Errância

Se faz tempo que tudo começou? Nem sei mais. Parece que foi ontem, mas tantos ontem se passaram, que perdi a conta de a quanto tempo ganhei as estradas, a vida, a liberdade de fazer o que quero, sem ter que dar satisfação a ninguém. Nem a mim mesmo, pois caminho sem rumo, em direção a lugar nenhum, sem ponto de chegada e de saída. Apenas vou indo... Sou um pé na estrada, um errante. Meu endereço é o mundo.

Perdi meu emprego, comecei a beber, e aí minha mulher me abandonou, levando meus filhos com ela. Dizia que eu não era mais o homem com o qual havia casado. Fiquei sozinho com minha dor, e saí no mundo a caminhar.

Depois que superei a solidão, ficou mais fácil viver essa vida, que é muito diferente da vida que já vivi, e para a qual não quero voltar nunca mais. E se voltasse, tudo aquilo que deixei não existiria mais. Tudo estaria muito diferente. O tempo não estaria congelado à minha espera. Então eu sigo rumo ao nada...

Não tenho vínculo algum com coisa alguma, com ninguém, pois nessa vida tudo é provisório. Definitiva é só a morte. Sou um andarilho, sou trecheiro.[1] 

Para mim não existe mais o tempo. Nada de presente, passado ou futuro. Não tenho dia, nem hora para nada. Estou livre da rotina, das contas a pagar, dos diz-que-diz-que...

Carrego meus documentos, a cascuda,[2] a pá[3], alguma roupa, plástico para me abrigar da chuva, uma garrafa de água, alguma comida, no galo de briga, no gogó da ema[4].

Fujo do andarilho pardal, que é pedinte e abusa do álcool. Muitos tem um cachorrinho para conversar. Melhor caminhar sozinho.

Certa vez, precisei ser atendido por um médico. Fui até um posto rodoviário, e de lá fui levado ao hospital. O médico que me atendeu disse que eu sofria de dromomania.[5] Não entendi nada e para quem perguntei também não sabia o que era. Senti muito medo. Até hoje não sei que tipo de doença é essa. Só sei que tomei uma injeção e sarei rapidamente...

Passo horas olhando as nuvens, que vão formando desenhos que tento adivinhar o que são. Ora parecem bichos, ora parecem gente...

Onde durmo? Nos postos de gasolina, debaixo de viadutos, no mato, onde puder dormir quando o sono chegar.

Se tenho medo? Tenho medo da maldade humana, das formigas e dos ratos que muitas vezes teimam em me fazer companhia.

Se sou feliz? Não sei mais o que essa palavra significa. Eu apenas vivo. Até quando Deus quiser...



[1] Pessoa que perambula pelas rodovias, de cidade em cidade.

[2] Vasilhame para comida.

[3] Colher.

[4] Saco para carregar pertences.

[5] Tendência patológica para andar, para ir embora.