho (ou do lucro sobre a pessoa); a ampliação ou perda de valores humanos… Esse panorama cobra, com urgência, ações pastorais de resgate e revalorização dos bens mais preciosos: a vida humana e da natureza, como sugere o documento final do Sínodo para a Amazônia (2019), ao dizer, no número 65: “nosso planeta é um dom de Deus, porém sabemos da urgência de agir diante de uma crise socioambiental sem precedentes. Necessitamos uma conversão ecológica para responder adequadamente.” E, talvez, não só “responder adequadamente”, a partir da “conversão ecológica” (pois estamos mergulhados no pecado ecológico), mas principalmente nos abrirmos para o reconhecimento e combate a esse pecado contra a criação.

Por outro lado, na mesma proporção que cresce o que a Igreja declarou (em Medelim e Puebla) como “opção preferencial pelos pobres”, vem se ampliando a defesa da vida humana. As palavras de Jesus, em defesa dos mais fracos, pobres, marginalizados e oprimidos ecoam nas práticas pastorais que percebem que o resgate da vida e da dignidade humana não se limitam mais em ações pontuais de dar esmola, mas em combater as estruturas que geram a pobreza. Simultaneamente a isso, diferentes organismos, juntamente com a Igreja, estão ampliando não só o discurso mas as práticas em defesa do meio ambiente. E, também aqui, se fazem necessárias não só as posturas pessoais de preservação e resgate ambiental, mas também ações que auxiliem na conversão e transformação estrutural.

São as estruturas pecaminosas que induzem o ser humano a transgredir as posturas humanizadas, produzindo situações de pecado social e ambiental. Um exemplo de como o pecado sócia-estrutural atinge a vida cotidiana: não adianta as famílias deixarem de jogar “garrafa pet” indiscriminadamente no lixo, se essas garrafas continuarem a ser produzidas pela indústria de plástico. Neste exemplo, a família deixa de fazer o pecado pessoal, mas a indústria, que é um elemento da estrutura, permanece gerando o pecado estrutural.

São essas situações que produzem um ambiente catastrófico. Cenários apocalípticos. E a percepção de uma escatologia que tem a tragédia como sua melhor representação. Daí, então, que os desastres ambientais que se sucedem são anunciados como precursores do fim do mundo. Do juízo final. Da concretização das “pragas do apocalipse. Mas, na realidade essas são apenas as manifestações externas do pecado ecológico e estrutural. Pecados esses que demandam “conversão ecológica”.

Uma resposta a essa modalidade de pecado estrutural/social/ambiental foi apontada pelos bispos no Sínodo para a Amazônia. Visto que “na Amazônia, a vida está inserida, ligada e integrada ao território, que, como espaço físico vital e nutritivo, é possibilidade, sustento e limite de vida” (Sínodo para a Amazônia, 2019. nº 6). Para a preservação desse “espaço físico vital” os padres sinodais apresentaram um lista de ações concretas, os “novos caminhos” em defesa da vida. A preservação da vida na amazônia são parte dos esforços para preservação da vida na “casa comum”. E, dessa forma, o processo de preservação ecológica deve ser visto como processo escatológico, pelo qual a natureza e o ser humano, serão transformados.

E os padres sinodais ainda complementam:

Para os cristãos, o interesse e a preocupação com a promoção e o respeito dos direitos humanos, tanto individuais como coletivos, não é algo opcional. O ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus Criador e sua dignidade é inviolável. Por isso, a defesa e a promoção dos direitos humanos não é apenas um dever político ou uma tarefa social, mas também, e sobretudo, uma exigência de fé. Talvez não possamos modificar imediatamente o modelo de um desenvolvimento destrutivo e extrativista imperante, mas é necessário saber e deixar claro: Onde nos situamos? Ao lado de quem estamos? Que perspectiva assumimos? Como transmitimos a dimensão política e ética de nossa palavra de fé e vida?

Constatamos que a intervenção do ser humano perdeu seu caráter “amigável”, para assumir uma atitude voraz e predatória que tende a espremer a realidade até o esgotamento de todos os recursos naturais disponíveis.(Sínodo para a Amazônia, 2019, nº 70-71. Grifos nossos)

Está claro que a vida humana e da natureza, estão interligadas e são interdependentes não só porque o ser humano depende da natureza e ela lhe responde de acordo com os estímulos recebidos, como também há interdependência porque ambos são obras do mesmo Criador. E, no julgamento final, tudo e todos os convertidos se encontrarão no céu, uma vez que “o céu e a total divinização do mundo estão se moldando lentamente, dentro do horizonte de nossa existência. Vão crescendo e madurando até acabarem de nascer”, como sugere Leonardo Boff (2012. p. 137). Quando todos e tudo “acabarem de nascer” estará instalado o Reino de Deus.

Em decorrência do juízo final ocorrerá a instalação do Reino, como anunciada por Isaías: “As primeiras coisas já aconteceram, coisas novas é o que agora eu anuncio” (Is 42,9). Entretanto, vale reafirmar, que a instalação das “coisas novas” não ocorrerá por meio de catástrofes, como se Deus estivesse punindo os seres humanos pelos seus pecados, mas como plena realização do amor do Criador. Essas maravilhas provocaram a exclamação do ancião do apocalipse: “Vi então um novo céu e uma nova terra. Pois o primeiro céu e a primeira terra passaram” (Ap. 21,1). Ele é testemunha dessas coisas novas por que “aquele que está assentado sobre o trono” lhe diz: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). E quem fará essa inovação? O próprio Cristo, como o afirma Paulo: “Portanto, se alguém está em Cristo, é criatura nova. O que era antigo passou, agora tudo é novo. Ora, tudo vem de Deus, que, por Cristo, nos reconciliou consigo e nos confiou o ministério da reconciliação. (2 Cor. 5,17-18).

“Agora tudo é novo”, diz Paulo, mostrando como a ação de Jesus não só reconcilia tudo e todos, como recria as possibilidades para a plena instalação do amor. É, também, o que podemos ler no apocalipse, afirmando que tudo foi transformado pela ação do Cordeiro, o Cristo ressuscitado: “Vi então um novo céu e uma nova terra. Pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe” (Ap. 21,1). A escatologia, como podemos perceber, em vez de discutir ou apresentar as tragédias que antecedem o fim, apresenta-se como discussão a respeito das possibilidades de recomeçar e redirecionar as ações para atualizar em nossas vidas a vida nova do Cristo ressuscitado.


 

Referências:

CNBB. Biblia sagrada. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/downloads/ Acesso em 02/10/2018.

BOFF, Lonardo. Ecologia integral. A grande novidade da Laudato Si'. in.: Revista IHU On-Line. Unisínos. São Leopoldo: junho/2015. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/543662-ecologia-integral-a-grande-novidade-da-laudato-si-qnem-a-onu-produziu-um-texto-desta-natureza-entrevista-especial-com-leonardo-boffHoje Acesso em 08/01/2020.

________________. Vida para além da morte. 26 ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

PAPA Francisco. Laudato si. In: http://w2.vatican.va/content/vatican/pt.html. 24/05/2015. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html Acesso em 08/01/2020.

SÃO Francisco de Assis. Cântico das criaturas. 1224. Disponível em: http://bispado.org.br/oracoes/cantico-das-criaturas-de-s-francisco-de-assis. Acesso em 10/01/2020.

SÍNODO para a Amazônia. Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. In: http://www.sinodoamazonico.va/content/sinodoamazonico/pt.html. 6 a 26/outubro de 2019. Disponível em: http://www.sinodoamazonico.va/content/sinodoamazonico/pt/documentos/documento-final-do-sinodo-para-a-amazonia.pdf Acesso em 08/01/2020.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO – [email protected]