Eclesiologia: Sobre Crer em Deus e na Igreja (3)- O significado de Crer em Deus e crer na Igreja

A vida cristã, ou o cotidiano dos cristãos, está baseada na fé desenvolvida pela Igreja. Essa fé se desenvolveu a partir dos ensinamentos dos primeiros seguidores de Jesus e se perpetuou na vida da Igreja, ao longo dos séculos. Entretanto, a profissão da fé da Igreja não se resume a repetir orações decoradas, ajoelhar-se em adoração ao Senhor ou recitar os artigos do CREDO. Mesmo que seja o Símbolo Apostólico (nossa oração do “Creio”), que remonta às origens da Igreja. O ato de fé vai além dos doze artigos da fórmula que fundamenta a vida da Igreja Cristã e sintetiza os principais artigos de fé:

1- Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra. 2- E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor 3- Que foi concebido pelo poder do Espírito Santo e nasceu da Virgem Maria. 4- Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado. 5- Desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia. 6- Subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso, 7- De onde há de vir a julgar os vivos e os mortos. 8- Creio no Espírito Santo, 9- Na Santa Igreja Católica, na comunhão dos Santos, 10- Na remissão dos pecados, 11- Na ressurreição da carne, 12- Na vida eterna. Amém.”

Como se pode notar, essa oração é uma síntese da doutrina cristã. Mas o cristão sabe, entretanto, que uma coisa é professar oralmente a fé e outra coisa é a sua comprovação mediante as obras de salvação. A afirmação nos vem do apóstolo Tiago: “Mostra-me tua fé sem as obras e eu te mostrarei minha fé pelas minhas obras”, (Tg 2,18). Isso implica dizer que a fé vai além das orações, passa pelas ações e se instala no coração da sociedade. Aí ela se desenvolve na promoção da vida ou se extingue nas fórmulas prontas de oração.

Diante disso é que se impõe a indagação: O que leva o ser humano a crer em algo? Onde está a origem da fé? Filósofos e antropólogos muito têm ajudado na busca dessa resposta. E justamente a partir da filosofia nos chegam as mais diferentes respostas. Mas se analisarmos cada uma delas poderemos encontrar um pano de fundo comum: a fé é explicitação de uma certeza e se manifesta na forma de esperança, superando as incertezas dos medos.

 

O ato de crer

Isso, entretanto, não é tudo. De onde chegam os medos e incertezas? De vários diferentes fatores, entre eles a contingência humana de desconhecer o que vem depois; de se viver num mundo absurdo e do próprio sem sentido do existir.

Embora do ponto de vista filosófico seja impossível saber a origem de mundo, para a teologia a resposta já está dada. O mundo e os seres que nele existem, sabe-se a partir da fé, são criaturas divinas. Mas a indagação pelas origens é anterior à fé, uma vez que ela é a primeira explicação oferecida para aquilo que ainda não se compreende completamente ou para o quê não se tem explicação. Isso implica dizer que a fé se origina dos processos de superação das incertezas. Deriva das explicações apresentadas para tudo que circunda cada pessoa. Ou seja, e de forma bem simplificada: a explicação oferecida a qualquer situação ou novidade produz a primeira certeza, que é uma forma de crença. As pessoas têm fé naquilo em quê acreditam! Aliás, é esse o nível de fé sobre o qual cantava o poeta: “Fé na vida, fé no homem, fé no que virá. Nós podemos muito. Nós podemos mais”.

A partir dessa fé, quase inata, ou dessa capacidade de oferecer explicações, é que se constroem os sentidos para cada realidade. Uma moeda de um real ou o sentimento de amor à pátria, além de serem aquilo que são, em si mesmos, ganham representatividade a partir do valor a isso atribuído. Ou seja, as realidades não têm somente um sentido em si mesmas, mas recebem do ser humano um significado. O ser humano, portanto, cria e oferece o sentido para a existência de tudo que existe. Daquilo que existe a partir de alguma ação humana ou existe independentemente do homem. Para tudo isso o ser humano cria e oferece um sentido/valor. E esse sentido/valor mobiliza outras ações, outras interpretações e outras crenças… e outros interesses.

É, portanto, o ser humano quem diz o que é e o que significa cada realidade. E, pelo fato de acreditar naquilo diz a respeito das coisas, o ser humano se vê e se coloca como senhor delas. Ao explicar as realidades o ser humano se coloca num patamar superior ao fenômeno explicado. Por estar acima ou se sentir superior é que o homem consegue denominar e exercer o domínio, não por vanglória, mas por determinação divina, segundo a orientação recebida no livro do Gênesis. O senhor Deus, ao criar o ser humano, lhe entrega o domínio sobre a criação. A afirmação bíblica aparece exatamente com estas palavras: “Deus disse: ‘Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais selvagens e todos os animais que se movem pelo chão’ ”(Gn 1,26).

Todas as realidades, portanto, recebem um significado, uma denominação e passam a ser domínio humano. O que existe, inicialmente está no mundo para o ser humano, mas também porque o ser humano assim determinou ao lhe denominar/dominar. O ato de crer, portanto, é um processo pelo qual o ser humano se diz senhor do mundo. A criatura divina, apropria-se da criação, por mandato divino, e exerce seu poder sobre ela, também por ordem do criador. O ser humano é senhor, não por usurpação de poder ou porque pretende se exaltar, mas porque essa foi uma determinação divina.

Essa compreensão da crença e da relação criador/criatura e homem dominando a criação, entretanto, somente é possível a partir do pressuposto da fé. Mais ainda, depende de um ato de fé muito específico: situado historicamente.

 

Uma fé situada historicamente

Em que consiste essa situação histórica?

É claro que cada crença tem seu fundamento. O ponto de partida de outras crenças – umbanda, espiritismo, islamismo, hinduísmo… – podem ser outros. Mas aqui estamos falando a partir de um pinto de vista cristão e mais especificamente católico. E para o cristão a fé é um processo de adesão a um projeto de sociedade. Ou seja, a fé no Deus Trindade implica, não só em reconhecer aquilo que Jesus ensinou, mas também em ajudar no processo de execução de seu projeto expresso de forma lapidar no evangelho de João: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10).

O projeto de Jesus é, pois, a vida. E essa afirmação do projeto tem duas características: trata-se de um projeto universal: a vida é para “todos”; e um projeto que prima pela intensidade pois a vida distribuída a todos deve ser “abundante”. Ou seja, o projeto de Jesus não é somente a vida, mas a promoção da vida plena para todos.

E em que consiste essa plenitude/abundância de vida? Vai muito além do mero existir. Trata-se de existir com um propósito: completar a obra de Deus; aquela iniciada por Jesus, com o dom do Espírito Santo. Como se pode ler no evangelho de João, narrando a manifestação de Jesus ressuscitado. Aparecendo aos discípulos Jesus diz: “‘A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou também eu vos envio’. Então, soprou sobre eles e falou: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo 20,21-23).

E assumir essa missão inclui a consciência de estar colaborando com a obra do Senhor e disposto a enfrentar as adversidades da proposta libertadora, como o ensinou Paulo aos colossenses, dizendo que em seu sofrimento completa a obra do Senhor (Col 1,24): “Agora me alegro nos sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por seu corpo que é a Igreja.”

A edificação da vida plena para todos é a missão do cristão. E os cristãos que se decidem a cumprir essa missão formam a Igreja. A Igreja, comunidade dos que aderem ao projeto de Jesus, só tem razão de ser na medida em que se cumpre essa missão. Trata-se, portanto, de um processo simultâneo: a fé um Deus implica ser capaz de dar prosseguimento à missão de Jesus. E a comunidade que cumpre esse propósito é a Igreja. Daí que aquele que professa a fé em Deus (creio em Deus Pai todo poderoso), também professa a fé na Igreja (“creio na Santa Igreja Católica”). E só pode professar a fé “na Igreja” aquele que pretende, além de permanecer na comunidade dos crentes, também ser agente da abundância da vida para todos (crentes ou não crentes).

O ser humano, senhor do mundo, recebe de Deus a incumbência de completar a obra da criação, não só dominando o mundo, mas também completando aquilo que está por fazer. Por isso o ser humano foi criado por Deus como seu semelhante – semelhança que não tem nada a ver com aspecto físico, mas com a capacidade criadora.

Isso implica dizer que cabe ao ser humano ser capaz de continuar a obra criativa de Deus. E essa ação ocorre em várias frentes: produzindo/realizando aquilo que ainda falta no mundo ou facilitando o acesso aos benefícios que já existem. Pode ser ajudando a fazer com que todos tenham plenitude de saúde; criando melhores condições de existência e convivência; criando as condições para otimizar as relações entre as pessoas; disponibilizando moradia e alimento para todos; auxiliando no desenvolvimento intelectual de todos…

O que leva à conclusão de que enquanto uma só pessoa estiver sofrendo; uma só pessoa estiver passando fome; uma só pessoa não tiver acesso às excelências dos avanços da ciência… enquanto houver uma só pessoa em situação de exclusão social, econômica...; enquanto não houver respeito entre as pessoas; enquanto uns mantiverem situações de exploração de outras pessoas, o plano/projeto de Deus permanecerá traído pelos seres humanos, pois a vida não está sendo abundante! E se esses, e outros, benefícios não estiverem disponíveis a todos, a Igreja não terá cumprido sua missão e os membros dessa assembleia cristã ainda estarão em débito, pelo menos parcialmente, com a fé que professam.

E dá para se dizer mais, a respeito dessa profissão de fé em Deus e na Igreja. Permanecendo a situação em que alguns têm muito enquanto muitos têm pouco, o plano/projeto de Deus está sendo traído. E não se trata apenas de possuir, mas principalmente de usufruir. Aquele que possui muito e retem suas pesses de forma egoística e/ou procurando concentrar ainda mais, esse está impedindo a implantação do plano de Deus. O que alguns tem a mais do que o necessário para sua vida plena e digna é o que falta para a plenitude e dignidade da vida de muitos.

E qual o ponto de partida para a construção da sociedade plena na qual se possa dizer que a vida plena está ao alcance de todos? A inclusão dos excluídos: “quando fizestes a um destes pequeninos foi a mim que o fizestes.” (Mt 25,40). A Vida Plena proposta pelo Senhor começa com a inclusão dos excluídos, no processo histórico da Igreja e se concretiza na Parusia quando da manifestação definitiva do Reino prefigurado pela ação eclesial na medida que promove a vida plena.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO – [email protected]