Ekuikui E O Desejo Em Ser Mosca 

(conto infantojuvenil)

Pela centésima vez, Ekuikui dizia de si para si, estando sempre à conversa com os seus botões.

- Quero tanto ser uma mosca, só para ouvir o que as pessoas dizem, o que elas segredam, o que escondem ou dizem umas das outras. Desejo ouvir o que os juízes cochicham, num julgamento. Quero ouvir o que os treinadores segredam aos jogadores. Quero saber o que dizem as pessoas nos murmúrios. Sonho muito ouvir as conversas maléficas para as revelar, denunciar ou impedir que muitas coisas que não prestam no mundo aconteçam.

Passavam-se os dias e mais Ekuikui ouvia as pessoas à sua volta dizerem o mesmo.

- Eu queria ser uma mosca para ouvir o que as pessoas dizem de mim.

Confessava o amigo Mutu-Ya-Kevela a Ekuikui.

Era uma segunda-feira, de manhã, a caminho da escola, Ekuikui – que tinha o nome de um rei chamado Ekuikui Segundo – foi de encontro a uma sanga que estava caída ao chão. Era uma sanga pequena qual lâmpada de génio, tinha a forma de vasilha arredondada, feita de barro, para conservar e manter a água fresquinha e pura, o que nenhuma geleira podia fazer. Após Ekuikui embater contra a sanga, tendo a mesma inclinado para um dos lados, sem querer, dela saiu um génio pequenino, um verdadeiro talismã. Não temendo àquele, que pensava ser um génio do bem, o menino olhou-o nos olhos antes de o génio anunciar:

- Podes fazer dois pedidos, menino! Apenas dois!

- Só dois? Mas todos os génios atendem a três desejos. Questionava o pequeno estudante que ia à escola.

- Como te chamas, meu pequeno amigo? Ecoou aquela voz do bem.

- Ekuikui!

- Ok! Pois bem, mas o outro Ekuikui era um Rei do Bailundo, suponho que também o sejas. Não é assim? Ou já não achas que todos os génios devem ser e fazer as mesmas coisas? Como viste, saí de uma sanga e não de uma lâmpada como quase todos os génios.

Tendo o génio feito entender ao adolescente que as pessoas, as coisas, as culturas e tudo o que rodeia uma sociedade não têm que ser sempre iguais, o rapaz então pensou em vários desejos, até mais do que aquilo a que tinha direito.

- Ser rico, ajudar todas as crianças que passam fome, ser inventor, cientista, ter um carro, ser o melhor aluno da turma, ter uma namorada muito inteligente, conhecer os Estados Unidos da América, andar de voo, saber nadar, andar de bicicleta, ajudar os meus pais em tudo o que precisarem, salvar vidas como os bombeiros ou enfermeiros, voar como um pássaro...

Pensou, pensou, pensou e perdeu-se em si mesmo, nas suas palavras.

- Podes ser todas as coisas em que pensaste, podes tê-las, basta creres, dedicares-te. Por hoje, só podes pedir uma coisa que não esteja ao teu alcance num espaço e tempo de agora. Atenção, podes fazer um pedido para acontecer e outro para o desfazer, caso o necessites.  

Orientava o génio.

Então, sentiu-se obrigado a encurtá-los, não se pode ter tudo na vida. E declarou Ekuikui:

- Já sei! Quero ser uma mosca! Ih, ah, oh, sempre quis ser uma.

Declarou, sorrindo, entusiasmado, o rapaz. Abracadabra e já!

Embora não tivesse perdido a noção de ser humano, ganhou o instinto animal ligado à mosca e saiu a bater asas pela cidade.

- Zzzzzzzz! Zzzzzzzz! Zzzzzzzzz!

O primeiro lugar onde poisou foi num contentor. Permaneceu aí. Depois, queria ir para a escola, mas - pelo caminho – curioso, viu outro contentor e ali ficou a conversar com várias outras moscas, enquanto liam o vasto cardápio. Tendo as outras percebido a presença de uma mosquinha que aparentava ser muito nova, receando o pior, não faltaram conselhos à mosca novata.

- Olha, amigo, tem cuidado com as aranhas! Procura olhar sempre dos dois lados da via pública, antes de atravessares uma parede! Somos mais de cem mil espécies, mas nem todas são nossas. É preferível confiar num mosquito interesseiro e esperto, sedento de sangue, a confiar numa mosca egoísta. A nossa espécie é das mais limpas, depois de comeres, limpa bem as patinhas e anda sempre com a boca limpa! Trabalha muito de dia, para descansares de noite! A vida é curta, aproveita! Vive cada dia como se fosse o último, porque um dia se acerta, há moscas que não passam de um dia de vida! Nós podemos chegar a vários dias, mas isso se tu não calhares em mãos humanas ou numa raquete qualquer. Embora sejamos vistas como vilãs, más, inúteis, desempenhamos grande função no ecossistema, no meio ambiente, todos nós, os animais, somos úteis à natureza. Mas não te preocupes, é por isso que temos esta visão tão larga e abrangente, podemos olhar para todos os ângulos e lados estando numa única posição, é difícil caçarem-nos! Hum, apenas as aranhas nos conhecem bem e andamos sempre a brincar aos gatos e ratos…

Cansado, mas tendo ainda muito que fazer, interrompeu a sessão, agradeceu ao recém-amigo pelo baptismo e seguiu caminho, deambulando por vários pontos até chegar à escola.

- Aquele Ekuikui pensa que é inteligente, mas não passa de um burro.

- Eu também nunca gostei dele.

- Ele é feio, muito feio.

Ouviu comentários bons e muito maus a seu respeito, vindos de pessoas próximas. Saiu triste, e muito. Posto em casa, ouviu, na sala:

- Marido, tens que contar ao nosso Ekuikuizinho que ele não irá de férias este ano, porque não temos dinheiro.

- Pois é, esposa, não sei como lhe vou contar que eu perdi o emprego e que, este ano, ele não terá presentes nem conhecerá Gabela.

Saiu e voou sem paradeiro, pelas ruas. Quis poisar nalguns frutos, mas como estavam limpos, não chegou a fazê-lo. Quis poisar nas sanitas, mas estavam limpas, não havia lama nas ruas. Quis poisar numa manteiga, mas, entre os conselhos que lhe deram, sabia que jamais poisaria numa manteiga e sairia vivo. Esvoaçava aqui e acolá que encontrou uma água-parada. Tendo colidido com um mosquito numa lixeira da vida, brigou. Mas o mosquito não tinha razão, porque - durante o dia – a prioridade natural era para a mosca e, de noite, o mosquito tinha primazia. Ouviu muitas coisas tristes, coisas que o fizeram pensar, arrepender-se e até chorar:

- Ele é feio, burro, o pai dele não vale nada, ele é pobre, deve ser filho adoptado, é diferente dos pais, vive em bairros de lata, fala mal e outras coisas muito más, as quais, certamente, não ouviria cara a cara.

Então, voou, voou e voou até as suas asas não suportarem mais. Já sendo noite – um horário em que não podia voar como bem quisesse, mesmo que o quisesse, não o faria tão bem como de dia, à noite ficava mais lenta e perdia alguma habilidade – poisou num fio de roupa. Apesar de ter chorado bastante, ainda pediu ao seu talismã, ao génio, que lhe devolvesse ao mundo dos homens, ao seu mundo. Foi o segundo pedido que fez.

Então que ouviu Dona Kanda dizer, já pela centésima vez:

- Eu queria ser uma mosca para ouvir o que o meu marido fala sempre ao telefone, distante de mim.

De manhã, quando Dona Kanda ia para o trabalho, embateu numa sanga e apareceu o talismã, o mesmo génio. Então, só assim Ekuikui voltou a ser humano. Arrependeu-se por ter desejado um dia ser uma mosca, não porque tivesse detestado conhecer aquele mundo, mas porque soube de coisas que preferia nunca ter sabido. Descobriu-as da forma mais cruel e ouviu coisas até de pessoas próximas.  

Contou tudo aos pais, mas estes não se surpreenderam porque já tinham passado pelo mesmo também, já cada um deles um dia desejou ser uma mosca pela centésima vez.

- Eu soube de coisas infelizes, que nunca quereria ter sabido. Confessou-lhe o pai.

- Percebi que, no mundo, havia coisas que era melhor não eu saber, era bem melhor. Acrescentou a mãe.

Aquela sanga permaneceu naquele destino por muitos e muitos anos, e quem repetisse por cem vezes «eu queria ser uma mosca» um dia podia tornar-se no que desejara, desde que embatesse na sanga, de onde podia sair um talismã, um génio do bem.

 

Hilton Fortuna Daniel, 2018, Luanda. http://ekuikui e o desejo em ser mosca hilton fortuna daniel