Introdução

 

            A partir da composição da riqueza líquida presente no inventário de cada indivíduo post mortem de uma amostra, Abrahão (2016) busca evidenciar as transformações ocorridas na economia brasileira a partir da ascensão da economia cafeeira. A escolha do local de análise (Campinas) é coerente e convergente com os registros históricos que indicam a região como grande protagonista do período de expansão do café.

            A economia cafeeira é uma marca histórica da integração do país à economia internacional principalmente a partir da segunda metade do século XIX. No estado de São Paulo o café percorre um caminho que começa no Vale do Paraíba e se estende rumo ao oeste, onde encontra na região de Campinas um solo de muito melhor qualidade, relevo e condições climáticas mais adequadas.  A riqueza gerada pelo café não se limitou à produção do grão, mas implicou no desenvolvimento da infraestrutura, do setor bancário, do comércio e da urbanização criando as condições para a modernização do estado de São Paulo (SILVA, 1986).

            O objetivo deste artigo é oferecer uma visão geral das mudanças ocorridas na economia brasileira, em especial a campineira dentro de uma perspectiva de evolução histórica dos inventários da sociedade de Campinas. Abraão (2016) apresenta dados estatísticos que permitem avaliar e compreender as razões históricas, econômicas e sociais que permearam tais transformações, o que destaca a importância do artigo para entendimento de um período tão relevante da Formação Econômica do Brasil.

 

Análise da riqueza por meio de inventários

            O constante crescimento da economia campineira entre 1870 e 1940 pode ser observado pelo aumento proporcional da riqueza líquida na sociedade de Campinas, conforme aponta os inventários observados por Abrahão (2016). No encalço da expansão da cultura do café, em razão de servir à mesma, novas riquezas foram sendo criadas como ferrovias, urbanização da cidade, indústrias, comércio e serviços, servindo de base para o desenvolvimento econômico da região.

            A análise da composição da riqueza apresentada na tabela abaixo considera quatro grupos de bens dos inventários: imóveis, ativos financeiros e estoques, escravos e outros.

            Segundo Abraão (2016), é notável a expansão dos imóveis no conjunto de bens das famílias após o fim da escravidão. Se num primeiro momento os recursos aplicados em escravos foram divididos entre imóveis e ativos financeiros e estoques, no período seguinte observa-se uma maior concentração em bens imóveis e o retorno da proporção dos ativos financeiros e estoques aos níveis anteriores a abolição.

 

Imóveis

            Conforme Abraão (2016), no período 1870-1890, os inventários da amostra registram 79,2% dos imóveis urbanos e 20,8% rurais. No período de 1895-1915 os imóveis urbanos avançaram para 88,3% do total e as rurais reduziram para 11,7%. Em 1920-1940 os imóveis urbanos recuaram para 83,4% do total contra 16,6% rurais. A grande concentração de imóveis urbanos no período inicial não refletia o valor dos inventários, o que indica que estes eram pouco valorizados em relação aos imóveis rurais. Porém esta situação foi se alterando e ao final do período os imóveis urbanos já concentravam 73% do valor total dos imóveis contra 54% do período inicial, demonstrando um êxodo característico do desenvolvimento econômico das cidades que, de acordo com Gremaud, Saes e Toneto Jr. (1997), atraía uma quantidade maior de pessoas em razão das riquezas acumuladas pelo Estado de São Paulo, especialmente pela atividade produtiva do cultivo do café. Segundo Silva (1986), as imigrações para mão de obra no café, sejam nacionais ou externas, também influenciaram para o desenvolvimento dos centros urbanos.

            Silva (1986) explica o processo de expansão das fronteiras agrícolas. As novas terras eram em boa parte terras devolutas, sem títulos de propriedade. A partir da expansão do cultivo do café, a burguesia cafeeira teve caminho facilitado pelo governo, que ela controlava, para a obtenção de títulos de propriedade dessas terras. Segundo nossa análise o aumento do registro de propriedades de terras provenientes desse processo podem explicar um percentual mais elevado dos imóveis rurais no período entre 1870-1890 em relação aos períodos seguintes, quando o intenso processo de urbanização acabou se sobressaindo.

            Segundo Abraão (2016), a valorização dos imóveis urbanos ocorreu a partir do segundo período avaliado (1895-1915) o que converge com Gremaud, Saes e Toneto Jr. (1997) que destaca o crescimento da urbanização no período. A partir da intensificação das imigrações que serão analisadas posteriormente, pequenos centros urbanos aparecem e antigos centros urbanos se desenvolvem nas proximidades das grandes fazendas. Para Silva (1986) a crise da superprodução do café iniciada em 1882 e aprofundada a partir de 1893 com implicações para a economia brasileira até os primeiros anos do século XIX, além das condições de exploração nas fazendas de café, levaram muitos imigrantes a mudar-se para as cidades em busca de melhores condições de trabalho, o que reforça a intensa valorização e participação dos imóveis urbanos no período analisado. Este processo foi ainda reforçado

            Já no período final (1920-1940), Abraão (2016) destaca que a crise da economia cafeeira ocorrida a partir da década de 1930, transformou a cidade de Campinas que se tornou mais industrial e passou a concentrar uma população mais significativa atraída pela instalação de um novo parque produtivo. Este momento histórico marcado pela migração e pela diversificação da economia foi capaz de estabelecer a cidade como o de pólo tecnológico do interior do Estado de São Paulo.

 

Ativos financeiros e estoques

            De acordo com Abraão (2016), no período 1870-1890 depósitos e empréstimos representavam 69,7% do total, as ações de capital de empresas apenas 17,4%. Nos períodos de 1895 à 1940 destacam-se o forte recuo dos depósitos e empréstimos uma vez que os empresários do café conseguiram financiamentos estrangeiros, e aumento em quotas e ações geradas pela evolução do sistema bancário brasileiro no fim do império, que ajudou no surgimento de novas empresas.

            Conforme Gremaud, Saes e Toneto Jr. (1997), estas importantes mudanças evidenciam um salto nos investimentos e converge com os registros históricos do período, sobretudo relacionado ao surgimento e desenvolvimento de empresas dos ramos bancário, ferroviário, industrial e comercial. A indicação de um aumento da quantidade de empresários também parece uma conclusão óbvia, bem como a indicação da continuidade da diversificação e ampliação da economia do estado de São Paulo e o novo sistema bancário brasileiro, mais estruturado que nunca.

            Silva (1986) destaca que este rápido crescimento da industrialização e do número de empresários é originado principalmente do capital comercial e responde às contradições do comércio exterior. As políticas econômicas favoráveis à burguesia cafeeira e os desequilíbrios da balança comercial reforçam a posição do Brasil na divisão internacional do trabalho como país exportador de bens primários ao mesmo tempo em que apontam os caminhos para o desenvolvimento industrial brasileiro através da substituição de importações, destacadamente focado no setor de consumo

            Silva (1986) explica também que a primeira metade da década de 1920 foi caracterizada pelo auge da produção de café em grande parte de São Paulo. Entretanto, no final desta década, a erosão das terras e a ocorrência de constantes geadas colapsaram as lavouras, provocando uma profunda queda das exportações agravada pela grande crise de 1929. O caminho seguido foi a opção pelo desenvolvimento da indústria e dos setores de serviços levando a uma mudança de perfil das cidades que deixaram de ser ruralistas e tornaram-se mais urbanas.

            Essa análise indica que há um ponto de divergente não explicado satisfatoriamente: o declínio dos depósitos e empréstimos. Gremaud, Saes e Toneto Jr. (1997) indicam o desenvolvimento e a expansão das atividades bancárias,  parte reflexo da reforma do sistema bancário brasileiro à época, bem como dos investimentos na economia. Como isso é possível sem crédito? Ou melhor, como é possível que haja crédito suficiente para esta expansão sem que haja em contrapartida o aumento dos depósitos e empréstimos? Encontramos resposta na análise de Silva (1986) que destaca a importância do capital externo a partir do Funding Loan, acordo firmando com a Grã-Bretanha que entre outras questões suspendeu o pagamento do serviço da dívida brasileira por 13 anos em decorrência da crise do café.

 

Escravos

            Conforme Abraão (2016), no período de 1870-1885 os dados da amostra exibem um constante declínio da presença de escravos na composição da riqueza das famílias. E como verificado na Tabela 1, nos períodos de 1895-1915 e 1920-1940, com a abolição da escravatura, já não havia mais escravos em posse das famílias campineiras.

            Para Prado Junior (1971), o processo de expansão da economia cafeeira para o oeste paulista se deparou com uma barreira até então não experimentada: a falta de mão de obra para o trabalho nas novas fronteiras agrícolas. Para as áreas antigas de São Paulo, Rio de Janeiro e Sul de Minas, a mão de obra escrava era atendia às necessidade, mas para as novas lavouras não havia número suficiente de trabalhadores e sem mão de obra não era possível a expansão da cultura cafeeira. Neste cenário São Paulo tem a iniciativa pioneira de contratar trabalhadores livres, antes mesmo do processo abolicionista.

            Ainda conforme Prado Junior (1971), a primeira leva de trabalhadores assalariados eram imigrantes, boa parte deles suíços e alemães, que chegaram ao Brasil nos anos de 1840. A chegada de mão de obra livre num país que vinha de três séculos de escravidão não foi de fácil adaptação. Os imigrantes tinham que pagar por seu transporte e seus custos iniciais de manutenção e a forma de pagamento era o trabalho. Além disso não havia salário. Os imigrantes dividiam os resultados das lavouras com os fazendeiros, o que significa que num ano ruim os imigrantes não auferiam recursos adequados sequer para sua sobrevivência. As desconfianças de que os imigrantes trabalhavam em condições análogas ao trabalho escravo eram então frequentes.

            Por fim, Furtado (1980) observa que as novas tentativas de imigração que se intensificam algumas décadas depois, principalmente por italianos, já são feitas em outras condições, com o pagamento da passagem e custos iniciais e num sistema de colonato onde o trabalhador ganhava uma pequena porção de terra de onde tirava sua subsistência além de trabalhar nas terras dos Barões do Café de forma assalariada, num momento em que o trabalho escravo entrava em decadência e seguia um processo rumo a abolição. Os impactos destas transformações foram enormes na população de São Paulo.  Nestas novas condições a imigração se intensifica e logo a política migratória adotada passou a abastecer também os centros urbanos com os imigrantes ocupando o trabalho industrial e de serviços o que resultou na formação de um novo mercado consumidor.

 

Outros bens

            Conforme observado por Abraão (2016), os outros bens são pouco relevantes na composição de bens das famílias. São bens diversos e de pouca importância patrimonial.

            Abraão (2016) destaca no grupo Outros Bens que no período 1870-1890, os objetos concentram 52,5% do total, os equipamentos 9,1% e os animais 38,4%. No período 1895-1915, os objetos recuam para 45,1% do total, equipamentos elevam para 12,2% e animais para 42,7%. Já no período 1920-1940 é observada uma forte tendência de avanço dos equipamentos para 22,9% enquanto o grupo animais cai para 31,8% e objetos registram 45,3%.

            De acordo com a composição dos inventários nos anos finais do período analisado, podemos perceber que houve aumento relativo apenas do grupo Equipamentos. A partir da análise de Silva (1986), é podemos relacionar esta mudança a partir da mecanização de parte do processo produtivo do café, mais especificamente nos processos de beneficiamento do café como secagem e classificação conforme qualidade do café. Assim é possível entender que a atividade produtiva gerou uma grande demanda por novos equipamentos para manter o produto competitivo e rentável. Avanços em tecnologia, máquinas de torrar e separar grãos surgiram e estas acrescentavam até 30% ao preço final do produto comercializado. Assim o produtor do café passou a investir em equipamentos para sua produção que confirmam a ascensão específica deste item.

 

Conclusão

            As evidências históricas, os inventários de fazendas do café pesquisados por Abrahão datam entre 1870 e 1940, período em que é possível afirmar que o café foi o carro-chefe da economia brasileira, como descrito por Silva (1986), que afirma que este respondia pelo menos 40% do total das exportações do Brasil. O local de estudo, Campinas, é condizente com os impactos do café na economia brasileira, uma vez que a cidade foi em 1886 considerada a maior produtora de café da região de São Paulo. O estado de São Paulo por sua vez já produzia mais da metade do café exportado por volta de 1894, substituindo definitivamente o Rio de Janeiro no início do século XX como maior produtor e exportador do país Gremaud, Saes e Toneto Jr. (1997).

            As grandes transformações ocorridas no Brasil a partir da expansão do café, em particular na economia do Oeste Paulista podem ser observadas através da análise das informações contidas nos inventários de seus habitantes. A intensa urbanização a partir do final do século XIX, característico do desenvolvimento capitalista pelo qual passou o estado de São Paulo, é explicada pelo capital do café. Abundante, e contando financiamentos Ingleses desenvolveu a economia brasileira e pavimentou mudanças como, por exemplo, o surgimento de rodovias de ferro, máquinas e imobilizados para auxílio da produção e comércio do produto (Silva, 1986). São evidenciados tais mudanças nos inventários, percebidos aumentos em equipamentos e urbanização, notavelmente os imóveis urbanos. A importância econômica do café, uma vez fundada na escravidão e nas relações de poder com o Império segundo Faria (2005), agora dependia dos “comissários do café” e máquinas e capital estrangeiro, o que elevou a urbanização dos estados em quais se destacava. O café gestou em seus estados produtores, conforme conclui Furtado (1980), a urbanização de centros urbanos e o surgimento de uma indústria no Brasil.

            Período fundamental para explicar a fundação da conjuntura econômica brasileira, a análise dos inventários por Abrahão (1996), em consonância com registros históricos que determinam onde e quando o café teve sua influência, e os estudos de autores de histórica econômica, é evidente a imensa riqueza gerada no rastro da cultura do café. Foi um período de grandes transformações sociais em especial pelo fim da escravidão e pelo abundante fluxo imigratório que hoje são parte da cultura do país. O período analisado foi intenso em investimentos. Foram criadas ferrovias, indústrias, bancos e diversas outras atividades experimentaram expansões jamais ocorridas no Brasil até então.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

ABRAHÃO, Fernando Antônio. A composição da riqueza em Campistas, 1870-1940. Histórica Econômica & História de Empresas, São Paulo, HUCITEC/ABPHE, v.19 no 2 (2016), p. 295-317.

FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 17ªed. São Paulo: Editora Nacional, 1980.

GREMAUD, Amaury Patrick; SAES, Flavio A. M. de; TONETO JUNIOR, Rudinei. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Atlas, 1997.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação Do Brasil Contemporâneo: Colônia. 11ªed. São Paulo: Brasiliense, 1971.

SILVA, Sergio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. 7a ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1986

FARIA, Sheila de Castro. Os barões do Brasil. São Paulo: Atual Editora, 2005.