ERA UM VEZ AS LEMBRANÇAS NA CADEIRA DO MEU PAI...

Maria Eunice Gennari Silva

No térreo ficava a loja de peças de automóveis e a oficina mecânica. No andar de cima morava uma família. Lá dentro, pais e cinco filhas se conheciam e construíam, cada um, e todos juntos, histórias de vida.

O sobrado era simples, com sacada, janelas grandes com vistas, para uma avenida, onde se misturavam comércio e residências de famílias oriundas de várias nacionalidades –sírios/libaneses, italianos, japoneses, portugueses, espanhóis, alemães. Com eles, aprendemos a cortar tecidos e o bom gosto por cores e estampas finas. Aprendemos a reconhecer louças importadas, a escutar boa música, a comprar o enxoval para cada casamento. E repetir palavras e pequenas frases dos diversos idiomas de nossos vizinhos, que nos faziam sentir poliglotas.

Do andar debaixo subia o aprendizado profissional que ensinava a relação com o trabalho e como conquistar qualidade de vida, com segurança. Mas, os problemas profissionais não subiam as escadas, porque o lugar deles era lá embaixo entre papéis e documentos, sobre uma mesa de madeira pesada e sempre na mesma posição.

Em frente à mesa havia uma cadeira. Também de madeira, larga, com braços altos, firmes e que, certamente, era o ponto de equilíbrio entre os desafios e a luta para vencê-los.

No final do dia de trabalho, após a saída dos funcionários, se meu pai demorava para subir, eu descia. Sempre pensado que era hora de fazer companhia aos seus pensamentos. E por lá eu ficava o tempo necessário para que eles fossem, devidamente, organizados.

Vez ou outra, meu pai buscava nas gavetas da mesa alguma coisa que pudesse me interessar. Ele sabia que eu não sairia dali sem ele. Ele sabia o quanto, para mim, era mais importante ficar na sua companhia, mesmo que em silêncio.

De repente, ele tirava, como um mágico tira o coelho da cartola, panfletos, catálogos e mostruários de propagandas dos produtos vendidos na loja. O interessante era a sua percepção por aqueles que mais me agradavam – os de tintas automotivas. Produtos, naquela época, com grandes marcas de qualidade e credibilidade. O objetivo dele ao me entregar este material ia além do distrair ou apenas passar o tempo de uma criança. Havia a responsabilidade em motivar e estimular o hábito da leitura, oferecendo a intimidade com as letras, palavras, ilustrações, cores, formas, símbolos.

Ficar, ali, esperando meu pai, enquanto ele lia e relia documentos, refletia e anotava tarefas futuras, muitas vezes, não só contribuía com a minha aprendizagem, como também oportunizava e aperfeiçoava o meu interesse por temas diversos. Era a escola, com prazer.

Raramente, neste espaço se conversava. Mas se eu pedia alguma explicação a respeito do rico material que ele colocava à minha disposição, o melhor acontecia. Junto à explicação tinha, sempre, uma história envolvente e integrada ao conteúdo, de tal forma, que jamais foi possível esquecê-las. Afinal, elas foram contadas sob a segurança daquela cadeira.

Sentado nela, eu guardei na memória e no coração, a presença de um homem que tinha como princípio ser referencial do bem e da paz. Errando, muitas vezes. Mas acertando sempre, porque sua transparência não omitia nem erros e nem acertos.

Na cadeira, o homem conhecido tradicionalmente como chefe de família atravessou décadas equilibrando tristezas e derrotas, mas promovendo alegrias e vitórias. Enquanto ele refletia para buscar respostas, os pés da cadeira permaneceram firmes, assim como ele se manteve fiel às suas convicções.

Na cadeira, o silêncio do pensamento falava através dos olhos e dos gestos lentos e harmoniosos. Ao som de Rigoletto ou Una Lacrima Sulviso, na vitrola, era perceptível a sensibilidade das lembranças.

Na cadeira, era visível a responsabilidade para com a luta de cada dia – era o nosso pai que garantia o pão nosso.

E, ao levantar da cadeira já estavam pensados os planos para cada projeto - a escola das filhas, os discos para comprar, o compromisso de ir ao cinema semanalmente, as duplicatas para pagar, as viagens para a cidade grande e comer em bons restaurantes, os casamentos de cada filha, as coleções de livros que não podiam faltar, as frutas e verduras no boteco, as festas e os doces natalinos, o cuidado no atendimento com cada cliente que chegava logo pela manhã, na loja de peças ou na oficina mecânica.

São lembranças que, ainda hoje, a cadeira não permite apagá-las. É que o meu pai se foi, mas a cadeira ficou. Ficou, também, o seu caráter.

A cadeira foi pintada de outras cores em várias épocas, mas continua com os pés no chão. Na sala, no quarto ou para trabalhar frente ao computador, ela continua me acompanhando. Há uma relação afetiva eterna, porque nela se lê histórias. Vêem-se imagens. Aprende-se sempre. Ela fala ao coração e traz à memória a beleza de quem viveu a estrutura de uma família num outro tempo.

Desta família, outras famílias vieram em diferentes espaços. E o apego à cadeira, já não faz mais sentido e nem faz parte do aprendizado que ela deixou.

Então, agora, é hora de um bom marceneiro para reforçá-la, uma boa pintura para um novo visual. Ela vai para o meu neto Pedro, com todas as histórias aqui contadas. E enquanto durar, sei que como bom leitor, o Pedro ainda terá outras histórias para contar.

Era uma vez as lembranças na cadeira da minha vó...