Errância
Publicado em 14 de fevereiro de 2016 por Heloisa Pereira de Paula dos Reis
Errância
Se faz tempo que tudo começou? Nem sei mais. Parece que foi ontem, mas tantos ontem se passaram, que perdi a conta de a quanto tempo ganhei as estradas, a vida, a liberdade de fazer o que quero, sem ter que dar satisfação a ninguém. Nem a mim mesmo, pois caminho sem rumo, em direção a lugar nenhum, sem ponto de chegada e de saída. Apenas vou indo... Sou um pé na estrada, um errante. Meu endereço é o mundo.
Perdi meu emprego, comecei a beber, e aí minha mulher me abandonou, levando meus filhos com ela. Dizia que eu não era mais o homem com o qual havia casado. Fiquei sozinho com minha dor, e saí no mundo a caminhar.
Depois que superei a solidão, ficou mais fácil viver essa vida, que é muito diferente da vida que já vivi, e para a qual não quero voltar nunca mais. E se voltasse, tudo aquilo que deixei não existiria mais. Tudo estaria muito diferente. O tempo não estaria congelado à minha espera. Então eu sigo rumo ao nada...
Não tenho vínculo algum com coisa alguma, com ninguém, pois nessa vida tudo é provisório. Definitiva é só a morte. Sou um andarilho, sou trecheiro.[1]
Para mim não existe mais o tempo. Nada de presente, passado ou futuro. Não tenho dia, nem hora para nada. Estou livre da rotina, das contas a pagar, dos diz-que-diz-que...
Carrego meus documentos, a cascuda,[2] a pá[3], alguma roupa, plástico para me abrigar da chuva, uma garrafa de água, alguma comida, no galo de briga, no gogó da ema[4].
Fujo do andarilho pardal, que é pedinte e abusa do álcool. Muitos tem um cachorrinho para conversar. Melhor caminhar sozinho.
Certa vez, precisei ser atendido por um médico. Fui até um posto rodoviário, e de lá fui levado ao hospital. O médico que me atendeu disse que eu sofria de dromomania.[5] Não entendi nada e para quem perguntei também não sabia o que era. Senti muito medo. Até hoje não sei que tipo de doença é essa. Só sei que tomei uma injeção e sarei rapidamente...
Passo horas olhando as nuvens, que vão formando desenhos que tento adivinhar o que são. Ora parecem bichos, ora parecem gente...
Onde durmo? Nos postos de gasolina, debaixo de viadutos, no mato, onde puder dormir quando o sono chegar.
Se tenho medo? Tenho medo da maldade humana, das formigas e dos ratos que muitas vezes teimam em me fazer companhia.
Se sou feliz? Não sei mais o que essa palavra significa. Eu apenas vivo. Até quando Deus quiser...