Eclesiologia: Sobre Crer em Deus e na Igreja (2)- O significado de crer na Igreja

 

Qual é a origem das crenças que movem o ser humano? A sensação da incompletude. Ao se perceber limitado e sozinho diante das dificuldades e perigos, o ser humano tem duas opções: cair no desespero e se render ao medo ou buscar ajuda e transformar o medo em força propulsiva. Esse combustível que o pode impelir, desenvolve-se na medida em que se envolve com o grupo, e neste caso, com a Igreja.

 

O ser humano, a sociedade e as necessidades

O ser humano, diferentemente do que se vem afirmando há séculos, não é um ser essencialmente grupal. Pelo contrário, ele cria a sociedade a partir de suas necessidades. E faz isso justamente porque se percebe limitado, enquanto indivíduo. Percebe, além disso, que sozinho não consegue resolver todos os seus problemas. Então cria o grupo como mecanismo pelo qual recebe socorro diante de suas dificuldades, deficiências e medos. Cada indivíduo do grupo permanece ai, não por amor ao grupo, mas porque o grupo é o espaço em que os problemas individuais podem ser minimizados ou resolvidos. Não fosse isso entraria em desespero. E o desespero é a negação da fé, da esperança.

Na solidão o ser humano pode encontrar-se consigo mesmo. E quando se olha a partir de si mesmo, primeiro pode ver a maravilha da criação e, ao mesmo tempo, o abismo onde se sente mergulhado. E então, tende a subir. Em segundo lugar, também se percebe em situações de risco. E com o risco vem o medo e juntamente com ele manifesta-se o desespero. E o que é o desespero se não a falta de esperança?

Esse é o panorama que move o ser humano de seu isolamento para o grupo. Acontece que no grupo o indivíduo corre o risco de perder sua identidade. Se na solidão o ser humano pode se deparar consigo mesmo, no grupo ele se pergunta: quem sou eu para eles? E, em todas as situações sempre se deparará com a mesma resposta: um estranho. Cada indivíduo é estranho para o grupo com o qual está em contato. E assim todos os elementos do grupo são estranhos uns para os outros. E isso também é desesperador. Principalmente porque nenhum do grupo sabe responder indagação que todos carregam: quem são esses estranhos?

 

Grupo: convívio de estranhos

E, dessa forma, o grupo que nasceu para trazer segurança, acaba sendo um espaço assustador, pois o indivíduo está convivendo com estranhos (e tudo que é desconhecido leva à insegurança e ao medo). E, então, para não aumentar o desespero, os indivíduos do grupo tendem a interagir, trocando informações: e começam a se conhecer... mas nesse processo, vez por outra manifestam-se as divergências. Dessa forma o grupo de indivíduos oscila, constantemente, entre a interação e crescimento, de um lado, e o medo e o desespero do outro. A tentativa de equilíbrio é a vida em grupo.

E, quando o grupo está bem, os indivíduo que o compõem também se sentem melhor... nesse ambiente interativo pode-se entender a afirmação de Jesus: “onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome eu estarei no meio deles” (Mt 18,20). Pode-se dizer mais: a vida grupal é uma especie de reflexo da vida trinitária. Ou seja, cada pessoa divina interage com a outra (Pericorese) caracterizando a Santíssima Trindade. A interação das pessoas, além de ser um meio de superação dos medos e incertezas, é um reflexo dessa Trindade Santa, centro da fé cristã. Da mesma forma que ocorre na Trindade Divina, no grupo os indivíduos mantêm sua identidade, enquanto pessoas distintas umas das outras, mas se complementam umas às outras com as suas diferenças, de forma que o grupo passa a ser uma espécie de complemento das pessoas.

 

Os grupos e os conflitos de interesses

Um dos grandes problemas dos indivíduos e dos grupos é o conflito de interesses. Sabendo que cada indivíduo e cada grupo faz o que faz em busca de melhorias e como alternativa ao desconforto, aos medos, às angústias... pode-se imaginar que os interesses são comuns. Mas quando se observa o que ocorre com as pessoas e os grupos percebe-se que não é bem assim; que os interesses nem sempre se complementam. Pelo contrário, ocorrem conflitos entre os indivíduos, entre os indivíduos e os grupos e também entre os grupos, pois os interesses não são coincidentes.

Se o indivíduo procura o grupo para resolver problemas e se os problemas o atingem no grupo, por que continuar mantendo a vida grupal?

Sabemos que o ser humano valoriza e preserva sua individualidade. Mesmo no grupo ele só se sente bem quando é percebido como um indivíduo. Por isso a afirmação de que o grupo é formado por indivíduos.

Ocorre que na maioria das vezes a vida grupal é supervalorizada e isso oculta o indivíduo. Também é verdade que quando o grupo se forma, os seus integrantes tendem a criar mecanismos para a sua preservação e estas se sobrepõem ao indivíduo. E com isso os valores do grupo passam a se sobrepor aos valores dos indivíduos. Esse é o ponto de partida para o conflito de interesses. Daí a indagação: como superar os conflitos? Estabelecendo normas de convivência!

 

As normas o grupo

Um dos caminhos é criar normas para preservação do grupo, destacando que o grupo existe para os indivíduos. E os seres humanos criaram os mais diferentes códigos de leis com essa finalidade. Ao longo da história humana se fez uma enorme variedade de normas estabelecendo o “como” viver em sociedade. Mas isso não deu conta de superar ou acabar com os conflitos dentro da sociedade. O fato é que as normas humanas não deram conta de resolver os problemas e os conflitos humanos.

Mas não se pode falar a respeito dos grupos humanos apenas na ordem sociopolítica. Deve-se lembrar, também, de um outro grupo, com outra natureza: os grupos religiosos. Também esses com suas normas: o decálogo (Ex 20,1-15), por exemplo, tem essa finalidade, ou seja, são normas religiosas com a finalidade de melhorar a convivência humana. Séculos depois, outro exemplo: Jesus resumindo “a lei e os profetas” (Mt 22,34-40) em dois princípios: amar a Deus e ao próximo! Ambos são modelos de regras de convivência humana. E aqui entra a Igreja.

O ser humano não é essencialmente grupal, mas insere-se em grupos como meio de se defender e se preservar. É, portanto, movido pelo medo ou pelos seus interesses que busca a proteção do grupo; ele se sente completado pelo grupo, pois, na maioria das vezes, o processo de interação que ocorre no grupo produz a sensação de que no grupo os problemas são minimizados. Dessa forma o ser humano alimenta fé e a esperança de que o grupo lhe sirva de proteção. A Igreja, portanto, é um espaço no qual o ser humano procura e encontra essa proteção. Podemos dizer, portanto, que da mesma forma que a fé impulsona o ser humano em busca de realização e superação das dificuldades e limites, a vida eclesial é um espaço social (e neste caso religioso) por meio do qual as pessoas interagem e se apoiam, ao mesmo tempo que são impulsionadas pela ação divina.

As pessoas que comungam da mesma fé sentem-se protegidas pelo mesmo Deus. Islamitas, Judeus, Taoistas, Budistas e Cristãos..., cada um, em seu respectivo grupo religioso, forma um grupo de crentes que sabe, pela fé, que seus problemas serão resolvidos a partir das práticas religiosas ensinadas pela sua crença. As normas da fé, assim creem aqueles que se unem no mesmo grupo religioso, são as balizas norteadoras da vida em comum. Pertencer ao grupo e cumprir suas normas, executar seu ritual... são meios de, não só do indivíduo se sentir pertencendo ao grupo, como também de se sentir mais próximo de Deus. Um exemplo disso é o cristianismo, com sua ritualística e seus sacramentos. A execução de tudo isso unifica os indivíduos. A igreja cristã, portanto, ao mesmo tempo que unifica os indivíduos, os aproxima de Deus.

Essa comunhão de fé, por exemplo, fez com que as “multidões” seguissem Jesus (cf. Jo 6,2; Mt 12,15; 13,2) . O Homem de Nazaré era, para aquelas tantas pessoas que o seguiam, uma solução para seus problemas, um alívio para suas dores, um conforto contra seus medos, um suporte para suas fraquezas... O Filho do Carpinteiro era o ponto de encontro não, em primeiro lugar, para os ricos e nobres, mas para os desamparados. Estes foram os que primeiro creram naquele homem que dizia, fazia e ensinava coisas diferentes e novas. Por isso passou a ser merecedor da fé daqueles desamparados, desenganados, abandonados e marginalizados. E foi a partir desse extrato social que nasceu a Igreja de Jesus, o Cristo.

 

Jesus e o grupo de marginalizados

O fato de formarem, com Jesus, um grupo de marginalizados, conferia a esse grupo uma identidade, e os fez personagens centrais na proposta de uma nova sociedade. Formavam um grupo que não tinha nada a perder, pois tudo já haviam perdido; e passaram a seguir aquele que algo lhes podia oferecer, pois só ele tinha “palavras de vida eterna” (Jo 6,68). O poder romano e dos Judeus não os acolhia pois eram pobres; na religião de Roma e no judaísmo não havia lugar para eles pois nada podiam oferecer, a não ser, talvez, “duas pequenas moedas” (Mc 12, 41-44; Lc 21,1-4). e foi com eles que Jesus se identificou!

A oferta do pobre, para a sociedade do poder, não tem a menor importância, mas é essencial para a Igreja do coração de Jesus; por outro lado, a oferta do rico, o exalta entre os ricos, mas demonstra sua insignificância para a Igreja do coração de Jesus. Isso por um motivo simples, mas essencial: o que importa não é a oferta, mas a intenção de ofertar. A oferta do pobre nasce da solidadriedade; a oferta do rico reflete a ostentação. O primeiro oferta a partir da fé; o outro para ser visto.

Aqui, portanto, está uma dimensão essencial para o ato de crer: é necessário ser Igreja para crer na Igreja de Jesus. E ser Igreja implica em: estar engajado naquilo que a Igreja propõe; fazer parte da comunidade de fé, por opção de vida e não por que isso pode trazer confortador psicológico; ser agente de transformação das estruturas sociais que dificultam a implantação do Reino. Crer e ser igreja, portanto, exige que esse crente (e crer sempre será uma ação/postura individual) faça brilhar suas duas faces: uma face orante e outra atuante.

Por ser crente, o ser humano projeta suas esperanças. E tem, no grupo eclesial, uma das formas de projetar as esperanças numa mesma direção. E a comunhão na mesma crença lhe confere segurança. Por isso na profissão de fé, o cristão diz que “crê na igreja”, pois é necessário estar no grupo, pertencer ao grupo para projetar a fé na mesma direção. Crer na Igreja, portanto, é comungar a mesma fé, e esperar a mesma proteção dos céus, mas, ao mesmo tempo, agir para que as sementes do Reino germinem entre as pessoas...

 

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO – [email protected]