Em O costureiro e sua grife: contribuição para uma teoria da magia (2001), Pierre Bourdieu anota que as relações sociais apresentadas no campo da alta costura francesa apresenta uma determinada estrutura com disputas internas bastante intensas. O capital que perpassa as mais diferentes maisons é o fator constitutivo da concorrência neste campo. O autor aponta que o desenvolvimento do campo da alta costura se sucedeu devido à distribuição desigual dos diversos empreendimentos de moda. Trata-se de espaços onde o poder econômico e simbólico torna-se imposição de concorrência para seus competidores.

Posto que, Bourdieu legitima um campo de investigação, no qual a criação e a consagração dos bens simbólicos se tornam objetos preciosos das analises dos cientistas sociais. A sociologia empreendida por este autor é uma sociologia da produção dos conhecimentos e das práticas sociais. No momento em que as práticas sociais se tornam valores culturais difundidos, elas estruturam desta maneira uma percepção consensual entre os sujeitos e suas respectivas trajetórias e capital acumulado. No campo da alta costura, o bem é tanto econômico como fator de distinção. A batalha de classes entre os costureiros tradicionais, estes que se encontram renomados, constituem o grupo dominante, que por sua vez, defende um tipo de austeridade no luxo, que esboçam uma ortodoxia em suas estratégias comerciais e se contrapõem a nova geração de costureiros, estes que articulam suas estratégias de competição realizando ações democráticas de acesso às massas.

Assim, o espaço de produção dos bens neste campo social é fomentado pela separação da classe dominante e os que estão surgindo no mercado. Os tradicionais, costureiros que já possuem sua clientela, impõem o mercado, e os que tentam conquistar consumidores, os iniciantes, almejam se afirmarem e serem reconhecidos naqueles espaços de disputas.

Para entendermos como se processa a competição e até mesmo a própria inserção nestes espaços de autoridade e reconhecimento é imperativo delinear algumas categorias de análise utilizadas pelo autor. Neste sentido, este ensaio será exposto em três movimentos, o primeiro deles será voltado para entendermos categorias como campo e habitus; o segundo, sobre estilos de vida e estratégias de reconhecimento e irreconhecimento entre os diferentes costureiros apresentados pelo autor; e por fim, como se procede às lógicas de produção da crença na arte da alta costura.

Atentando que no processo de produção dos bens simbólicos, existem diferenciadas conotações capazes de apontarem as formas de articulação entre dominação cultural e dominação política, ou seja, o poder da autoridade e da legitimação não se origina apenas dos bens materiais e/ou culturais, mas também e principalmente, em transformar esses bens em capital simbólico e social. O que estar em jogo nestas formas de dominação são as categorias de pensamento que constroem uma visão de mundo e a disputa por seus significados.

 

Habitus e Campo Social

 

Não podemos analisar a noção de estrutura na sociologia de Pierre Bourdieu sem anotar sobre um dos seus conceitos centrais, o habitus. Como transponíveis e duráveis, o habitus constrói classificações capazes de regular o espaço do campo social.  Devemos anotar que Bourdieu constrói uma análise da sociedade que quebra com uma noção piramidal sobre as classes. Assim, o campo é o espaço onde os agentes se posicionam de acordo com o seu capital acumulado. Os agentes formam classes que se caracterizam por um conjunto de práticas que lhe são intrínsecas, moldando ordenações e classificações que incidem sobre o mundo social. Contudo, o habitus não é calculado como estratégia consciente. As condições da produção do habitus são efeitos de estruturas características de uma determinada classe – assim como de sua existência – que tem por base as necessidades sociais e econômicas por meio das manifestações familiares dessas necessidades exteriores como o consumo, a divisão do trabalho por sexo, relação com os parentes e assim por diante.

 

“Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas, ou seja, como princípios geradores e organizadores de praticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas aos seus objetivos sem supor a intenção conscientes de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro.” (BOURDIEU, 1996, p.87).

 

O habitus constitui-se através das percepções de experiências ulteriores, o que o autor denota de interiorização da exterioridade, tornando possível a livre produção dos pensamentos como aquisição de esquemas que organizam o mundo. Não há existência que não produza habitus, pois segundo o senso prático, o habitus é um produto histórico. Em outras palavras, este é um produto da história, tanto individuais como coletivas. As experiências passadas são ativadas em esquemas de percepções em conformidade com as práticas ao longo do tempo. Desta forma as estruturas objetivas conseguem se reproduzir na forma de disposições duráveis.

O senso prático pode se expressar na linguagem, na habilidade, na delicadeza, na destreza, exemplos destas expressões práticas são os jogos de sociabilidade e de disputa tão presentes no campo da alta costura. As posições na estrutura da distribuição do capital específico daquele dado campo se expressa não apenas nas estratégias estéticas como também nas econômicas. Os dominantes, que são os costureiros mais reconhecidos, necessitam apenas ser o que são, há em suas relações uma recusa ostensiva pelas estratégias vistosas de distinção. Em contraposição, os pretendentes ambicionam por parecerem realmente pretensiosos, estes buscam em todas suas estratégias comerciais e estéticas a legitimação de suas criações e renovações. O que disputam é o capital simbólico, este que necessita de uma transformação para adentrar no âmbito econômico. Entretanto, é preciso atentar que é no contexto de reconversão destes capitais que sobressai a luta de classes dentro do campo, reposicionando os agentes em uma ordem que por vezes permanece invariável.

 

As posições na estrutura da distribuição do capital específico se exprimem nas estratégias tanto estéticas, quanto comerciais. Para alguns, as estratégias de conservação que visam manter intacto o capital acumulado (o “renome da qualidade”) contra os efeitos da translação do campo e cujo sucesso depende evidentemente, da importância do capital possuído e também da aptidão de seus detentores, fundadores e, sobretudo, herdeiros, em gerir racionalmente a reconversão, sempre arriscada, do capital simbólico em capital econômico. (BOURDIEU, 2001, p.9).

 

A descrição estrutural de um determinado sistema social fornece-nos um modelo que enuncia as relações de status existentes entre grupos dentro do sistema e entre os agentes que compõem estes grupos particulares. É preciso enxergar as lógicas do campo e seu modo de produção e as maneiras de intermédios para as condições econômicas e as práticas simbólicas que os sustentam. Bourdieu ainda anota que as instituições que ocupam “posições polares” (2001, p. 8) neste determinado campo como a Dior ou/e Balmain se contrapõem por aquelas que adentraram recentemente na concorrência, como a Paco Rabanne ou Ungaro, por exemplo.

Em todo esse arranjo, nota-se que a produção dos bens de luxo, a alta costura é o campo onde mais se torna transparente os princípios de divisão de classe. Categorias como habitus, campo e capital abrem um leque reflexivo sobre dicotomias em constante embate, como moderno x tradicional, intelectual em oposição ao burguês, termos e posições que regulam em certo sentido o domínio do gosto, da cultura e da arte. Nesse arranjo estrutural que analisa o estilo de vida dos agentes em questão, o autor descreve como os costureiros promovem dialéticas de distinção e afirmação no campo. Para entendermos as lógicas que circulam nestas relações entre dominantes e pretendentes, coloco em relevo a descrição realizada pelo autor sobre a decoração da moradia dos costureiros e como estes gostos podem refletir suas estratégias de distinção, e até mesmo de desprendimento.

 

Estilos

 

A cada etapa da história da moda, os costureiros mais tradicionais atuam por vezes imbuídos pelas tendências, pelas imposições explícitas. Estes buscam o equilíbrio, o refinamento e evitam uma adesão ao exagero. Os pretendentes, por sua vez, buscam se desvencilhar das imposições presentes no mercado. Em geral, possuem um gosto pela novidade e pela liberdade em suas (re)criações, sem deixar de seguir os parâmetros que sustentam a moda. Há no meio desses grupos que se opõem os que atuam de maneira mais neutra, produzindo uma arte que visa a unificar e compreender o comportamento dos consumidores, buscando as inovações inacabadas, produzindo peças mais discretas e adaptáveis.

Ao realizar pequenas anotações sobre a decoração das habitações de alguns costureiros “de grande prestígio”, Bourdieu destaca que existe até mesmo ali, “um verdadeiro sistema de oposições que, em sua ordem, reproduz o sistema das posições ocupadas por eles no campo da alta costura” (op. cit. 2001, p.14).

Coloca em pólos antagônicos dois costureiros, o Balmain, que nomeia de “o sobrevivente”, e o Hechter, referido como “o pretendente”. O luxo ascético, elegante e opulento do primeiro representa na visão do autor seu pertencimento a burguesia tradicional. Anota que é o salão da habitação de Balmain o centro de seu estilo representado por um ascetismo denegado. Preenchido por uma decoração que possui peças de exibição, como móveis antigos e legítimos, descritos como “os troféus culturais do proprietário” (BOURDIEU, 2001, p.14). Em oposição, a decoração despojada na residência do costureiro Hechter, se expressa como um tipo de “ateliê de artista”. Ocupa o espaço sem móveis uma longa baia envidraçada, almofadas e peles, plantas e quadros de pintores de vanguarda. Assim descreve Bourdieu, comparando os dois ambientes; “(...) esta decoração de decorador impõe as discussões metafísico-políticas entre ‘companheiros’ sobre pintura da vanguarda, o cinema ou a poluição, tão imperativamente quanto o salão azul e ouro de Balmain remetia à discreta conversação entre pessoas distintas e conhecedoras de arte e literatura”. (op. cit. 2001, p. 14).

Mesmo tendo uma preferência pela moda de estilo mais tradicional, o apartamento do costureiro Hubert de Givenchy consegue conciliar objetos clássicos com os de vanguarda. Descrito como um “ambiente monacal”, o lar do modelista possui alguns móveis modernos, e “em cima da mesa, uma peça de seda chinesa do século XVIII” (BOURDIEU, 2001, p.13). O “moderno barroco” composto na residência de Pierre Cardin e suas coleções de caixas e o jardim de inverno, podem se acumular a suas preferências e sua ambição artística representadas também em suas vestimentas que evocam a “sobressaca acinturada do artista romântico” (op. cit. 2001, p.15). A preferência pelo moderno e pelo modernismo no apartamento de Courréges, é expressado pelo conforto dos espaços dos cômodos desde do banheiro à cozinha. O que parece ser uma sistemática nas escolhas do costureiro, o conforto transparece em suas roupas e calçados, como calças e botas brancas, acompanhados por um boné com grande viseira e blusão.

 

Daí, vem a oposição que, em todo campo em todas as dimensões do estilo e do estilo de vida, estabelece uma separação entre as estratégias estéticas dos dominantes que só precisam ser o que são, sobressaem distinguem-se pela recusa ostensiva das estratégias vistosas de distinção. [...] Esta oposição se observa tanto nos objetos produzidos pelos costureiros, quanto nas declarações de intenção proferidas por eles mesmos a respeito de sua produção. (BOURDIEU, 2001, p.16).

 

 

O autor anota ainda que existem costureiros que marcam seus nomes em cada época. Posto que a cada período de tempo, surgem aquelas personalidades que se sobressaem dentre as demais. São aqueles que na história da própria moda realizam o feito de iniciar, ou mesmo conseguem inaugurar, um novo tempo, uma nova história. Estes conseguem determinar e moldar um novo estilo. Tudo se transforma em batalhas pelo gosto, pelo mercado, e pelo destaque de suas criações.

Entretanto, cada objeto criado, é por seus criadores antecipadamente determinado seu tempo hábil de durabilidade. Há neste campo de produção de bens a criação sazonal de produtos. Bourdieu (2001) compara a linha de produção da alta costura como uma oposição a produção literária, por exemplo.

 

À semelhança do autor de romances policiais a respeito do qual nada nos autoriza a pensar que, um dia possa ser considerado um “clássico”, o costureiro participa de uma arte que ocupa um lugar inferior na hierarquia da legitimidade artística; ora, em sua prática, ele não pode deixar de levar em consideração a imagem social do futuro do seu produto.  [...] a atividade do costureiro é o oposto exato da atividade do escritor ou do artista legítimo na medida em que ele não poderá esperar ter acesso a uma consagração duradoura (ou definitiva) a não ser que saiba rejeitar os lucros e os sucessos imediatos – porém, temporários – da moda: a lei da distinção que, neste universo, se afirma abertamente, toma a forma de uma ruptura obrigatória, efetuada com data fixa, a partir dos cânones do ano anterior. (BOURDIEU, 2001, p.28).

 

 

O autor destaca que até mesmo os pretendentes mais ousados não escapam deste tipo de molde que consagra a cada estação os estilos no campo da alta costura.  A lei que recria a “última moda” para o “démodé”, pode sujeitar o costureiro a se “renovar” constantemente, correndo o risco eminente de torná-lo obsoleto. Criar é delinear um tempo limite para a criação, em síntese, “estar na moda é estar na última moda – os produtos da alta costura estão voltados, por definição, a uma rápida desvalorização” (BOURDIEU, 2001, p.30). Deste modo, o campo em questão e as batalhas que ali se seguem, passam por ostensivas produções da crença em seus objetos e criadores. O capital acumulado, as regras que moldam o jogo, o bem simbólico no mercado econômico passam a todo instante pelo crivo da consagração. Dominantes e pretendentes estão a todo tempo mantendo relações explícitas do que é a arte de se criar a alta costura naquele momento, e em cada estação. O valor do produto torna-se relacional.

 

A produção da crença

 

A produção dos bens simbólicos, – produtos da alta costura – por vezes trás à tona o retorno e a valorização do que é antigo, daquilo que foi em algum momento moda. O autor subscreve em seu texto que há uma busca preferencial pelas “coisas” que foram no primeiro momento desvalorizadas pelo gosto social, e que depois são restabelecidas no mercado de forma simbólica. Coloca como exemplo, as grandes maisons que fecharam suas portas pós a morte de seus criadores. Muitas daquelas casas de alta costura sobreviveram por curto período após o falecimento de seus costureiros, pois não conseguiam se firmar no mercado simbólico sem seus inventores. A produção dos bens simbólicos exige muitas vezes dos sucessores dos seus criadores o mesmo carisma e unicidade insubstituível de seu estilo.

Como é possível, então, a sucessão de uma Chanel? A ocupação de uma posição, tal como da Chanel se encontra relacionada ao tempo e a um valor simbólico. O autor demonstra que há uma estratégia inerente ao campo da moda, refletido no âmbito econômico e simbólico, o poder da palavra, o poder do nome da grife. O crédito no valor do produto se baseia nas relações sociais de agentes que difundem e valorizam os criadores, com destaque para a mídia. Estes diferenciados agentes são responsáveis pela valorização da marca, produzindo crença e transmutação simbólica dos bens da alta costura.

 

É a raridade do produtor (isto é, a raridade da posição que ele ocupa em seu campo) que faz a raridade do produto. Como explicar, a não ser pela fé na magia da assinatura, a diferença ontológica – comprovada do ponto de vista econômico – entre a réplica assinada pelo próprio mestre (este múltiplo antecipado) e a cópia ou a falsificação? Já é conhecido o efeito que uma simples troca de atribuição pode exercer sobre o valor econômico e simbólico de um quadro. O mesmo é dizer, de passagem, que o poder de transmutação não pertence somente ao produtor das obras (e que este não o obtém por si mesmo): o campo intelectual e o campo artístico constituem o espaço de lutas incessantes a propósito das obras do presente e do passado que enfrentam, ao mesmo tempo, o desafio da reviravolta da hierarquia dos produtores correspondentes e a alta das “ações culturais” daqueles que investiram (no duplo sentido) em suas obras. As estratégias de comercialização da “grife” são a melhor demonstração do quanto é inútil procurar apenas na raridade do objeto simbólico, em sua “unicidade”, o princípio do valor deste objeto que fundamentalmente, reside na raridade do produtor. É produzindo a raridade do produtor que o campo de produção simbólico produz a raridade do produto: o poder mágico do “criador” é o capital de autoridade associado a uma posição que não poderá agir se não for mobilizado por uma pessoa autorizada, ou melhor ainda, se não for identificado com uma pessoa e seu carisma, além de ser garantido por sua assinatura. O que faz com que os produtos sejam Dior, não é o indivíduo biológico Dior, nem a “maison” Dior, mas o capital da “maison” Dior que age sob as espécies de um indivíduo singular que só pode ser Dior. (BOURDIEU, 2001, p. 37-38).

 

 

O sistema das relações objetivas que o campo da produção evoca, não aponta que a reputação é influenciada por indivíduos isolados, mas entre agentes ou instituições que travam lutas pelo monopólio do poder de consagrar, nisto estar intrinsecamente inserido a crença em um valor, que pode ser de classificação e nomeação, que vislumbre muitas vezes uma visão de mundo. A eficácia vem por tanto do campo, existe uma luta pela imposição de definições sobre o que deve ser aceito pelo campo. Uma definição dominante neste campo impõe determinados estilos que pode ser encarnado por um produtor particular ou mesmo um grupo de produtores.

Como um leitor atento das obras de Marcel Mauss, Bourdieu utiliza a noção de magia para anotar que o importante não é saber as propriedades do mago – que também é uma espécie de porta-voz – mas localizar os fundamentos da crença coletiva – irreconhecimento coletivo – que produz e mantêm o poder ao qual o mago ou porta-voz se utiliza. Neste sentido, temos que procurar estas propriedades dentro do próprio campo e não fora dele. É um principio do poder criador que tem uma especificidade de mana ou carisma inefável como aponta o próprio Bourdieu. A eficácia da palavra tem seu teor mágico que na ordem da ação social pode agir fora dos limites da própria delegação, um padre pode realizar uma missa fora do santuário, e mesmo assim a eficácia de suas palavras ainda fica dotada de autoridade. As operações da chamada magia social são atos de autoridade que por sua vez depende de um conjunto de inter-relações que precisam denotar em reconhecimento. Cabe ressaltar que esse reconhecimento do discurso pode ser acompanhado ou não de compreensão, e deve ser acompanhado prioritariamente dos seguintes aspectos; a pessoa que pronuncia o discurso deve ser detentor do cetro que consequentemente é conhecido e reconhecido por suas habilidades, o discurso deve ser pronunciado em situações favoráveis e legítimas, e enfim, deve ser proclamado nas formas autorizadas e legitimadas da sintaxe e da fonética.

A autoridade que a linguagem se reveste não sai dela mesma, sendo o orador o alvo da autoridade. A fala de um porta-voz é o resultado de uma soma de capital simbólico, que é resultado de uma crença de um grupo que lhe confere autoridade. Existe um conjunto de condições para tornar eficaz o discurso de um porta-voz, como as propriedades do próprio discurso, as propriedades daquele que o pronuncia e as propriedades da instituição que lhe concede autorização de pronunciar em nome dela. Estes conjuntos de condições definem os rituais de magia social. O autor destaca que no processo de transubstanciação, que nada mais é do que a fabricação do bem material e a produção do bem simbólico, e a divisão do trabalho que este implica, são partes constitutivas da “alquimia simbólica” (BOURDIEU, 2001, p.41). Como assinatura do pintor, o nome da grife e sua consagração por diferenciados agentes produtores da crença (jornalistas, revistas especializadas, eventos, costureiros e artífices das maisons, entre outros) firmam através de publicidade a transferência de valor simbólico sob a marca.

 

[...] conceber os produtos, produzir “ideias”, “modelos” – operação não específica, constitutiva de todo trabalho humano; fabricar o produto; impor uma marca sobre o produto (“grife” do costureiro, nome do editor ou da editora, assinatura do pintor, do escritor ou do músico, prefácio assinado por um nome ilustre, etc) e, por isso mesmo, constituí-lo como raro, – digno de ser procurado, consagrado, sagrado, legítimo – operação que caracteriza propriamente a produção dos bens simbólicos; por fim, divulgar e comercializar o produto da forma mais ampla possível. (BOURDIEU, 2001, p.41).

 

 

É especifico do campo da alta costura a dupla natureza de seus bens, posto que o produto não se reduz a sua fabricação material, mas apresenta um vasto universo de relações e operações de transubstanciação de seu valor. A alta costura presta a classe dominante, distinção e pretensão.

Se a eficácia só é capaz por meio da crença, não podemos analisar os sistemas simbólicos por uma ótica estritamente formalista. No discurso da consagração dos bens simbólicos da alta costura é preciso que certas prescrições que regem as manifestações públicas sejam cumpridas, como o código de etiquetas nas cerimônias. Mesmo havendo uma recusa do comercial, o mercado das artes, que infere sobre as criações dos costureiros é um transito de valores, que é muito mais do que valores monetários, mas são valores que denotam legitimidade, que por sua vez é construída a partir dos produtores e vendedores de bens culturais. Contudo o comércio dos bens culturais não é como qualquer outro, ele é rentável economicamente a partir de outras condições. Há neste comércio uma acumulação do capital simbólico, na forma de capital econômico e/ou político, e é claro sempre havendo uma denegação econômica pro aqueles já posicionados como dominantes.

 

Considerações finais

 

Bourdieu (2001) anota que os costureiros tradicionais têm em comum descenderem de parcelas da burguesia dominante, “Christian Dior é filho de um grande industrial normando; Balmain, filho de um negociante da Sabóia; e Givenchy, filho de um administrador de “Societés de I’Oise” (op. cit. p.57). Foram educados nos moldes de sua classe social, muitos pretenderam sempre seguir carreiras ligadas ao campo artístico. O autor destaca que existe um tipo de “harmonia preestabelecida entre o habitus do ‘criador’ e a posição que ele ocupa no campo” (op. cit. p.58). E que para analisar um costureiro é preciso tomar nota de três capitais que estes manejam no campo, o da autoridade, as relações e a competência.

Ao delinear o ciclo de consagração, o autor coloca em relevo que este age na medida em que se representa em forma de delegação, agindo sob um rigoroso código que rege os gestos e as palavras sacramentais, no caso do campo da alta costura, como se constitui uma grife, como se promove uma assinatura?

Os mecanismos que garantem a produção dos emissores e receptores legítimos se remetem a construção da crença. Contudo, a linguagem em questão, assim como a sua eficácia performativa não se reduz ao descontrole das representações. Por isso, em diversas vezes os processos de consagração, sacralizam certas crenças instaurando novas maneiras de produção, de conhecimento e reconhecimento da autoridade. As lutas simbólicas são caracterizadas principalmente pelo entrave investido para impor uma visão de mundo, e a ciência não se vê imune a esses embates. Segundo Bourdieu, a ciência é o campo mais engajado nestas lutas pela visão legitima. Por fim devemos anotar que a autoridade que sustenta a eficácia performativa do discurso, da assinatura, da consagração, permite que a imposição se vista de oficialidade diante todos e por todos, construindo um consenso sobre o mundo social.

 

Referência Bibliográfica

 

BOURDIEU, P. A produção da crença: uma contribuição para a economia dos bens simbólicos. Porto Alegre. Zouk, 2006.

BOURDIEU, P. O costureiro e sua grife: contribuição para uma teoria da magia. Educação em Revista, Belo Horizonte, n° 34, dez/2001.

BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.