EM NOME DA CRUZ E DA ESPADA, EM NOME DE DEUS E DE SUA MAJESTADE: UM OLHAR SOBRE A CONQUISTA DO NOVO MUNDO  

Resumo

Este artigo objetiva, de um lado, o cumprimento de atividade acadêmica de conclusão da disciplina Estudos Culturais, (Mestrado Acadêmico em Letras e Ciências Humanas - Humanidades, Culturas e Artes) a partir do texto Culturas Visuais: entre a arte e o patrimônio – A sociedade sem relato – antropologia da estética da iminência, de Nestor Canclini. Propõe ainda este trabalho, principalmente, o estudo e a análise da pintura histórica a Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles de Lima, buscando resgatar os fatos referentes à introdução do estudo das artes no Brasil, no século XIX, com base nos acontecimentos que estão relacionados com a vinda da Corte Portuguesa ao Brasil e as ações de D. João VI. Por outro lado, o diálogo entre arte e patrimônio na cultura visual, a partir do texto já mencionado no início desse resumo.

Palavras-chave: cultura visual; arte e patrimônio; século XIX; Missão Artística Francesa.

Abstract

This article aims, on the one hand, the fulfillment of academic activity of completion of discipline cultural studies, from the text Visual Culture: between art and heritage - The company unreported - imminence of aesthetic anthropology, Nestor Canclini. It proposes this work, mainly the study and analysis of historical painting the First Mass in Brazil, Victor Meirelles de Lima. Seeking rescue the facts concerning the introduction of the study of the arts in Brazil in the nineteenth century, based on the events that are related to the coming of the Portuguese Court to Brazil and the actions of King John VI. On the other hand, the dialogue between art and heritage in visual culture, from the text mentioned at the beginning of this summary.

Keywords: visual culture; art and heritage; nineteenth century; French Artistic Mission.

 

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Henrique Guilherme Guimarães Viana - Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas da Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO) – Campus I – Duque de Caxias – RJ. Linha de Pesquisa: Gênero, Etnia e Identidade.

INTRODUÇÃO

 O século XIX no Brasil foi um período fértil na criação de ícones que visaram à representação simbólica da nação e faziam parte de um projeto de civilização que implicava na ocupação do território, a defesa da ordem política, a disseminação da cultura europeia e a afirmação de uma tradição religiosa. Se a conquista do “Novo Mundo” se fez pela cruz e pela espada, em nome de Deus e Sua majestade, a construção simbólica da nação não foi diferente.

 Assim, este artigo tem por objetivo não somente um trabalho acadêmico de conclusão da disciplina Estudos Culturais, associado ao texto Culturas Visuais: entre a arte e o patrimônio, de Nestor Canclini mas também, através da pintura histórica Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles de Lima, buscar resgatar os fatos referentes à introdução do estudo das artes no Brasil.

Portanto, nesse contexto da construção simbólica da nação, a obra, a Primeira Missa no Brasil (1860), de Victor Meirelles de Lima (Desterro, SC 1832 – Rio de Janeiro – RJ, 1903), pode ser nomeada como o ícone nacionalista produzido para povoar o universo imaginário social dos brasileiros e do processo de construção dos mitos fundadores da nação.

Pode-se, dizer que a obra já nasceu símbolo da nossa história; a certidão de batismo do Brasil, ou ainda, a carteira de identidade da nação; o passaporte para o mundo como símbolo de arte patrimonializada e musealizada.

Trata-se de um ícone nacionalista que traduz o seu tempo e não a produção isolada de um artista. Ela é ao mesmo tempo o resultado de duas ideias e culturas diferentes. A cena é idealizada, a cena idealizada, mas tudo é apresentado como se fosse a verdade histórica, como se a pintura fosse uma revelação divina, por isso está ali, no Museu Nacional de Belas, para dar exemplo, para aconselhar, para narrar a nação, para ensinar a amar, em nome da cruz, de Deus e de sua majestade e, consequentemente, um olhar sobre o novo mundo recém reconstruído e em processo de organização.  

 Portanto, como é do conhecimento geral, de todos ou quase todos, trata-se de uma das pinturas históricas mais populares do Brasil. A imaginação do artista ainda hoje povoa o nosso imaginário. Muitas e muitas gerações de jovens estudantes formara-se vendo nos livros didáticos, cadernos e decalques as reproduções dessa obra de Vitor Meireles.

 Dessa forma, através de uma leitura contemporânea dessa imagem clássica poderia estimular questões, tais como: o destino das nações indígenas; a participação dos negros, dos migrantes e dos imigrantes na sociedade brasileira; o processo de colonização e o pós-colonialismo; os choques e conflitos de tradições religiosas distintas, o hibridismo cultural e a degradação do meio ambiente.

 As questões abordadas vão desde o suporte da arte na tradição e formas de leituras da imagem na história clássica até o espaço contemporâneo para permanência e memória da arte como patrimônio cultural. A importância de apontar um paralelo reflexivo entre tradição, arte e o patrimônio se dá diante da necessidade da definição de novos critérios, tanto no âmbito da historicização e teorização da arte, quando das formas de preservação e de difusão do patrimônio.

 No texto “Cultura Visual e História da Arte: a tradição do olhar sob a perspectiva pós-moderna” trata da relação entre a história da arte e os vários campos do sistema artístico a partir da concepção de cultura visual, ou seja, entre arte e patrimônio. Parte-se da noção de que, para o teórico da arte hoje, a interdisciplinaridade e o diálogo com outras áreas do saber – vinculadas à imagem, sua reprodução e veiculação nos vários suportes – pressupõe uma predisposição de abertura para a ressignificação

Missão Artística Francesa - Histórico

O século XIX no Brasil presencia mudanças profundas na história das artes plásticas em relação aos séculos anteriores, cujo sentido não pode ser compreendido sem referência à chamada Missão Artística Francesa. Em 26 de março de 1816 aporta no Rio de Janeiro um grupo de artistas franceses, liderados por Joachim Lebreton (1760 - 1819), secretário recém-destituído do Institut de France.1 Acompanham-no o pintor histórico Debret (1768-1848), o paisagista Nicolas Taunay (1755-1830) e seu irmão, o escultor Auguste Marie Taunay (1768 - 1824), o arquiteto Grandjean de Montigny (1776 - 1850) e o gravador de medalhas Charles-Simon Pradier (1783 - 1847). O objetivo é fundar a primeira Academia de Arte no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

 Há duas versões sobre a origem da Missão. A primeira afirma que, por sugestão do conde da Barca, o príncipe Dom João (1767 - 1826) requer ao marquês de Marialva, então representante do governo português na França, a contratação de um grupo de artistas capaz de lançar as bases de uma instituição de ensino em artes visuais na nova capital do reino. Aconselhado pelo naturalista Alexander von Humboldt (1769 - 1859), Marialva chega a Lebreton, que se encarrega de formar o grupo. A outra versão 2 afirma que os integrantes da Missão vêm por iniciativa própria, oferecendo seus serviços à corte portuguesa.                       

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¹ Instituição criada em 1795, com o objetivo de promover o aperfeiçoamento das artes e da ciência segundo princípios de pluridisciplinaridade. Origina-se do agrupamento da Académie française; Académie des inscriptions et belles-lettres; Académie des sciences; Académie des beaux-arts e Académie des sciences morales et politiques.

2 Nota-se que com os artistas também estavam a bordo os especialistas em artes mecânicas François Ovide, Charles Henri Lavasseur e Louis Symphorien Meunier, além de François Bonrepos, ajudante de Auguste Taunay.

Formados no ambiente neoclássico e partidários de Napoleão Bonaparte, os artistas se sentem prejudicados com a volta dos Bourbon ao poder. Decidem vir para o Brasil e são acolhidos por D. João, esperançoso de que possam ajudar nos processos de renovação do Rio de Janeiro e de afirmação da corte no país.     Recentemente historiadores buscaram um meio termo entre a duas versões, que parece a mais plausível.

Fala-se em casamento de interesses: por um lado, o rei teria se mostrado receptivo à criação da academia; a par dessa informação, Lebreton, com o intuito de sair da França, teria oferecido seus serviços, arregimentando artistas dispostos a se refugiar em outro país.

 Não foram poucas as dificuldades encontradas pelo grupo para realização da missão. A Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios é criada por decreto no dia 12 de agosto de 1816, estabelecendo pelo período de seis anos pensão aos artistas franceses. No entanto, ela não passa de uma medida formal, pois não chega a funcionar, devido a causas políticas e sociais: a resistência de membros lusitanos do governo à presença francesa; as dificuldades impostas pelo representante da monarquia francesa, o cônsul-geral coronel Maler; o atraso de ordem material e estrutural no qual se encontrava o Rio de Janeiro; o desprezo da sociedade por assuntos relativos às artes. A escola abre as portas somente em 5 de novembro de 1826, passando por dois outros decretos, o de 12 de outubro de 1820, que institui a Real Academia de Desenho, Pintura e Arquitetura Civil, e o derradeiro, de 25 de novembro do mesmo ano, que anuncia a criação de uma escola de ensino unicamente artístico com a denominação Academia e Escola Real.3

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3 Aventada pela primeira vez, em 1828, pelo pintor português Henrique José da Silva, profundamente hostil à presença dos franceses no Brasil.

    

  Durante o longo tempo de espera, os franceses seguem com suas atividades. Notadamente Debret e Grandjean de Montigny aceitam encomendas oficiais. O primeiro realiza diversas telas para a família real e o último é responsável pelo edifício da Academia Imperial de Belas Artes - AIBA e outras obras públicas, como o prédio da Alfândega (atual Casa França-Brasil). Por ocasião das festas comemorativas da coroação de Dom João VI, em 1818, ambos idealizam, com Auguste Taunay, a ornamentação da cidade. Debret também se dedica ao ensino de desenho e pintura num espaço alugado, enquanto realiza as aquarelas que marcariam sua obra da fase brasileira.4 No Rio de Janeiro, Nicolas Taunay segue como pintor de paisagem encantado com a natureza tropical.

 A situação torna-se difícil com a morte de Lebreton em 1819, e a nomeação, em 1820 do pintor português Henrique José da Silva (1772 - 1834) para a direção da Academia Real. Nicolas Taunay decide voltar para França em 1821 e é substituído pelo filho Félix Taunay (1795 - 1881). Os outros tentam adaptar-se à realidade de uma academia distante de seus planos originais. Com a chegada de reforços franceses, os irmãos Marc Ferrez (1788 - 1850) e Zepherin Ferrez (1797 - 1851), escultor e gravador, respectivamente, os remanescentes da Missão5 procuram resistir às adversidades criadas pelo novo diretor. Debret não aguenta por muito tempo e retorna à França em 1831, levando seu aluno preferido, Porto Alegre (1806 - 1879).

        Historicamente, além da importância da Missão Artística Francesa como fundadora do ensino formal de artes no Brasil, pode-se dizer que durante o tempo em que esses artistas permanecem no país, dentro ou não da

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4 Publicadas em Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil a partir de 1834, quando o artista já está de volta à França.

5 Charles-Simon Pradier foi o primeiro a regressar à França, em 1818.

 Academia, eles ajudam a fixar a imagem do artista como homem livre numa sociedade de cunho burguês e da arte como ação cultural leiga no lugar da figura do artista-artesão, submetido à Igreja e seus temas, posição predominante nos séculos anteriores.

Assim, após traçar um panorama histórico, político, artístico e literário do século XIX, a condição da arte, a chegada da Missão Artística Francesa ao Brasil e seus decretos para a criação da Real Academia de Ciências, Artes e Ofícios, posteriormente, a Academia Imperial de Belas Artes, seus diretores e os artistas franceses que aqui aportaram bem como a criação do Prêmios de Viagem ao Exterior (PVE), é o momento de dissertamos sobre o viés central desse artigo, a Primeira Missa no Brasil e a  trajetória artística de seu autor e os caminhos e o compromisso com um século em transformação.

Vitor Meirelles idealizou e realizou a pintou da Primeira Missa no Brasil em solo francês, e levou três anos para finalizá-la (1859 - 1861). Estava na Europa desde 1853, após ganhar o prêmio de viagem ao exterior pela Academia Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro. Assim, mesmo estudando com mestres europeus, por ser “bolsista” do governo brasileiro tinha que cumprir algumas exigências, como permanecer sob tutela e os comandos da Academia no Brasil. Logo, “sujeito também às ideias que esta articulava com a elite política e cultural do país, entre eles, o Imperador Pedro Segundo e o grupo do IHGB” (FRANZ, 2007: 2)6

No Brasil, neste mesmo período, vivenciava-se o movimento cultural Romântico, o qual teve sua origem na Europa, mas chegou à América poucos anos mais tarde. Segundo Coutinho, este foi um amplo movimento internacional que possuía aproximações em suas características estilísticas, sendo um “estilo artístico – individual e de época” (COUTINHO, 1999: 4)

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  1. IHGB estava diretamente vinculado à ideia de construção da nação brasileira através dos setores culturais, e agiu significativamente na literatura.

Neste caso do Brasil e sem nenhum juízo de valor, foi em nome de Sua Majestade, amante das artes que ocorreu a maior repercussão no setor literário, que obteve a sua independência nacional, com uma verdadeira revolução cultural, tanto na poesia como no romance, e em paralelo, na política e no social (COUTINHO, 1999: 14-15).

Porém não foi apenas nas letras que o setor cultural expandiu, nas artes plásticas também. Nesta, as características brasileiras foram singulares, apesar de possuir forte influência do Romantismo francês; destaca-se a presença da paisagem, mesmo quando a temática eram quadros históricos. A natureza marcava a diferença entre o velho e o novo mundo, pois a língua oficial, o português, era a dos antigos colonizadores (ROVANET, 1999: 27).

Logo, buscava-se, através da arte, uma diferenciação da antiga metrópole, Portugal, para se obter uma coesão de elementos que pudessem caracterizar a sociedade brasileira.

Outra característica presente no Romantismo foi a exaltação do nacionalismo, o que proporcionou uma arte com elementos de individualidade e de coletividade (COUTINHO, 1999: 23). Mais precisamente os setores culturais, por incentivo do então governo Imperial, representaram, através de elementos históricos e simbólicos, a nação, isso é, o coletivo e, ao mesmo tempo, as singularidades desta sociedade. No caso brasileiro, sobressaiu a natureza tropical e diversificada. Deste modo, “no Brasil, a valorização da história e do passado nacional constituiu uma das mais importantes atividades durante o Romantismo”.

Destaca-se as propostas e elementos desenvolvidos pelos literatos e pelos artistas plásticos aproximavam-se muito, pois a literatura buscava alcançar o caráter ilustrativo que a pintura possuía, para tanto, os autores descreviam a natureza (ROVANETE, 1999: 21-22).

A nação brasileira do século XIX foi representada através da paisagem tropical, descrita pelas letras e ilustrada pelas cores. Neste período, a formação do Estado-Nação e da identidade nacional fazia parte do projeto do governo Imperial.

Mais do que isso, “o século XIX pode ser definido como o século da construção do Brasil”. Após as revoltas regionais da primeira metade do século terem cessado, houve uma necessidade vista pela elite imperial em costurar a unidade interna. Buscou-se alcançar este objetivo por vias políticas, mas, sobretudo, através da construção de uma identidade nacional (MALERBA, 2007: 82). 

Portanto, foi através do Romantismo que desenvolvia-se uma relação entre a história, ou seja, o passado e a nação. Esta característica vinha dos europeus, os quais possuíam um passado remoto que era resgatado e exaltado de maneira grandiosa, assim como os seus heróis, mitos e guerras. O Brasil, por ser um país novo, não possuía esta mesma história longínqua no tempo, assim, a construção de mitos e tradições estava sendo consolidada (SALLES, 1996: 30-32). O resgate foi realizado de um passado recente, o do mito do descobrimento, o qual foi muito eficaz, como afirma Carvalho: 

Los héroes y mitos nacionales, en especial los mitos de origen, se cuentan entre los más poderosos instrumentos de construcción de identidades nacionales.[…] La creación de una memoria nacional de mitos y héroes ayuda a las naciones a desarrollar una unidad de sentimiento y de intención, a organizar el pasado, a hacer entendible el presente y a afrontar el futuro (2001: 89).

Desta forma, o mito de origem da nação brasileira foi “resgatada” da chegada de Pedro Álvares Cabral e reafirmada com a carta escrita por Pero Vaz de Caminha sobre o descobrimento do Brasil a Dom Manuel, rei de Portugal. Neste mito, segundo Marlena Chauí, se destacam dois pontos, primeiramente o Brasil como um “povo novo o qual surgiu da mistura de “três raças valorosas: os corajosos índios, os estóicos negros e os bravos e sentimentais lusitanos”, e a representação homogênea do país, que permite “crer na unidade, na identidade e na indivisibilidade da nação e do povo brasileiro” (2001: 6-7). 

A ideia das três raças, índio, negro e branco português, como formadoras da nação brasileira, é mais recente, pois durante o Império o negro não era reconhecido como integrante da sociedade, logo, ele não poderia ser formador desta nação. Entretanto, o índio foi significativamente exaltado pelos literatos e artistas plásticos. O índio europeizado (e a visão do “bom selvagem”) surgiu com o Romantismo, o qual caracterizava de maneira muito singular a nação. 

O indianismo foi a principal temática dos escritores românticos brasileiros. Nas artes plásticas o índio tornou-se o modelo de representação do país, onde se destacam pintores como Victor Meirelles e Rodolfo Amoedo. Mas, a paisagem tropical e a floresta virgem, apareciam tanto nos romances épicos sobre chefes de indígenas heroicos e amores silvestres como nas pinturas (MALERBA, 2007: 91). Este índio idealizado era a representação ideal para a construção de uma nação pacífica onde o índio ingênuo e “não civilizado” tem contato com o branco europeu, que o catequiza e o ensina a ser civilizado.

Além da criação (e difusão do “bom selvagem”), Salles aponta mais oito mitos que foram emblemáticos na construção do Estado-nacional brasileiro no século XIX através do Romantismo, e que foram destacados por Antonio Soares Amora ao analisar Noções de corografia brasileira, preparado por Manuel Joaquim de Macedo para a exposição de Viena de 1873: a grandeza territorial, a majestade e opulência de sua natureza, a igualdade de todos os brasileiros, a benevolência, hospitalidade e grandeza do caráter do povo, a grande virtude dos costumes patriarcais, as invulgares qualidades afetivas e morais da mulher brasileira, o alto padrão da civilização brasileira e a privilegiada paz do país num mundo dominado pelas lutas políticas e sociais (1996: 33). 

Os mitos citados acima são, acima de tudo, mitos de formação a partir do momento que correspondem historicamente à constituição desta ‟entidade ‟Brasil enquanto superação e resgate de seu passado colonial e constituição de uma formação social política, cultural e ideologicamente autônoma”.

 Por causa disso que sua permanência ocorreu mesmo com a superação do Romantismo, pois foram bases “concretas” no passado que originaram esses mitos (SALLES, 1996: 34).

Nos textos literários esses elementos são constantes, assim como na pintura acadêmica do século XIX. A produção plástica de Victor Meirelles (1832-1903), que teve maior repercussão, se insere neste período de construção de um mito fundador e de uma identidade nacional. A principal obra deste contexto foi A Primeira Missa no Brasil (1861), a qual é a mais emblemática representação da nação brasileira. Como afirma Jorge Coli: 

a descoberta do Brasil foi uma invenção do século XIX. Ela resultou das solicitações feitas pelo romantismo nascente e pelo projeto de construção nacional que combinavam então. Como ato fundador, instaurou uma continuidade necessária, inscrita no vetor dos acontecimentos. Os responsáveis essenciais encontravam-se, de um lado, no trabalho dos historiadores, que fundamentavam cientificamente uma verdade ‟desejada; e, de outro, na afetividade dos artistas, criadora de crenças que se encarnavam num corpo de convicções coletivas (2005: 23).

Desta forma, juntamente com a formação de instituições, como IHGB, o setor cultural trabalhou a favor da construção da identidade nacional e a pintura, mais especificamente, soube articular o estilo acadêmico e realista com o imaginário, dando ao mito uma representação real. A pintura de Meirelles consegue transferir “ao espectador um sabor romântico, uma coloração espontânea, enfim, mais massa do que linhas, mais vibração do que contornos” (KELLY, 1979: 25). 

Muito mais do que uma mera representação, a imagem plástica da primeira missa, cumpre o papel simbólico para história do Brasil, tornando-se um elemento eficaz para a formação da identidade nacional no século XIX. Como

afirma Anthony Smith: “uma linguagem e um símbolo nacionalistas são mais vastos do que uma ideologia ou um movimento ideológico” (1997: 96).

Assim, a obra de Meirelles tornou-se referência simbólica, vista quase como realidade do ato de batismo da nação brasileira; este momento prenhe de significados, que o projeto de construção de um passado histórico do Brasil do século XIX soube explorar (COLI, 2005: 29)

As Artes Plásticas e a Literatura tiveram um papel fundamental na educação do povo e no projeto de civilização da sociedade brasileira, atingindo o imaginário nacional através de representações, durante o Romantismo. Portanto, a pintura de Victor estava diretamente vinculada com a construção e consolidação da uma nação brasileira proposta pelo governo imperial, pois, como afirma Stuart Hall: “a nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural [...]. Uma nação é uma comunidade simbólica” (2006: 49).

Deve-se destacar a importância que teve a pintura histórica para construção da nação e, sobretudo, do sentimento de identidade no século XIX, pois “las imágenes y los símbolos impresos en una tela debían representar acontecimientos históricos que serían comprendidos de um golpe por la mirada del público”. A tela de Meirelles encaixa-se nesta perspectiva, sendo reproduzida em livros didáticos, como ilustração do início da colonização portuguesa.

Segundo Prado: “La pintura anuncia la evangelización consetida de los indígenas y su „tranquila sumisión‟” (2009: 287-288). Nesta perspectiva, o país estava sendo fundado de maneira harmônica, agregando, pacificamente, os nativos e os portugueses recém chegados.  Desta forma, como afirma Duque-Gonzaga: “a primeira missa não podia ser senão aquilo que ali está”, pois, é a narrativa simples da história que a torna tão próxima do real, ou seja: “um altar, um padre oficiando, um outro servindo de acolito, a guarnição da armada portuguesa assistindo ao oficio divino, o gentio aproximando-se, cauteloso, admirado, imitando o que via fazer” (1995: 1973). São os elementos básicos

para a compreensão necessária de tal evento. A representação foi realizada da maneira ideal para atingir leigos e ilustrados. A imagem da fundação da nação foi ali legitimada pelas cores e confirmada pela utilização da carta escrita por Pero Vaz de Caminha, elementos essenciais para a confirmação daquilo tudo que estava sendo pregado pelo Império em relação à nação brasileira.

O Império almejava e construía um projeto de nação, no final do século XIX, que objetivava apresentar uma harmonia e unidade nacional que não existia; para tanto alguns elementos simbólicos eram utilizados. Havia, no entanto, uma nação real e outra nação ideal, as quais eram completamente diferentes, sendo a primeira extremamente heterogênea e escravocrata, enquanto a segunda, era homogênea, civilizada, com um Estado forte e uma sociedade harmônica. Isso mostra que, a exaltação que era feita do Brasil não passava de uma construção de mitos, pois havia uma incoerência nacional (MACIEL, 2008). O Estado afirmava-se como grandioso e forte enquanto exacerbava a nação, defendendo que era necessário manter-se uma monarquia para não haver a descentralização, a fragmentação do país, como houve com os países da América Espanhola.

Entre os vários motivos da construção e criação de uma identidade nacional brasileira no século XIX, um deles, talvez o principal, tenha sido o de fortalecer o Império e colocar a população a favor dele, pois, com o país recém independente, precisava-se do apoio dos intelectuais e dos não letrados (que compunham a maior parte da população). Assim, diversos artifícios foram utilizados, a literatura, a educação, as artes plásticas, enfim, tudo que estava ao alcance dos ilustrados que comandavam o país ou estavam próximos a estes.

A necessidade de se criar nações, o que acaba forjando identidades e inventando tradições, pode acontecer de diferentes maneiras, variando de acordo com o local (seja este um país ou uma região) e também o período, conforme os acontecimentos históricos, sociais e culturais do momento. No caso do Brasil, no século XIX, um Estado-Nação precisava ser formado logo; o país necessitava de uma história, de um passado, e a Carta de Pero Vaz de Caminha, a qual possuía um estilo único: “límpido, preciso, visual, com um frescor tão adequado ao mundo inocente que reconstitui” projetou-se

diretamente no imaginário histórico que emergia e atravessava aquele século, assim, “o documento do passado encontra o seu destino numa inequívoca teleologia nacionalista” (COLI, 2005: 27). 

A imagem emblemática de Meirelles até hoje faz parte do imaginário nacional brasileiro, como uma representação real da Primeira Missa no Brasil. Nesta pintura não se encontra apenas um país católico, divino por natureza, mas também uma colonização harmônica, onde portugueses e índios convivem em paz, a mistura das raças é pacífica, sem violência física ou moral, apelando ainda para a fé. Desta forma, o Brasil era acima de tudo homogêneo, coeso, grandioso, católico e harmônico.

Pode-se observar que ao longo de todo o século XIX, a identidade nacional brasileira foi uma construção forjada pelo Estado, o qual tentava tornar-se uma Nação. A partir desta perspectiva, compreende-se que a nação e o Estado não possuem o mesmo significado, porém podem ser criados ao mesmo tempo (HERZOG. 2003:112). No caso brasileiro, como podemos notar surgiu um projeto de nação para fortalecer a construção de um Estado. Segundo Smith, existem pelo menos cinco possíveis usos do nacionalismo: 1) um processo de formação, ou crescimento de nações; 2) um sentimento ou consciência de pertencer à nação; 3) uma língua e um simbolismo da nação; 4) um movimento político-social em nome da nação; 5) uma doutrina e/ou ideologia da nação, desde um ponto de vista geral ou particular (2004: 19-20). Estas não são excludentes entre si, e, no Brasil, dialogam de maneira clara ao longo de sua história. Entretanto, o autor destaca o item três, relacionado à língua e ao simbolismo, pois estes dois não podem ser separados da ideologia nacionalista pois, “los conceptos distintiva clave del lenguaje del nacionalismo forman los componentes intrínsecos de su doctrina central y de sus características ideológicas” (2004: 21) e, por outro lado, el simbolismo del nacionalismo muestra tal grado de regularidade a través del globo, que podemos aislarlo de su marco ideológico. El simbolismo nacional se caracteriza, ciertamente, por la gran amplitud de su objeto, la nación, pero igualmente po la tanquibilidad y viveza de sus signos característicos (2004: 22)

A linguagem e a palavra, portanto, é justamente o que fundamenta a ação interdisciplinar, troca entre saberes indispensável hoje para a atuação do historiador da arte. Portanto, considerando como conclusão desse trabalho, entendemos que a Primeira Missa no Brasil, tornou-se uma imagem emblemática da história do Brasil e pertence ao imaginário da sociedade brasileira, desde o século XIX até hoje, como sendo o registro real da fundação da nação. Desta forma, a pintura foi utilizada de diferentes formas ao longo dos anos, desde reproduções em livros didáticos até como modelo para cinematografia. 

A existência de apropriações, reproduções, reutilizações e releituras do quadro de Meirelles evidenciam a sua importância no imaginário nacional e, mais do que isso, para a formação da identidade brasileira. Inserida no contexto do Romantismo, esta pintura não foi realizada a mero acaso, pois, foi uma indicação de seu tutor, Manuel de Araújo Porto-Alegre, o qual tinha a “consciência do papel da arte figurativa e particularmente da pintura histórica na formação da identidade nacional” (AGUILAR, 2000: 104).

Assim, essas reflexões auxiliam para se observar as diferenças entre o imaginário social do século XIX sobre a nação brasileira, representada na Primeira Missa no Brasil (1861) de Victor Meirelles.

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