ENSAIO  SOBRE O CORPO

Osvaldo Dalberio[1]

[email protected]

RESUMO

A proposta deste texto é a de refletir sobre as dimensões do corpo e mais especificamente sobre a existência do corpo. As questões fundamentais são: o que é o corpo? Que relação este trava com outros corpos? Existe um único corpo que envolve todos os outros (corporificados na natureza )? Quais as dimensões existenciais do corpo do homem? Foi apresentada também uma discussão sobre o lugar ocupado, ou seja, a localização no tempo e no espaço de um determinado ser. Este está vinculado ao mais íntimo, ao mais dinâmico exemplar de energia existente. Assim o corpo, portanto de carne, é que faz nascer o corpo de carne de outrem. A indagação básica deste texto se expressa nos dizeres: é o corpo que possui o homem ou é o homem que possui o corpo? Abordamos  sobre essência. Foi dito que ela se manifesta através do corpo. E que o corpo existe por causa  e não apesar da essência. Abordamos também sobre o Nada da Existência, ou seja, no fim último que o homem busca, ou caminha inevitavelmente para ele. Só se torna homem no corpo, na medida em que escolhe onde e como estruturar sua essência. Referimo-nos, inspirado em Sartre, que à existência precede à essência, pois o futuro do homem é ele quem faz através de suas constantes elaborações e re-elaborações do cotidiano. Nesse aspecto, o corpo é, evidentemente, um resultado biológico no qual o homem incorpora sua humanidade. A existência de corpos diferentes  é que faz com que o corpo seja e esteja no espaço determinado.

 Palavras chave: corporeidade, existencialismo, humanismo

 ENSAIO SOBRE O CORPO    

 Propomo-nos a refletir sobre as dimensões do corpo e mais especificamente sobre a existência do corpo. Em primeiro lugar, o que é o corpo? Que relação este trava com outros corpos? Existe um único corpo que envolve a todos os outros (corporificados na natureza)? Quais as dimensões existenciais do corpo do homem? É o homem quem possui o corpo ou é o corpo que possui o homem? 

O lugar ocupado, ou seja, a localização no tempo e no espaço, de um determinado ser está vinculado ao mais íntimo, ao mais dinâmico exemplar de energia existente. Se dizemos existentes, estamos pressupondo que o ser é algo em algum lugar, ou seja, ocupa uma cavidade no cosmo que lhe é destinada. Então perguntamos: mas, então, todo ser é um corpo? E se realmente o é, como fica uma pintura se o que lhe tocamos  é uma tela plana ? No  entanto, se a olharmos fixamente, perceberemos uma paisagem com relevo, com profundidade, com perspectivas etc. A paisagem apresentada é um corpo porque, tem uma forma artística de ser apresentada e nos transportamos àquele lugar como realidade concreta. Temos a sensação de estarmos concretamente ali. Por outro lado, levando em consideração que é uma imagem ela está afixada em uma superfície, que por sua vez, nada mais é do que um corpo. Sendo assim, assume uma dimensão de corpo que aloja outro corpo, ou outros corpos. Ali está o pano, a madeira, a tinta, os pregos, a cola e, talvez, mais importante que esses elementos, a idéia do artista. Em outras palavras, contém parte da vida do seu criador, sua cosmovisão, sua intimidade existencial, seus traumas, sua espiritualidade, enfim, pedaço de seu “eu”. Ele se doou por algum tempo para efetivá-lo e, no final, deixou cravada para a posteridade a marca da sua existência.

Percebemos também o auferir de idéias que um pensador manifesta através da linguagem, simboliza sua existencialidade. Parece-nos que isso é corpo em relação. Pelo que nos parece, ninguém escreve ou diz algo para ficar para si, a menos que esteja fora dos padrões sociais estabelecidos. É o corpo se corporificando na ida e na vinda de informações. É um corpo que manda a mensagem e outro que a recebe. Assim, forma-se a cadeia de corpos dentro do grande corpo: universo. Cada espaço ocupado por uma superfície é o ocupar de um todo. Pois se um corpo é,  dependeu de outros corpos para sua constituição. A pedra, que é um exemplo, fora instaurada sobre a montanha porque a chuva, o vento, a erosão, o terreno, etc. contribuíram cada qual com uma parte específica. Assim, ela não é ela mesma e única no seu alojamento existencial. Ela é também parte destes elementos citados.

Por outro lado, ela é também ela mesma, contém em seu íntimo algo que  lhe  é  exclusivo e peculiar. Ela carrega consigo uma dimensão de ser-no-mundo, portanto, ela é uma superfície dentre outras, ela é ela mesma porque não lhe pode retirar o seu conteúdo de pedra como corpo. É um ser que se constitui de energia própria e existencial.

Ao falar em existencialidade, aparece-nos a necessidade de  refletir sobre a realidade onde proliferam todos os fenômenos do estar-aí. No entanto, o que significa estar-aí?  É possuir um corpo? E, nesse corpo detectar a essência - que é o fundamento primordial - e a aparência - aquilo que vem aos sentidos? E o homem, como se posiciona dentro do rol de alternativas existenciais?

Inicialmente, devemos pensar um pouco do ponto de vista da filosofia, sabendo que há vários pontos para tomar como referência à reflexão. Quem tem a possibilidade de fazer reflexões à cerca de algo (determinado ou não) é o homem cujas características o faz existente, na medida em que aja sobre os fatos dando-lhes conotações ou conceitos claros e precisos(?). Se  a capacidade do homem de pensar sobre a realidade que o cerca lhe proporciona condição de extrair do fenômeno o que há de mais profundo, a essência, então  ela deve ser colocada às claras, através da linguagem,  para que outros homens também a possam perceber.

O homem é responsável por fazer a essência vir às claras, “revelar-se” e, mais ainda, ser. Quando  falamos de essência referimo-nos ao simples  fato de ser característica intrínseca ao fenômeno. Como o homem está em contato, através dos órgãos dos sentidos com eles,  cabe-lhe  revelar o que há de mais interno na aparência de tal fenômeno. Ao homem imputa a tarefa, portanto, que lhe é própria: a  de perceber passiva ou ativamente o fenômeno e manifestar a essência dele de forma bastante efetiva e evidente.

O homem é capaz de observar, questionar, explicar o fenômeno e dentro dele a essência. Esse exercício o capacita para recriar situações diversificadas para atender às suas necessidades existenciais Em outros termos, o homem cria condições para usar o conhecimento construído sobre a realidade em seu favor. Os animais não conseguem entender e explicar o fenômeno, apenas usa dele para sobrevivência, enquanto que o homem, na maioria dos casos, usa os fenômenos para que estes se adaptem a ele, dando-lhe maior estabilidade em viver. É o caso específico de um rio: os animais vão até suas margens, tomam a água necessária à sobrevivência, pegam os peixes possíveis, abrigam-se nas margens. O homem, por outro lado, modifica o curso do rio para construir em sua margem uma cidade, uma indústria. Ele pode  utilizar a força natural das águas para extrair energia, que, conseqüentemente, iluminará a cidade. Essa força fará movimentar as máquinas das fábricas.

 Essa relação do homem com o seu meio, podemos dizer, que  acontece porque existem corpos que se relacionam entre si. Para mim está claro que o homem não pode ficar isolado, mas ligado de alguma forma a outros corpos. São os outros corpos existentes que fazem o homem assumir um corpo determinado pela forma. Aqui coloco que o corpo está para outros corpos. Cada corpo possui sua subjetividade - essência - que não  isola, mas, pelo contrário, dirige-se a; vai ao encontro de; é o revelar-se para.

 Também devo destacar a categoria própria da análise existencialista em que o corpo ocupa um espaço. Afinal, o que é o espaço? É aquilo pelo qual o corpo assume, através da existência, um lugar onde possa se instalar como aparência. As dimensões que comportam o corpo são as mesmas que o espaço deixa para serem ocupadas. Daí a existencialidade do corpo ser em algum lugar, em um determinado espaço, com determinada aparência. Encontro em Sartre que “o corpo de outrem é mascarado com o  disfarce dos movimentos”; isso me faz  consciente de que a linguagem pela qual o homem  se comunica, faz seu ser mascarado, se comunicar, se revelar. A linguagem nada mais é que uma tentativa de não deixar a carne, que somos nós, se manifestar. A carne está camuflada pela maneira como o homem entra em contato com outros corpos. O que é o desejo senão a tentativa da própria carne, de desnudar o corpo de seus movimentos? A carícia é o fazer aparecer no corpo a carne escondida pelos gestos. Meu corpo, portanto de carne, é que faz nascer o corpo de carne de outrem. Daí, a existência enquanto ato ocupar seu espaço, na medida em que há ligação com o outro ser que também possui existência. O homem só é homem entre outros corpos mas, com uma diferença: através de sua razão pode-se saber tanto de sua existência quanto de sua essência.

É hora de indagar: é o corpo que possui o homem ou é o homem que possui o corpo?

Quando anteriormente  abordei  sobre essência eu disse que ela se manifesta através do corpo. Isso é verdade. E como ela entra no corpo? Em uma análise existencialista, no caso humano especificamente, o corpo existe antes, depois a essência vai se formando. O existencialista por excelência, Jean Paul Sartre, define a existência precedendo a essência.

Ao se partir do fato de que o corpo existe por causa  e não apesar da essência, então nesse enfoque posso dizer que o corpo possui o homem. Nesse caso, a essência está ligada, de alguma forma, a um criador anterior a ele, ou seja, Deus. O homem nada mais é que uma determinação preestabelecida, será aquilo que seu criador lhe desejou no ato da criação. Mais ainda, o corpo comporta uma ou algumas características que o definem como sustentáculo de essência; e, nesse sentido, não há alternativa senão existir em função de algo que não escolheu. É o fatalismo predominando.

Nessa reflexão, tendo como parâmetro um criador, o homem não comporta angústia, pois possui uma segurança; carrega em sua estada - no - mundo a presença da força divina e isso lhe proporciona um sabor em viver, acreditando na continuidade após a sua morte. Não acredita portanto, no Nada da Existência, ou seja, no fim último que o homem busca, ou caminha inevitavelmente para ele.

Enquanto, desse lado, eu  constato a existência como tendo sentido porque a essência já aparece assim que o corpo toma forma na fecundação dos seres vivos, do outro, encontro a existência primeiro, depois a essência. Se o homem possui o seu corpo, digo então: uma vez que o homem faz parte de toda uma natureza humana, só se torna homem possuindo um conjunto de órgãos que é seu corpo. O corpo nada mais é que uma existência comportadora de essência a se fazer. A humanidade do homem está para se realizar através dos atos de escolha. Só se torna homem em seu corpo, na medida em que escolhe onde e como estruturar sua essência. Dando ênfase ao fato de que tenha obrigação de escolher, o homem está em constante angústia. O estar-aí, já é motivo suficiente para a presença da angústia. Refiro-me, inspirado em Sartre, que à existência precede à essência, pois o futuro do homem é ele quem faz através de suas constantes elaborações e re-elaborações do cotidiano. A maneira de ser  não está ainda formada, está sim, em busca e essa busca  gera um desconforto, sabendo que tudo está em suas mãos para ser decidido. Nada está  pré-estabelecido ou pré-elaborado.

Todavia, não possuindo uma segurança em um criador, o homem é forçado necessariamente a ser dono de seu próprio caminho; é jogado na angústia do fim. Sabe-se que terá o fim e o fim é o Nada. A angústia não está centralizada exclusivamente no fim, mas tão somente no agora, no viver aí, no estar-aqui. É o ter que escolher, entre várias alternativas, a que melhor lhe convém. Essa sedimentação existencial vai se dando ao longo de atos e relações de corpos. Nesse aspecto, o corpo é, evidentemente, um resultado biológico no qual o homem incorpora sua humanidade. Sartre, falando em humanidade, elucida o fato de que todo homem incorpora todos os outros da mesma espécie no caso humano, daí ser seu ato de liberdade com responsabilidade.

A angústia em sua vida faz o homem  ter a sensação de fim de existência. O fim, no caso a morte, é o ponto fundamental pelo qual ele  escolhe os seus atos. O Nada é tão somente, a presença desse fim em ato. É aí que o corpo exala sua existência e com ele também o homem que ele comporta. Perde-se a possibilidade da essência se fazer ainda um pouco; já não mais há angústia, pois, é o Nada que assume seu papel enquanto existência. O  Nada é a ausência de algo, segundo M. Heidegger. Parafraseando esse autor, pode-se dizer: o nada é a ausência de corpo e, não obstante, de essência.

Pode-se dizer, todavia, que a essência é o vir-a-ser enquanto a existência é esse vir-a-ser em ato. O que significa dizer o mesmo do fenômeno, ou seja, a forma que tem o corpo é a maneira própria da essência se manifestar. Equivale dizer do homem como fazer-se. A cada dia o homem já não é o mesmo de antes. Esse fazer-se é o movimento que encobre a carne que deseja se expressar. Isso não determina que a existência esteja  elaborada, pois, se a cada momento  se perdem e se adquirem elementos, seja por escolha ou não, é a maneira de cada  essência individual deixar-se revelar. É justamente o conjunto desse vir-a-ser, dessa existência, desse movimento, desse revelar-se que forma o fenômeno. O fenômeno é, portanto, aquilo que nos vem aos sentidos. Aquilo que se revela.

No texto em que Sartre fala sobre a relação de que os outros são o  inferno, trabalha toda a problemática vivida no conflito com outros, ou seja, não se pode ser totalmente livre, porque, na medida em que se entra em contato com outro humano, ele tolhe, ele proíbe ação, porque todos os atos devem estar conjugados com a maneira de ser do outro. Se alguém existe, seu corpo é. E é apenas com o aparecimento do outro que há a revelação do ser enquanto objeto. O outro existe enquanto sujeito  na formação de sua essência, porque o mundo que o cerca é o objeto. Os corpos diferentes do seu é que fazem ser corpo no espaço determinado. “Para obter uma verdade qualquer sobre mim, necessário é que eu passe pelo outro”. É justamente esse outro que  coloca o homem em angústia, isso porque todos os atos são em relação ao outro. Portanto, o outro é o empecilho de liberdade.

Se o homem é, antes de mais nada, um projeto que vive subjetivamente; será antes o que tiver projetado ser. Como, então, poderá ele se colocar como aquele responsável pelo projeto que não projetou?

Aqui o existencialismo explica da seguinte forma: há universalidade  de todo projeto no sentido de que todo o projeto é compreensível por todo homem. É justamente aí que o homem deve assumir sua condição de homem, pois “ele é não apenas como se concebe ou que o fizeram conceber, mas como ele se concebe depois da existência, como se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz”. Nesse sentido, é ele também capaz de escolher aquilo que é bom, pois, assim sendo, escolhe aquilo que é  o Bem que também o é para todos os homens. Daí assumir a sua humanidade, juntamente com todos os outros.

Pelo fato de estar o homem condenado a ser livre, sabendo que não criou a si próprio e uma vez jogado no mundo, é eminentemente responsável por tudo o que fizer, inclusive seu projeto de homem. Por isso, não o é sozinho, mas todos o são  da mesma forma que ele. Tem de agir de tal forma que tudo que fizer implique na liberdade de outro, mesmo sabendo que este outro é um empecilho à liberdade. É dentro desse impasse que “um homem nada mais é do que uma série de empreendimentos de que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem estes empreendimentos”. Portanto, o homem é o futuro do homem, uma vez que não há humanidade sem haver liberdade individual dentro de um coletivo;  é aí que assume o papel de ser sempre sujeito.

A liberdade só pode ser tomada como um fim se for igualada à dos  outros como um fim. Daí dizerem os existencialistas, que o homem nunca deve ser tomado como fim, porque ele está sempre por se fazer.

Estou tentando dizer que o homem se faz dentro dos parâmetros escolhidos, levando em conta não só a liberdade que é sua, mas a dos outros; que a existência precede a essência e que houve desvios na interpretação da condição humana, principalmente hodiernamente. Por isso mesmo que sentimos a necessidade de recuperar o homem integral, ou seja, aquele possuidor de um corpo de carne, querendo se manifestar dentro das intempéries existenciais. Ser dono de seu projeto de homem, e não meramente executor de projetos pré-elaborados pelo meio social (escola, igreja, família etc). O homem moderno não sente, ou não tem tempo de sentir, que deveria ser a questão de preferência,  para se colocar frente a frente com sua essência. Não se percebe existente. É o corre-corre em busca daquilo que não queria que fosse seu projeto de construção de essência. O homem está se desumanizando a cada dia. Há de se cuidar e muito rápido, pois ao contrário, não mais poderá ter o sabor de existir com essência...

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

SARTRE, J. P. Sartre no Brasil: A conferência de   Araraquara. Ed. Bilíngüe. R.J: Paz        e Terra, SP, Unesp,   1986.

  ——————. O Existencialismo é Um Humanismo. Trad. de Vergílio  Ferreira. 2. ed. Lisboa, Editorial Presença.

 GILES, Thomas Ransom. História do Existencialismo e da  Fenomenologia. SP: EPU/EDUSP, 1975.

CHATELET, François. História da Filosofia: Idéias e  Doutrinas. 2. ed. RJ: Zahar, 1982 (v.8 o séc. XX).

 BEAUFRET, Jean. Introdução Às Filosofias das Existências. SP:  Duas Cidades, 1976. (série universidade: 7)



[1] Osvaldo Dalberio, Doutor em Serviço Social da UNESP, campus de Franca São Paulo; Mestre em Educação pela UNICAMP – Campinas, São Paulo; Filósofo pela PUC-Campinas; Docente na UFTM (universidade Federal do Triângulo Mineiro).