Em 2008, numa nostalgia de lembrar a adolescência, resolvi rever episódios do anime Yu-Gi-Oh!, que tem o menino Yugi Moto (escrito ao redor do mundo como Yugi Muto ou Mutou) e o espírito do Faraó Yami/Atem que incorpora o primeiro como protagonistas. Como era de se esperar, me lembrei das inúmeras "críticas" (eufemismo de condenações) vindas de denominações cristãs ora contra o desenho ora contra o jogo de cartas que deu origem a ele. Algo muito esperado vindo de uma religião intolerante e antipagã "por excelência" – ainda que ironicamente recheada de muitos aspectos assimilados de várias culturas pagãs situadas pelos domínios do antigo Império Romano e suas vizinhanças – que, para tentar desqualificar as religiões não-monoteístas, tacham as entidades divinas delas de "demônios" e os rituais sagrados delas de "satânicos", passando pela obtusidade de falar de forma caluniosa que os espíritos malignos contra os quais essas crenças alheias sempre se posicionaram são seus aliados também.

Nessa nostalgia pessoal e me aproveitando de minha posição de defesa à harmonia e respeito mútuo entre as crenças e descrenças – o que, a saber, não exclui o direito de levantar críticas baseadas em argumentação racional, objetiva e honesta –, entro em defesa a Yu-Gi-Oh!, incluindo eu o jogo de cartas e o anime que se baseia nele. Manejo minha argumentação ao melhor estilo "Monstros de Duelo", com conhecimento de causa, cabeça fria e senso de saber onde me defender e (contra-)atacar. Então, é hora do duelo, cristãos.

Começo pelo ponto maior presente em todos os sites referidos: a malignização do jogo Monstros de Duelo (também conhecido como Magic and Wizards) pela presença de demônios, magias e entidades relacionadas à(s) mitologia(s) ocultista(s). Entro logo falando do jogo em si, o anime será defendido numa abordagem bem maior e já sem o ônus dos "demônios das cartas". Primeiro, deve ser reconhecido que o conceito de divisão entre entidades do bem e do mal como os cristãos conhecem não existe no jogo. O conflito dualista característico do cristianismo – e de religiões anteriores como o zoroastrismo – dá lugar ao equilíbrio Yin-Yang, em que "bem" e "mal" se completam. O jogo não diz que umas entidades são benignas e outras são malignas, bem pelo contrário. Feiticeiros, demônios, dragões, animais, guerreiros de armadura, máquinas de guerra, fadas e até santos (como a Santa Joana usada por Serenity no episódio 107 do anime) e deuses (os três "deuses egípcios", exclusivos do anime) fazem parte de um só conjunto onde a dualidade diametral "bem X mal" não existe. O mesmo se aplica a cartas de rituais de magia branca ou negra, usadas em grande parte das vezes para invocação de monstros mais poderosos ou ressuscitados. Em suma, não é um jogo voltado à malignidade, mas sim a uma visão diferente de Mitologia, consistida no equilíbrio entre elementos opostos. Mas, como é de se esperar, sacerdotes cristãos têm horror e até ódio a visões de Filosofia Mitológica diferentes da sua e incumbem-se incansavelmente a crucificá-las na lógica "se não condiz com minha religião, é logo automaticamente maligno", muito similar às lógicas etnocêntricas da xenofobia e do nazismo. E, já que há uma categoria de demônios dentro de um acervo dezenas de vezes maior de entidades e uma classe de cartas de magia escura dentro de uma variedade também muito grande de cartas mágicas, o fogo cristão é mais intensificado ainda contra o jogo de Yugi Moto. Esta contra-argumentação também serve para defesa da presença de cartas com elementos da mitologia egípcia, até porque há cartas que lembram tantas mitologias quanto você se lembrar agora, incluindo um pouco da cristã.

Agora a parte que me anima mais a escrever este artigo: o anime. Posto no mesmo saco de desenhos e jogos violentos, Yu-Gi-Oh! é igualmente crucificado de maneira impiedosa pelos sites cristãos. Uma das páginas que visitei (http://igrejadegraus.com.br/ebooks/paraquemcriamosmossosfilhos.pdf) dá uma singela lista de supostas perversidades trazidas pelo desenho, como se ele fosse um propagador de:
1) reencarnação ou possessão de espíritos
2) dupla personalidade
3) evocação de mortos ou espíritos malignos
4) a magia presente na forma de busca do além ou de almas do outro mundo para conseguir o seu objetivo
5) a ligação do vocabulário espiritual
6) ligação com personagens violentos que geralmente são ligados a espíritos malignos ou demônios
7) convite para que seres espirituais malignos entrem em seu lar
8) desrespeito ao próximo
9) banalização da violência

Vamos desmascarar um por um, pela ordem.

1) Primeiro, a "reencarnação ou possessão" refere-se a Yugi Moto como receptáculo do faraó Yami/Atem, sendo portador do Enigma do Milênio, e a personagens antagonistas como Bakura e Marik. Devo relevar ao máximo duas questões:

a) Atem/Yami Yugi, a "versão faraó" de Yugi, é um personagem benigno, que sempre lutou pelo bem da humanidade. Vendo o desenho e a atuação do faraó, que mal podemos identificar nele? Posso falar de duas analogias no próprio cristianismo a respeito desse tipo de incorporação: cristãos podem crer que estão se deparando com a orientação mental ou espiritual de um anjo ou mesmo incorporando o Espírito Santo, que é parte do próprio Deus. Atem não é um deus (não é no desenho, uma vez que Atem, na mitologia do Egito real, era o nome alternativo de um deus egípcio chamado Atum) nem um anjo, mas está extremamente longe de ser um "espírito possessor do mal". Fica o dilema: se a pessoa sentir um anjo ou o ES incorporando é algo bom, por que não o é a incorporação de um rei que é o herói da história? E ainda há outro detalhe que oblitera qualquer crítica demonizante contra Yugi: o aprendizado mútuo entre as duas personalidades, algo inexistente nas possessões "denunciadas" ao largo do mundo cristão. Yugi e Yami, com uma admirável freqüência, demonstram que aprenderam inúmeros valores e virtudes um com o outro. Ainda não entendo o que há de tão desgraçado e condenável no "Yugi 2 em 1".

b) Bakura e Marik: são os malignamente possessos da história. Note que o enredo de Yu-Gi-Oh! não faz de suas versões do mal pessoas adoradas, muito pelo contrário. Yugi e seus amigos combatem essas entidades, até que, ao melhor estilo de exorcismo e luta do bem contra o mal, os expulsam e os banem do corpo dos vitimados. Inclusive Marik consegue, com a ajuda dos recém-amigos, expulsar de seu corpo a personalidade perversa. Se as aventuras de Yugi, Atem e cia. consistem em grande parte na luta contra males possessos, por que insistir em dizer exatamente o contrário, que o anime está exaltando a possessão ruim como algo bom?

2) Repito os argumentos que falei agora sobre Yugi e Yami e adiciono um detalhe que termina invalidando o temor cristão pela dupla personalidade do corpo de Yugi Moto: a ausência de dualidade entre o(s) protagonista(s). A dupla é o bem somado ao bem! Se o desenho mostrasse um Yugi de estilo "Smeagol & Gollum", com um lado bom e um ruim, em vez do herói duplo, e exaltasse isso como sendo "o máximo", aí sim haveria um motivo válido de os adultos se preocuparem com a influência exercida pelo desenho nas crianças. Poderia ser uma situação delicada ver o filho criança dizer que tem uma personalidade boa e uma ruim e que aprendeu isso no "desenho das cartas".

3) Para este argumento, reitero tudo o que disse na defesa ao jogo Monstros de Duelo, isso já é o suficiente. Em outras palavras, na "mitologia yugiana" não existe monstro intrinsecamente benigno ou maligno. Apenas os personagens que os utilizam nos duelos o são.

4 e 5) A rixa cristã contra essa parte é justificada mais pelo asco dessa religião a rituais, liturgias e cerimônias presentes em outras religiões do que pelo caráter supostamente maligno das invocações nas partidas.

6) Esta o caluniador de Yu-Gi-Oh! tem que especificar melhor, porque a informação está muito vaga. Caso seja uma referência aos monstros-mascote de cada personagem, notamos ao ver o desenho que isso não é verdade, uma vez que harpias (as Harpias de Mai Valentine), feiticeiros (o Mago Negro de Yugi e a Maga da Fé de Téa) e dragões (os dragões de Joey e Seto Kaiba) estão longe de poderem ser considerados demônios, a não ser na obtusa visão cristã de malignizar todos aqueles que não pertencem ao lado celestial da mitologia bíblica. Reitero também o contra-argumento de neutralidade e equilíbrio do parágrafo que defendeu o jogo Monstros de Duelo.

7) Ao vermos o anime, percebemos facilmente que, no lado dos protagonistas, simplesmente não existe nenhum "convite para a entrada de seres malignos". É verdade que não há nenhuma alusão ao deus cristão no desenho, mas isso não torna o contrário verdadeiro. Um conhecimento de causa faria muito bem, não é, senhor(a) caluniador(a) de Yu-Gi-Oh! e de animes afins?

8) Esse ponto eu faço questão de explicar mais abaixo, depois dessa lista de contra-argumentos.

9) A 4Kids Entertainment teve todo o cuidado de suprimir referências consideradas violentas quando adaptou Yu-Gi-Oh! para a televisão infantil americana – e brasileira, por tabela. Cenas com presença de sangue e agressões foram cortadas e a imagem de monstros com alusões a armas de fogo foi alterada de modo a suprimir estas. Pode-se dizer muita coisa de Yu-Gi-Oh!, mas nunca que é um desenho baseado na violência e pancadaria. Ainda mais considerando que na trama tudo, tudo mesmo, é disputado nas partidas de duelo, até mesmo o destino da humanidade. A versão japonesa, feita para adolescentes, contém algumas cenas violentas, mas na versão transmitida para o Brasil elas quase não existem.

Enquanto igrejas espalham aos quatro ventos que Yu-Gi-Oh! tem mil e uma características que influenciam perversamente as crianças, venho me posicionar na corrente exatamente contrária. Posso dizer que esse anime é em certos momentos um verdadeiro veículo de educação para os jovens sobre Relações Humanas, contendo valiosíssimos ensinamentos sobre:
- o valor da amizade e do amor;
- o despertar de sentimentos de apego total aos amigos;
- a superação de medos;
- o triunfo das virtudes sobre o modo revoltado de viver;
- a determinação e persistência;
- o desejo de proteger o mundo;
- a forma certa de se lidar com a vitória e com a derrota;
- a valorização das lições do passado, por mais repulsivo que este tenha parecido ser;
- o amor entre irmãos;
- a conversão de personalidades corruptas para uma vida virtuosa e em contínua evolução;
- a fé (isso mesmo, a fé, religiosa ou não!);
- a não-compensação de sentimentos negativos;
- a não-compensação do ceticismo quando adotado por mera rebeldia e sem fundamentos;
- a firmeza dos sentimentos e virtudes perante as piores provações da vida;
- e muitos outros.

Relevemos o andamento da trama. Joey e Tristan eram no início de tudo mal-encarados, verdadeiras "almas sebosas", até que Yugi os salvou de um rapaz brigão. Aquilo já mudaria permanentemente a relação dos dois com o personagem principal do anime. Ao longo do tempo, todos aprenderam mais e mais na vida que levavam juntos. Joey chegou ao ponto de pular do navio para resgatar algumas cartas de duelo de Yugi que um vilão jogou no mar. Conheceram Mai, que também se tornou uma ótima amiga. Quase todos os duelos eram marcados por lições de amizade, honra, honestidade, amor, cooperação e trabalho em equipe. Sem falar no exaustivamente pregado "coração das cartas", que é uma espécie de fé secular que exerce um papel muito semelhante ao da fé cristã, o de não entregar totalmente a vida aos ditames do acaso. Até ex-inimigos, como Duke Devlin, Noah Kaiba e Marik Ishtar, terminaram entrando para o lado do bem. Até Seto Kaiba, depois de muitas lições, entrou para o lado dos protagonistas, ainda que não deixando totalmente seu lado rebelde. Pergunto depois de tudo isso aos sites que insistem em caluniar o desenho e o jogo e pô-los nos piores poços de lixo cultural: por que Yu-Gi-Oh! não presta, mesmo quando relevamos seu caráter profundamente benigno e até educativo?

Como forma de negar influências perversas dos meios de comunicação, os cristãos lançam mão da recomendação bíblica de Provérbios 22:6 – "Educa a criança no caminho em que deve andar; e até quando envelhecer não se desviará dele" – e às vezes pregam a Bíblia como um instrumento educativo completo. Sinto em desapontá-los, mas um livro que contém passagens como I Samuel 15¹, Deuteronômio 28² e um Apocalipse repleto de demônios, monstros e bestas mitológicas que deixam os do jogo Monstros de Duelo "no chinelo" não parece ser uma influência realmente positiva para crianças. Menos ainda quando sabemos que esse mesmo livro prega a homofobia, a intolerância religiosa e a subjugação despótica dos animais e da Natureza perante o ser humano como comportamentos essencialmente corretos.

Seria prudente para os religiosos que, antes de levantarem uma polvorosa nas suas igrejas sobre os supostos malefícios comportamentais de um desenho animado, jogo ou filme, tomassem conhecimento de causa sobre o que criticam, analisando aos olhos da Filosofia aquilo que consideram perverso e condenável e verificando os verdadeiros valores que são transmitidos. Rebaixar desenhos como Yu-Gi-Oh! à classe pária da cultura juvenil só por causa da presença de elementos mitológicos sem malignidade intrínseca ou objetivamente atribuída, ignorando totalmente tudo aquilo de bom que é provido por eles, é uma atitude obtusa, desonesta e desrespeitosa. Do mesmo jeito que o é chamar uma entidade benigna da mitologia alheia de demônio ou tachar um ritual pagão de maligno.

 

¹ Uma brutal narrativa sobre a destruição de Amaleque e de seu rei Agague.

² Este capítulo contém, em contraste com 12 versículos de bênçãos para pessoas obedientes a Deus, nada menos que 49 versículos com maldições para quem "não der ouvidos à voz do Senhor".