O MASSACRE E O PRECONCEITO APRESENTADO NA OBRA DE JOSÉ LUANDINO VIEIRA

                                    

Leonice Silva FERREIRA

 

Quando se fala em África, a idéia é de que se trata apenas de um país ou de um continente exótico. Porém, predomina mesmo é o estereótipo de muita miséria e guerra. Esquece-se que existem diferentes povos, com suas milhares de línguas e, sobretudo que há múltiplas culturas e religiões. A África, para alguns, parece um deserto cultural, onde se devia trazer a chuva da civilização ocidental. (MUNANGA, P.1).

Partindo desta perspectiva, a chegada da personagem sô Luis, polícia, de Nosso Musseque, de José Luandino Vieira, no musseque causará grandes revoltas, principalmente por parte dos meninos. Pois a casa de pau-a-pique que a personagem alugou para morar não tinha quintal, mas no fundo havia muitos pés de árvores frutíferas, onde os meninos do musseque brincavam. Esta personagem de cultura europeia impõe limites de acesso a este fundo de quintal, que tem agora como se fosse o dono:

- Ngueta camuelo! Esses brancos são assim. Olha só! Chegou dois dias e pronto! Começa já a dizer aquilo que é dele. (Nosso Musseque, p. 37).

 

Até então este espaço era como se fosse patrimônio público, todos tinham acesso a ele, mesmo aqueles que não moravam por lá:

(...) quando o povo passava mais para cima e pedia de alguém nas portas licença para tirar a goiaba para o mona ou levar o mamão, a resposta era que os paus eram de todos, não precisava pedir. (idem, p. 37-38).

 

Entretanto, os acontecimentos que ocorriam no musseque eram vistas por sô Luis, como falta de respeito aos demais. Até as brincadeiras e as liberdades das crianças negras o incomodava, a prática dessa liberdade expressava para sô Luis a noção de libertinagem. E como se as crianças brancas não fizessem bagunças ou não agissem com liberdade: (...) ouvia-se o pai — sô Luis – a ralhar – com o filho – da mania de ir brincar com aqueles vadios pretos e mulatos (p.39)

Mas esta não é a única personagem a ter preconceito, a professora do Xoxombo tenta incluí-lo numa sociedade que não é a dele, mas o agir da personagem causa indignação no menino, mesmo se dizendo incumbida de uma proteção que julga fazer para ele, acaba por desperta-lhe raiva, depois de ter jogado no lixo o lanche que Xoxombo havia levado para a escola. Em alguns pontos da obra, os conceitos das professoras são de que os meninos do musseque perturbam a paz e insultam a educação das crianças brancas.

Apesar de não ser uma personagem relevante, a madrasta do narrador assume o preconceito em relação às histórias contadas por do ’Ana, e por conseguinte desperta no menino a tristeza e a lembrança da mãe que falecera.

A obra de Luandino Vieira aborda questões sócio-políticos de Angola. O desejo de mudança no cenário angolano configura-se na necessária ruptura com o colonizador, e instaurar um Estado para o povo angolano. Em Nosso Musseque, a revolta dos moradores vem justamente depois que o policial branco muda para o bairro. A tentativa de fixar uma ‘ordem’ que julga não ter no musseque, colabora para invasão, posteriormente, dos soldados.

No capítulo VIII, o conflito se vigora mais intensamente. O terror predomina nas famílias, sobretudo nas regras, com a chegada dos soldados. O desrespeito, a humilhação pelo qual passara o povo do musseque: Os soldados passearam todas as ruas e areais, invadiram musseques gritando, disparando, batendo nas portas, e o medo dormiu e acordou nos corações das pessoas escondidas em suas casas. (ibidem, p. 170). A narrativa entrelaça, portanto, com os fatos ocorridos em 4 de fevereiro de 1961, como focaliza Rita Chaves: (...) as prisões de Luanda são invadidas por angolanos armados de pedaços de pau, catanas e a evidente coragem, dispostos a colocar em liberdade os nacionalistas presos (...) (p. 158).

Na obra esta questão é semelhante:

(...) e aí a primeira pedra explodiu os vidros coloridos (...) junto com aquele barulho das botas raspando no chão de cimento da igreja (...) (p. 171). E aí, na sacristia, as pessoas começaram falar que era a revolta dos musseques, queriam matar os soldados que andavam provocar as pessoas nessa manhã (...) – os soldados – chamando todas as mulheres e meninas de putas, tinham cuspido na cara dos velhos (...) (p. 172). (...) as pessoas (...) vieram nas ruas para defender as mulheres, pelejar com os soldados, morrer se era preciso (Nosso Musseque, p. 173).

 

Segundos Chaves, em resposta às revoltas de 4 de fevereiro de 1961, houve um verdadeiro massacre em Luanda, sobretudo, aos habitantes dos musseques. Esta revolta dos angolanos em busca da liberdade é vista na obra, no momento em que os soldados e policiais invadem o musseque massacrando tudo o que encontra pela frente. Entretanto, o massacre não apagou a cultura do povo angolano. Por preconceito, sô Luis desde que mudara para o musseque jurara acabar com aquilo que ele designava como ‘pouca vergonha’ ou ‘vadiagem’.

Outro ponto relevante é o fato da obra não seguir uma ordem cronológica, pode-se afirmar que Bento Abano ao temer pela educação da filha e a extinção da sua cultura, proíbe a moça de fazer um curso, quando sua mãe decide que ela vai fazer de costura, no bairro da Baixa, lugar onde fica a escola, e que é considerado pelo capitão Bento como um lugar de perdição, pois vigora a cultura dos brancos. E para ele, era sinal de filha mãe solteira, o que é inadmissível. Ele age como protetor da sua cultura, a filha deve receber educação da linhagem, talvez porque na obra, esta personagem é o mais que velho e tem o dom da palavra.

Mesmo depois dos massacres que aconteceu no musseque, a sociedade angolana se concretiza na figura do capitão, e na figura do capitão, e na figura do narrador, ao tornar-se um griot, ou seja, é um individuo que na África Ocidental tem por vocação preservar e transmitir as histórias, conhecimentos, canções e mitos do seu povo.

A figura do mais velho está presente em vários trechos da obra, que afirma a concretude da formação dessa sociedade. Don’Ana, em certos momentos ocupa este papel de griot. Em outro momento, quando Xoxombo interrompe Zeca:

 

- Xê, Zeca! Cala-te a boca! Gritou Xoxombo, rindo.

- Elá, menino, então? ‘tá interromper assim o teu mais-velho? – protestou Don’Ana. (p. 50).

 

Para tanto, os acontecimentos da obra caracterizam no narrador como um griot, pois possuem uma função especial que é de narrar as tradições e os acontecimentos de um povo. A morte do capitão Bento concretiza a figura do mais velho que tem o dom da sabedoria.

 

 

REFERÊNCIAS

CHAVES, Rita. José Luandino Vieira: o verbo em liberdade in A formação do romance angolano. São Paulo, 1999. Ed. nº 1. Editora Via Atlântica.

MUNANGA, Kabengele. O universo cultural africano. Publicado na Revista Fundação João Pinheiro, 14(7-10):66-74, Belo Horizonte, jul. a out., 1984.** Vice-Diretor do Centro de Estudos Africanos da USP.

VIEIRA, José Luandino. Nosso Musseque.Lisboa: Caminho,  2003,p.50.