0. Sumário

1.Introdução; 2. Visão Geral da Filosofia Portuguesa do Séc. XIX para o XX; 3. António Sérgio; 4. A "Educação Cívica" em António Sérgio; 5. O Auto-Governo e a Escola; 6. O Município Escolar: O Papel do Professor a) Organização dos Municípios Escolares b) Apreciações Gerais da Obra "Educação Cívica"; Bibliografia.

1. Introdução

Todos os dias, nos meios de comunicação social, muita gente fala dos direitos humanos, denunciando ou omitindo como eles são ignorados, quando não espezinhados, violados e deturpados em muitos países do mundo, todavia, ainda assim, vale a pena evocar o que tem sido ao longo do último século, a luta pelos direitos, pelas liberdades e garantias fundamentais da pessoa humana. Esta luta não é só do século passado passando já para o actual, além de ela mergulhar as suas raízes na mais remota antiguidade, mesmo quando os costumes, a mentalidade e a organização política de então, aceitavam, como fatalidade histórica, a tirania, a escravidão, a morte.
Esta problemática continua, porém, a ser uma questão educacional que, não é por acaso, está bem referenciada em documentação internacional, nomeadamente da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ONU (1948: Artº 26º): "1.Toda a pessoa tem direito à educação. (...); 2. A educação deve visar a plena expansão da personalidade humana e o esforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos..."
Muitas são as instituições/associações que ao longo dos tempos lutam contra a violação dos Direitos Humanos: Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, Comissão Europeia, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Liga Francesa para a Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, Liga Portuguesa dos Direitos do Homem, Amnistia Internacional, entre outras. Estas instituições devem a sua credibilidade à força moral e à coragem de não pouparem qualquer país onde periguem os Direitos Humanos, porém, os apelos, as investigações e as sugestões que tais associações divulgam, pouco são ouvidos e muito menos seguidos por uma, ainda significativa, parte dos países.
A dicotomia que na verdade parece existir em muitos países, leva a que uns dêem importância aos direitos civis e políticos; outros aos direitos económicos, sociais e culturais, produzindo, afinal, duas concepções políticas diferenciadas que bipolarizam as nações e que se conexam com a própria definição de democracia. Sem plagiar a etimologia grega, dir-se-ía que as democracias ocidentais, felizmente, defendem o pluralismo político, a liberdade de expressão, o direito de associação e de reunião, a ausência de polícia política e a garantia de liberdades individuais plasmadas nas Constituições Políticas, livremente votadas pelos representantes dos cidadãos através dos seus representantes.
Não foi inocente a escolha do tema, porque ninguém pode ficar indiferente, neste início de século, aos valores protegidos pelas diversas Declarações de Direitos Humanos, quando se conhecem situações de: a) Conflitos ? Que conduzem a que uma oposição consciente entre sujeitos ou nações, perseguindo objectivos incompatíveis, originam, muitas vezes, agressividades, que estão na origem de confrontos sangrentos, de consequências irreparáveis; b) Violência ? Que entre outras definições, escolheríamos, de acordo com GALTUNG, (1985: 30): que, genericamente, seria: "a causa da diferença entre o potencial e o efectivo", pois ela está " presente quando os seres humanos são influenciados de tal maneira que as suas realizações/anseios/esperanças afectivas, somáticas e mentais estão abaixo das suas realizações potenciais."
A razão do presente artigo é, pois, a apologia de uma Pedagogia para a Paz, que se pode resumir num conjunto de enunciados ou regras, dirigidos à educação dos indivíduos, para que actuem de modo a criar a base de um espírito mais humanista, inspirado no respeito e exercício dos Direitos Humanos, no trabalho em prol da protecção do meio ambiente, nas práticas sociais para o fortalecimento da convivência, da solução pacífica dos conflitos e da violência, quaisquer que sejam: físicos, materiais, psicológicos ou outros.
Uma educação para a paz, modernamente, deve apresentar as seguintes características, entre muitas outras, possíveis e, quiçá, melhores: a) Aceitar, e implementar um processo de socialização, por valores que aumentem o progresso social e pessoal, num contexto de desenvolvimento global; b) Questionar o acto educativo, desligando-se do ensino meramente transmissivo, em que o aluno é um mero receptor, isto é, o acto educativo como processo activo-criativo, em que os alunos são agentes vivos de transformação; (cf. SÉRGIO, 1984); c) Enfatizar, tanto na violência directa como na estrutural, facilitando o aparecimento de estruturas pouco autoritárias, não autistas, que possibilitem o espírito crítico, a desobediência, o auto-desenvolvimento e a harmonia pessoal dos participantes; d) Procurar coincidir fins e meios, a fim de se chegar a conteúdos distintos, através de meios distintos, fazendo do conflito e da aprendizagem da sua resolução, não-violenta, o ponto central da sua actuação; e) Combinar certos conhecimentos substantivos com a criação de uma nova sensibilidade, de um sentimento empático que favoreça a aceitação e compreensão do outro." (cf. APDME-CIP, 1990).
Reflectir-se-á sobre a visão geral da Filosofia em Portugal no Séc. XIX, e tenta-se, a partir da análise à posição de António Sérgio, com a necessária abordagem à sua obra "Educação Cívica", uma rápida incursão sobre a educação cívica em Portugal no ensino. Certamente, ficará uma opinião muito pessoal, seguramente discutível, porque não se trata de uma verdade dogmática. O resto, seria impossível e pretensioso, emitir a receita miraculosa para a observância dos Direitos Humanos, quando decorridos sessenta anos, depois da adopção da D.U.D.H, em 1948, a indiferença, e o desrespeito por tais valores continuam a ser uma realidade que, segundo a opinião pública: a) Metade dos países do mundo continua a deter pessoas pelas suas convicções políticas, ou ideológicas, origem étnica, sexo ou religião; b) Um terço dos Governos mundiais tortura os seus cidadãos; c) O número de refugiados em busca de protecção contra as violações dos direitos humanos elevou-se, na última década, para mais de 15 milhões; d) A pena de morte é aplicada em mais de meia centena de países.

2. Visão Geral da Filosofia Portuguesa do Séc. XIX para o XX

A crítica pertinente à filosofia tradicional elaborada por Luís Verney e exposta no "Novo Método de Estudar" teve grande repercussão no momento e após ele. A sua mensagem é reelaborada durante o século XIX, com novas atitudes de ordem filosófica, que pretendem a naturalização do espírito e a sua concomitante explicação de tipo naturalista, ou têm em vista espiritualizar excessivamente a matéria, diluindo-a em formas abstractas, herdadas ainda do Aristotelismo medieval.
Pode afirmar-se que a Filosofia Moderna em Portugal começa com Silvestre Pinheiro Ferreira, conselheiro de D. João VI, que, em Paris, tomara directo conhecimento com as doutrinas que se elaboravam sob a designação de "Ideologia" movimento esse resultante dos principais pensadores que, após a Revolução, reorganizaram a vida intelectual francesa. Também outros nomes saídos da Congregação do Oratório são dignos de menção, como Teodoro de Almeida, empenhado na restituição do autêntico Aristóteles e apaixonado cultor do que nessa época se chamava filosofia natural.
Descortina-se na segunda metade do séc. XIX quatro tendências dominantes, aparentemente irredutíveis, mas todas elas convergentes como tomada de consciência de atitudes afirmadas no estrangeiro: o sensismo, o eclectismo, o tomismo e o positivismo. A primeira tendência é assumida pelos discípulos portugueses de Condillac, cuja "Arte de Pensar" foi traduzida e publicada com prefácio dirigido aos portugueses. O eclectismo é representado por numerosa falange e continua, desse modo, a operar os malefícios imputados ao manual do Genovense.
Trata-se, em geral, de autores didácticos que traduzem ou compõem os seus livros de filosofia com conteúdos áridos e dogmáticos, com largas mas imprecisas reputações do panteísmo, do sensualismo e do idealismo. Cunha Rivara, em 1836, em bem documentado escrito, insurge-se contra a insuficiência entre nós do ensino da Filosofia. E, neste aspecto, o mesmo acontecia à corrente tomista, sobretudo a partir da encíclica "Aeterni Patris", de Leão XIII, com o uso e abuso do manual de Simbaldi. É, porém, na segunda metade do século XIX que a Filosofia de Comte encontra numerosos aderentes em Portugal. O positivismo passa a ser considerado como a última palavra de toda e qualquer atitude que possa valer como filosofia nos tempos modernos.
Teófilo Braga e Teixeira Bastos são os principais propagadores do positivismo e editam a primeira revista de Filosofia em Portugal. Por influência do positivismo a Filosofia torna-se a síntese das ciências. Da escolástica em nome de Deus e do Céu, passa-se a uma escolástica filosófico-científica em nome do homem e da terra. A reforma pombalina havia dado um rude golpe na metafísica aristotélica, postulando o ensino essencial da filosofia e o cultivo dos seus autênticos problemas, substituindo-os pela ciência, considerada na sua forma mais empírica e utilitária. Tratava-se mais de um movimento de opinião orientado para objectivos políticos, do que uma explanação filosófica.
Em contestação ao positivismo, outros autores se afirmam e outras correntes se defendem. Domingos Tarrozo, Amorim Viana, Antero de Quental, Cunha Seixas e Ferreira Deusdado enriquecem a temática vigente, carreando materiais, exercitando novas formas de pensamento, proclamando novos valores: quer defendendo o racionalismo, em oposição às atitudes motivadas por crença irreflectida; quer propondo nova visão evolucionista do universo e do homem; quer afirmando novas categorias de sentido dialéctico para a compreensão do real e do espírito; quer organizando vasto panorama crítico e sistemático da galeria das ciências, ordenadas lógica e sistematicamente; quer, ainda, buscando novas formas que não separem, mas congreguem os homens no estudo da nova estrutura da sociedade. Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra, pelo significado metafísico, antónimo do pensamento, aproveitando as críticas anteriormente feitas por Antero de Quental e Cunha Seixas, alcançaram triunfo sobre as teses positivistas e uma transmissão filosófica do pensamento português, desapossando o positivismo do lugar dominador das escolas, na cultura e na política.
Seguramente que poder-se-á dizer que a filosofia no século XIX, como aliás em séculos anteriores, oferece uma série de posições ideológicas, cuja estrutura unitária não é patente. E nisso consiste o seu valor e o seu significado: busca motivada pelo amor de saber o que se ignora. As coordenadas com que este não-saber se relaciona alteram-se com o tempo e com a pessoa, donde se conclui que é o anseio de busca que é válido, e não o resultado da pesquisa.

3. António Sérgio

Decorreu, em 1983, o centenário do nascimento de António Sérgio. No dia 10 de Junho, desse ano, foi condecorado, a título póstumo. Na ocasião foi denominado como ensaísta, crítico e filósofo. Mas seria de facto, António Sérgio, um filósofo? O seu pensamento será genuinamente original ou apenas uma boa teoria, assente numa boa construção ecléctica? E terá a sua Filosofia algum sentido? Certamente que para alguns autores, Sérgio não será um filósofo, pois não teria construído qualquer sistema; outros, porém, reconhecem-lhe características filosóficas, se se considerar o eclectismo como uma corrente do pensamento reflexivo.
De facto, referencia-se António Sérgio como um grande admirador e, por que não, um seguidor, de alguns temas, dos mais notáveis racionalistas e iluminados estrangeiros, sem descurar o clássico e antigo Platão, passando para a Idade Média com Santo Agostinho, S. Tomas e na Idade Moderna com Descartes, Espinosa, Kant. Possivelmente, tantas e tão importantes influências, não lhe permitiram elaborar e sistematizar, de forma estruturada, uma teoria filosófica sobre o mundo e sobre o homem, o que, apesar disso, não lhe retira o mérito noutras áreas.
Tem sido referido, ao longo da História do Pensamento, que os problemas fundamentais da Filosofia são, em qualquer época, muito semelhantes. Abordar tais problemas, situações e temas implica um repensar retrospectivo. Neste particular, diz-se que António Sérgio não foge à reflexão sobre a problematicidade dos assuntos, anteriormente analisados por outros pensadores. Talvez resida aqui uma grande dignidade a par da sua atitude humilde.
Sabendo ele que o filósofo não é, somente, um homem ilustrado e pensador, mas antes de mais, uma pessoa que repensa a Filosofia. Assumindo atitudes radicais quanto tais se justificam. Postura crítica e problemática, de tal sorte que, qualquer que seja a questão, esta possa continuar aberta a toda a discussão e susceptível de opiniões e soluções diferentes.
Considere-se, então, António Sérgio, um filósofo, talvez diferente daquele conceito em que por vezes se interiorizou, ou seja, no sentido especulativo, que nada resolve e tudo questiona. Aceite-se entender António Sérgio como um filósofo da acção, porque a sua filosofia será, primeiramente, uma teoria do conhecimento, uma epistemologia, um pragmatismo, estimulando o progresso em ordem a beneficiar a comunidade: quer o bem material, quer a emancipação económica, eram simples instrumentos do bem moral, a partir, justamente, da emancipação moral, da pedagogia do ser humano, o qual, deveria ser activo e culto, numa sociedade modificada.
António Sérgio agia porque pensava. A acção articulava-se com o seu pensamento, no sentido de contribuir para a formação do homem, precisamente, a partir de uma educação cívica que proporcionasse à sociedade uma vida de respeito e cumprimento de valores, de princípios, de direitos e deveres humanos. É assim que acção e pensamento adquirem um carácter ético. Além de racionalista, Sérgio é também um idealista, embora reconhecendo que o racionalismo clássico é abstracto, porque os seus defensores negam a possibilidade de o homem se fazer a si mesmo, através de actos de liberdade absoluta. O seu racionalismo, não impedia de idealizar projectos concretos, porque segundo a sua perspectiva, SÉRGIO (1976: 205): "A inteligência como eu a concebo, não minora a tal realidade: inteleccionar ao que me tem parecido, é perceber o real, o concreto, o particular".
É com esta simples introdução que se parte para a abordagem do caso exemplar de António Sérgio, analisando a sua obra sobre educação cívica, afinal tão necessária para melhor se entender a importância de certos valores: estudo, educação, trabalho. Assim pode-se cumprir e fazer respeitar os direitos humanos, hoje ? 2006.

4. A "Educação Cívica" em António Sérgio

Por incrível que a alguns empiristas possa parecer, o certo é que, quanto mais se pretende "inventar", mais rapidamente se volta às origens. A comprovar isto mesmo, veja-se, articuladamente, o que nos dizem alguns preceitos legais da Lei de bases do sistema educativo (ver Lei 46/86) e da Declaração Universal dos Direitos do Humanos (art.26º), respectivamente: 1) a) Lei de Bases: "O sistema educativo é o conjunto de meios pelo qual se concretiza o direito à educação (...) acção formativa orientada para favorecer o desenvolvimento global da personalidade, e projecto social e a democratização da sociedade" (cf. Art. 3º b); 2) Declaração Universal dos Direitos Humanos: "Toda a pessoa tem direito à educação; (...) O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso ao ensino superior deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito (CF. Art. 26º 1) e "A educação deve visar a plena expansão da personalidade humana e o reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos..." (cf. Art. 26º Nº 2).
O prefácio de Vitorino Magalhães Godinho na obra de António Sérgio "Educação Cívica", vem ao encontro, justamente, dos grandes valores e princípios da educação, (in SÉRGIO, 1984: 4-5): "A escola tem como objectivo formar a personalidade (...) para uma sociedade determinada que se educa, ou em função da história sócio-cultural, tendo como alvo a transformação da sociedade?" acrescentando que: "Para Sérgio temos que nos situar em relação a uma sociedade progressiva, educarmos para que triunfe a produção contra o parasitismo" e, mais à frente, o prefaciante esclarece: "Assenta-se, assim a escola, como a educação, em alicerces radicalmente distintos dos tradicionais. A escola é uma cidade, laboratório, oficina, uma comunidade de trabalho. A educação é uma acção, o que há que revolucionar são os métodos e não os programas (estes devem ser muito flexíveis). (...) Na escola-cidade a educação não pode ser coerção, mas não pode discutir-se, deixando de orientar, dirigir, é direcção pois."
Comprova-se, afinal, que o papel da escola tem, e, deverá ter, cada vez mais, uma maior importância, na medida em que, conjugadamente com outras instituições, nomeadamente a família, a religião, a política e a empresa, se formará o homem que desde Aristóteles, Platão, S. Agostinho, Kant, Habermas e António Sérgio se vem defendendo desde há milénios. Pretende-se um Homem-Pessoa- Humana, dotado de personalidade, de conhecimentos, de experiências vividas/sentidas, de atitudes, isto é, do homem que sabe-ser, sabe-fazer e sabe-estar. Defendem os ilustres antepassados, acima referenciados, um homem para os Direitos Humanos, sem dúvida.

5. O Auto-Governo e a Escola

A educação cívica é essencial para o bom relacionamento das sociedades e, naturalmente, para a compreensão/interiorização dos Direitos e Deveres Humanos, não parecendo existir grandes dúvidas que ela, a educação cívica, se deve iniciar na escola, seguramente, o mais cedo possível, mas também, indubitavelmente, ao longo da formação contínua, permanente e durante toda a vida do homem. O mesmo será dizer, em todos os níveis do ensino/aprendizagem, acções de formação, reciclagem e quaisquer outras.
Obviamente que a escola será o meio mais eficaz, desde que possua os instrumentos mais adequados: programas actualizados e coerentes; pedagogias e andragogias modernas; instalações bem dimensionadas e equipadas; formadores e professores imbuídos da sensibilidade crítica do conhecimento científico, técnico-pedagógico, espírito de humildade e de vontade de aprender com os alunos e formandos. Mas será que, no início de um novo milénio, as actuais escolas básicas, secundárias e superiores estão preparadas para este desafio? E os professores, mestres, doutores e formadores possuirão a compreensão e terão a tolerância suficientes para ajudar a resolver os problemas e situações dos alunos e formandos?
A obra de António Sérgio "Educação Cívica", talvez venha dar uma ajuda, concretamente, no papel da escola, como local do exercício de preparação para a vida real, em que os responsáveis não devem recear, nem ter complexos de importar programas, métodos, tecnologias e outros recursos, quando estes se revelaram eficazes noutros países. Sérgio dá um exemplo bastante simples mas elucidativo (1984: 27-28) relativamente àquele "cavalheiro que manda vir um certo automóvel sem motor" para dizer que "nós imitamos como toda a gente a maquineta de Inglaterra, a civilizadora do mundo, o país modelo mas que afinal não somos como os ingleses", porque "copiamos a maquineta mas esquecemo-nos do motor e, neste caso, o motor é a educação dos ingleses (...) a mola do sistema britânico consiste numa coisa, que por ser deles lhes chamaremos, como eles lhes chamam: o self-govermment."
Neste sistema, paralelamente à sociedade, à família e ao ambiente, também a escola forma o educando para a vida activa real, objectivos que a denominada educação lusitana não atinge, porque, afinal, importa coisas incompletas. A verdadeira educação portuguesa (ou de qualquer outro país?) passará por uma educação adaptada a uma escola do trabalho e da organização social do trabalho, sempre no respeito pelos direitos do próximo.

6. O Município Escolar. O Papel do Professor

Em princípio, uma sociedade organizada é composta por diversos órgãos/instâncias do poder. Através daqueles se exerce a autoridade, a justiça, a educação, a preparação para o mundo do trabalho, para a política, para a cidadania. Há objectivos que se pretendem alcançar, melhorar permanentemente, no sentido em que toda a sociedade possa viver em liberdade, em progresso, em fraternidade, independentemente dos meios e dos processos a utilizar pelos responsáveis. É certo, porém, que em muitos casos, de facto, a prática não corresponde ao discurso e a dúvida se instala quanto ao concretizar de objectivos relacionados com os Direitos e Deveres Humanos.
Neste contexto, uma vez mais, os sistemas educativos têm uma intervenção decisiva. António Sérgio, na obra que se vem acompanhando, (1984: 36) descreve a experiência do "Município Escolar" que, basicamente consiste em: "habituar a criança à acção municipal, à própria vida da cidade, ao exercício dos futuros direitos de soberania e de "self-govermment", (...) e que os estudantes mal pastoreados pelo mestre, reitor, director ou vigilante, formassem um verdadeiro município, sob a assistência, o conselho, a cooperação discreta dos professores. Seria assim a participação dos estudantes no governo das escolas bem maior que no sistema clássico inglês, e directa e larguissimamente exercida, como é hoje em muitas delas na União Americana."
Mas será que tal sistema educativo resultaria em países meridionais? Como reagiriam, perante um processo educativo desta natureza, os professores mentalizados para o exercício docente, numa escola ainda unilateralmente autoritária e principalmente directiva? Para esclarecer estas e outras dúvidas, António Sérgio revela as experiências efectuadas em Cuba, do sistema de educação cívica de Wilson Gill, a partir da carta da cidade escolar. No fim de seis meses, a directora da escola Nº 8 de Havana informava o seguinte (1984: 37): "Tenho o gosto de comunicar que a organização da cidade escolar, nesta escola, tem dado magníficos resultados, quer no que à boa ordem e disciplina respeita, quer quanto à interiorização nas crianças pelo respeito à Autoridade constituída, respeito que praticam com gosto dentro da escola, como preparação cívica para a vida posterior, no seio da sua pátria."
Igualmente o resultado da escola Nº 48 mostra idênticos resultados (1984: 39): "Considero um excelente procedimento de educação cívica. Contribui para fomentar o espírito de justiça, demonstrado nas primeiras eleições e a manutenção da obediência às autoridades. (...) Em resumo, do sistema de ensino Cidade Escolar, obtiveram-se as seguintes vantagens: 1ª) Preparação no conhecimento dos deveres e exercício dos direitos dos cidadãos; 2ª) Amor à verdade que é virtude dos povos livres; 3ª) Respeito às leis estabelecidas que regulam a ordem, principal actor em toda a colectividade organizada. A organização da Cidade Escolar durou duas horas realizando-se as eleições com a maior ordem e entusiasmo."
Segundo António Sérgio, (1984, 42-43) os principais fundamentos deste método de educação, podem descrever-se a partir de: "A ideia de que não se pode exercitar uma criança para um dever social sem a tornar parte de uma vida em sociedade, devendo a escola proporcionar-lhe os meios e as condições para genuínos actos sociais, semelhantes aos que os adultos encontram, sendo imprescindível que o aluno se habitue a cooperar pelo bem da comunidade e que a escola reproduza o mais possível a estrutura da vida adulta; O hábito escolar de obedecer a uma autoridade/governação de que o estudante não participa, acomoda o futuro cidadão numa apatia aos abusos dos "políticos de profissão", pelo que o objectivo do sistema será preparar os alunos, na idade em que os hábitos se formam e com estes o carácter para as responsabilidades do civismo; O método do Município-Escolar procura instalar os estudantes nas reais condições da existência social para os preparar para a benevolência, para a generosidade, para a honradez, enfim, para a clara consciência dos deveres do cidadão, desenvolvendo o altruísmo; O Município-Escolar fomenta a intervenção habitual, considerada como um dever e como um interesse do indivíduo, perante a corrupção administrativa e o " self - goverment" concede uma arma de combate para o saneamento da comunidade, principalmente quanto à acção futura do estudante no país e na política, habituando-o a fazer boa política contra os desonestos; Quanto ao papel do professor, a este compete-lhe não transcurar o Município, desvelá-lo, esclarece-lo, entusiasmar os seus alunos por um ideal ou sobre excelente, orientando ou dirigindo a criança com mão discreta, mantendo a autoridade ou delegando nos seus discípulos a jurisdição e a regência, por onde estes se executam no Governo de si próprios."

a) Organização dos Municípios Escolares

Na obra que se vem analisando, António Sérgio, descreve como a partir do "Self-Govermment" se podem criar tipos de escolas mais abrangentes, à semelhança de um Estado. Acompanhou depois todo o processo que se desenvolveu a partir de três cidades escolares a funcionar numa escola normal em Nova Platz ? Estado de Nova York. De modalidades tais como a "Júnior Republic", onde se instituíram leis necessárias à defesa da propriedade e o deferimento de julgamento e punição de delinquentes, verificou que as regras eram melhor executadas quando instituídas pelos estudantes do que impostas autocraticamente. A Cidade-Escolar passou a organizar-se na sociedade dos estudantes à maneira de um município norte-americano, com as suas câmaras, presidente, etc. Vários estados podem reunir-se numa nação ou confederação.
A forma rudimentar do sistema é o das Aldeias Escolares. No Município Escolar preparam-se as crianças para receber a ideia de Município. Aqui propõe-se-lhes uma noção concreta do governo democrático o qual terá por funções: fazer leis para cooperação dos cidadãos; vigiar em comum pelo seu cumprimento; elaborar um plano de governo que é votado pelos alunos; ensinar os alunos a fazerem petições e nestas a indicarem os objectivos principais. No funcionamento dos Municípios Escolares são importantes os forais nos quais constam as regras fundamentais, nomeadamente: objectivos, lei geral, coisas proibidas, deveres, punições, etc. O capítulo termina com uma advertência (1984: 58): "Daí a necessidade fundamental de impedir que nas escolas surjam partidos imperados nas clientelas das políticas da nação, a fim de que preparem cidadãos dispostos a atender antes de tudo aos interesses reais do Município."

b) Apreciações Gerais da Obra "Educação Cívica"

António Sérgio encaminha-se para o final da obra, considerando o "self-govermment" e o "self-support" (1984:69) afirmando que: "o verdadeiro educador há-de ser um vidente, um percursor, um profeta", sujeitando as crianças às exigências espontâneas, naturais e ideais de uma sociedade progressiva. O trabalho é aqui encarado como uma divisa que suporta as condições de dignidade, de esforço pessoal criador e disciplinado, de justiça e de cultura.
Os artigos produzidos na República, quer nos campos, quer nas oficinas são vendidos dentro dela ou para fora. Desenvolve-se, depois, todo o processo organizativo, que conduz, inclusivamente, se for o caso, à reabilitação, perante os cidadãos e o instrutor, de todo aquele que não se esforça por cumprir as regras trabalhando, tal como na vida real em sociedade se passa.
Destaca-se, pedindo ao leitor (1984: 83-84) que "... se coloque neste ponto de vista ao medir o valor pedagógico de autonomia ligada ao trabalho profissional." O autor conclui a obra com o seguinte comentário: "Os remédios são, evidentemente, uma escola de trabalho e de autonomia, do labor profissional e de iniciativa ? uma escola civil para a vida: é essa mesma que vos proponho. Dessa escola não vai banida ? bem ao contrário ? a educação estética e filosófica: só nela a arte, a ciência e a filosofia tomam vida, deixam de ser um cadáver mumificado numa sebenta."

Bibliografia

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Venade ? Caminha ? Portugal, Abril/2011

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
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