Epimênides e a Bíblia
Por Gustavo Uchôas Guimarães | 29/06/2020 | HistóriaNo livro "Vidas de los filósofos más ilustres"[1] (em versões do livro em português, "Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres"), de Diógenes Laércio[2], temos um panorama histórico e biográfico do desenvolvimento da filosofia grega, com detalhes da vida e do pensamento de filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Tales de Mileto, Diógenes de Sínope, entre outros. Neste breve texto, vamos focar na análise de alguns detalhes da vida de Epimênides, pensador grego (natural da ilha de Creta) que Diógenes Laércio descreve no 2º livro de "Vidas e doutrinas..."[3], e sua relação com alguns trechos do Novo Testamento bíblico, visto que o apóstolo Paulo faz referências a Epimênides.
Segundo Diógenes Laércio, Epimênides[4] era cretense e teria vivido algo lendário: dormiu por 57 anos seguidos, após se desviar do seu caminho com uma ovelha. Diógenes vai mais longe e cita autores que colocam o tempo de vida de Epimênides entre 154 e 299 anos. O escritor romano Pausânias (século II d.C.) faz referência ao sono de Epimênides, mas diz que foi por 40 anos[5]. Além destes aspectos lendários, Diógenes Laércio e outros autores lembram do episódio em que Epimênides conseguiu afastar uma peste que assolava a cidade de Atenas. Em "Vidas de los filósofos más ilustres" (Diógenes Laércio), temos[6]:
Padecían peste los atenienses, y habiendo respondido la pitonisa que se lustrase la ciudad, enviaron a Creta con una nave a Nicias, hijo de Nicerato, para que trajesen a Epiménides. Vino, en efecto, en la Olimpiada XLVI, expió la ciudad, y ahuyentó la peste de la forma siguiente: tomó algunas ovejas negras y blancas, las condujo al Areópago, y las dejó para que de allí se fuesen a donde quisiesen, mandando a los que las seguían que donde se echase cada una de ellas las sacrificasen al dios más vecino al paraje. De esta manera cesó el daño. Desde entonces se hallan por los pueblos de los atenienses diferentes aras sin nombre, en memoria de la expiación entonces hecha.[7].
Estas "aras sin nombre" (altares sem nome), presentes em Atenas, são mencionadas em outros escritores do mundo greco-romano. Pausânias, por exemplo, faz referência a altares do "deus desconhecido" em Atenas[8]. Estes altares do deus desconhecido são associados a Epimênides, como podemos ver na citação, feita acima, de um trecho de Diógenes Laércio. A associação destes altares a Epimênides seria uma forma de mostrar os atenienses agradecidos aos deuses pelo fim da peste, mesmo àqueles deuses que eles não conheciam ou não sabiam nomear.
Cerca de 600 anos após o episódio da peste em Atenas, o apóstolo Paulo de Tarso, um dos principais pregadores do cristianismo no seu início, esteve na cidade ateniense e se reuniu com pensadores no Areópago. Conhecedor das histórias e tradições gregas, Paulo se dirigiu aos atenienses ali presentes, iniciando com as seguintes palavras:
Cidadãos atenienses! Vejo que, sob todos os aspectos, sois os mais religiosos dos homens. Pois, percorrendo a vossa cidade e observando vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar com a inscrição: "Ao Deus desconhecido". Ora bem, o que adorais sem conhecer, isto venho eu anunciar-vos[9].
A partir destas palavras, Paulo tece sua argumentação, falando de Jesus Cristo e da ressurreição, ideias que muitos dos ouvintes rejeitaram e alguns acolheram (Atos dos Apóstolos 17, 32-34). Com as pregações de Paulo na Grécia, formaram-se algumas comunidades cristãs (a leitura do Novo Testamento, especialmente as cartas de Paulo, nos dão um panorama disto, ao vermos o apóstolo se dirigir aos cristãos das cidades gregas de Corinto, Éfeso, Colossos, Tessalônica e Filipos).
Uma destas comunidades se formou na ilha de Creta, terra natal de Epimênides. Para a ilha de Creta, foi enviado um missionário cristão de nome Tito, como o próprio apóstolo Paulo afirma em carta a este missionário. Na carta a Tito, Paulo cita uma frase de Epimênides, mas sem citar o nome do pensador cretense:
Um dos seus próprios profetas disse: "Os cretenses são sempre mentirosos, animais ferozes, comilões vadios". Este testemunho é verdadeiro; repreende-os, portanto, severamente, para que sejam sãos na fé[10].
A menção ao "profeta" cretense refere-se a um trecho do livro Crética, escrito por Epimênides e que contém um paradoxo criado a partir do trecho citado. A frase "Os cretenses são sempre mentirosos"[11] é um exemplo do que chamamos de "paradoxo do mentiroso"[12]: considerando que Epimênides era cretense e ele diz que todos os cretenses são mentirosos a todo tempo ("sempre"), o autor da frase seria verdadeiro no que diz (e, portanto, nem todos os cretenses seriam mentirosos) ou falso no que diz (e, portanto, a frase perderia seu efeito, por ser mentirosa)? Japiassú e Marcondes (2001, p. 63), ao descreverem o paradoxo, afirmam sobre a frase "Os cretenses são sempre mentirosos":
Ora, se ele diz a verdade, ele mente (por ser também cretense); mas se mente, a proposição "todos os cretenses são mentirosos" não é verdadeira e, nesse caso, ele diz a verdade; por conseguinte, todos os cretenses são efetivamente mentirosos e, nesse caso, Epimênides mente (e assim por diante, "ao infinito").
Além da menção a uma frase de Epimênides na carta a Tito, o apóstolo Paulo também menciona o pensador grego na situação em que prega aos atenienses, falando do "Deus desconhecido":
Pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como alguns dos vossos, aliás, já disseram: Porque somos também de sua raça[13].
Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos; como também alguns dos vossos poetas disseram: Pois somos também sua geração[14].
Sobre viver, mover e existir em Deus, Paulo está citando outro trecho de Crética, de Epimênides. No mesmo raciocínio, Paulo se refere aos poetas e menciona a frase "Porque somos também de sua raça" ("Pois somos também sua geração"), que aparece em hinos a Zeus, escritos por Cleanto e Arato de Solos (ambos no século III a.C.)[15].
As ligações de Epimênides com os relatos bíblicos se dão, como vimos até aqui, através da figura de Paulo, um dos primeiros pregadores do cristianismo, que tinha conhecimento da filosofia grega e utilizava, em suas pregações, conceitos filosóficos gregos ou terminologias extraídas da cultura helenista (por exemplo, os significados e simbolismos de pneuma, nous, sarx, entre outros)[16]. Além de Epimênides, Paulo mencionou também alguns trechos de Cleanto e Arato (como vimos anteriormente), além de citar o escritor Menandro (século IV a.C.)[17]. Todas estas referências, no entanto, devem ser lidas, nas palavras de Paulo, em um contexto no qual tais citações se inserem no esforço argumentativo paulino em favor da doutrina cristã que ele pregou no Oriente Médio e no sul de Europa.
[1] Disponível em: <https://www.nueva-acropolis.es/filiales/libros/Diogenes_Laercio-Vida_de_los_filosofos_mas_ilustres.pdf>
[2] As evidências mais aceitas situam este autor no século III d.C. Para saber mais sobre Diógenes Laércio:
- Vários autores (1911). Diogenes Laërtius. In: Chisholm, Hugh. Encyclopædia Britannica. A Dictionary of Arts, Sciences, Literature, and General information (em inglês) 11.ª ed. Encyclopædia Britannica, Inc.
- ENCYCLOPAEDIA BRITTANICA. Diogenes Laërtius. Disponível em: <https://www.britannica.com/biography/Diogenes-Laertius> Acesso em 13.jun.2020.
[3] Este livro de Diógenes Laércio está dividido em 10 partes (ou 10 livros), sendo 7 partes dedicadas à chamada "escola jônica" (Grécia) e 3 partes dedicadas à chamada "escola italiana" (os que nasceram e viveram em cidades que os gregos fundaram no sul da Itália).
[4] Epimênides teria vivido no século VI a.C. Para saber mais sobre Epimênides:
ENCYCLOPAEDIA BRITTANICA. Epimenides. Disponível em: <https://www.britannica.com/biography/Epimenides> Acesso em 14.jun.2020.
[5] PAUSÂNIAS. Descrição da Grécia. Loeb Classical Library Volumes. Cambridge, MA, Harvard University Press; London, William Heinemann Ltd. 1918. Traduzido por Jones, W. H. S. e Omerod, H. A. Livro 1, cap. XIV, parágrafo 4. Disponível em: <https://www.theoi.com/Text/Pausanias1A.html> Acesso em 15.jun.2020.
[6] Página 84 da referência da nota 1.
[7] Tradução feita por mim: "Padeciam de peste os atenienses, e havendo respondido a pitonisa que se limpasse a cidade, enviaram a Creta com um navio a Nícias, filho de Nicerato, para que trouxessem a Epimênides. Veio, com efeito, na 46ª Olimpíada [cerca de 596-593 a.C.], expiou a cidade e expulsou a peste da seguinte forma: tomou algumas ovelhas negras e brancas, as conduziu ao Areópago, e as deixou para que dali se fossem aonde quisessem, mandando aos que as seguiam que, onde se deitassem a cada uma delas, as sacrificassem ao deus mais próximo do lugar. Desta maneira, cessou o dano. Desde então, se acham pelos povoados dos atenienses diferentes altares sem nome, em memória da expiação então feita".
[8] PAUSÂNIAS, op. cit.. Livro 1, cap. I, parágrafo 4.
[9] Atos dos Apóstolos 17, 22-23; tradução "A Bíblia de Jerusalém".
[10] Tito 1, 12-13; tradução "A Bíblia de Jerusalém".
[11] Outra tradução: "Todos os cretenses são mentirosos".
[12] JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. 3ª edição. Página 63. Disponível em: <http://raycydio.yolasite.com/resources/dicionario_de_filosofia_japiassu.pdf> Acesso em 15.jun.2020.
UNIVERSIDADE DE LISBOA. O paradoxo do mentiroso. Disponível em: <http://www.educ.fc.ul.pt/icm/icm98/icm16/paradoxo2.htm> Acesso em 14.jun.2020.
[13] Atos dos Apóstolos 17, 28; tradução "A Bíblia de Jerusalém".
[14] Atos dos Apóstolos 17, 28; tradução de João Ferreira de Almeida.
[15] VILLAS BOAS, Alex. A antiga modernidade do diálogo entre Teologia e Literatura. Revista Ephata, nº 0 (2019), páginas 137-168. Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa. Disponível em: Acesso em 15.jun.2020.
Nas páginas 148 e 149, o autor cita trechos de hinos a Zeus. Um trecho do hino composto por Cleanto diz: "Tudo quanto existe, saudamos com louvores. Justo é que os mortais te invoquem em harmonia, pois somos tua geração". E um trecho do hino composto por Arato diz: "E todos, em tudo, precisamos da ajuda de Zeus, pois também somos de sua geração".
[16] Para introduzir o entendimento deste assunto, é possível saber mais em:
SILVEIRA, Carlos Frederico Gurgel Calvet da. O apóstolo Paulo e a filosofia. Disponível em: <http://centrodomvital.com.br/o-apostolo-paulo-e-a-filosofia/> Acesso em 15.jun.2020. Publicado em 29.jul.2014.
[17] "Não vos deixeis iludir: 'As más companhias corrompem os bons costumes'". (1 Coríntios 15, 33). A frase foi tirada de uma peça de Menandro. Para saber mais a respeito:
SILVA, Maria de Fátima. A fortuna de um autor chamado Menandro. Revista Portuguesa de História do Livro e da Edição, ano XII, nº 24, 2009, p. 31-60.