Eclesiologia: Sobre Crer em Deus e na Igreja (1)- O significado da fé

Todo ser humano tem, de alguma forma, alguma crença. Acredita em algo! O que nos leva a constatar que todo ser humano é crente. Pode até não ser crença religiosa, mas acredita em algo, é movido por alguma crença. Por vezes nem nos damos conta de que executamos alguma atividade movidos por nossas crenças, mas elas estão lá, nos impulsionando!

 

A crença é propulsiva

As pessoas podem acreditar numa divindade ou numa ideia; pode crer num projeto social ou na vida depois da morte; pode ser num partido político, num time de futebol, na força do pensamento positivo... ou nos santos. Num ou noutro caso, o ser humano é movido pelas suas crenças que podem ser religiosas ou sociais, humanas ou místicas.

Todas essas situações são crenças! E podemos ir um pouco mais adiante: sem as crenças o ser humano não avança, não se desenvolve. A crença é propulsiva; impele para o depois, para o que está além. Ela supera as incertezas e alimenta a esperança, ajudando a dar significado ao “sem sentido” da vida.

Então o que vem a ser a crença? Evidentemente tem a ver com o ato de crer. Mas a questão é exatamente essa: em que consiste o ato de crer?

O ato de crer está ligado ao ato de fé que pode ser entendido como uma postura pela qual a pessoa sai de uma situação de dúvida ou de incerteza para a superação, supressão ou eliminação dessa dúvida ou incerteza. Tomemos um exemplo bem corriqueiro. O agricultor prepara sua terra e semeia a semente. Nesse ato, quase espontâneo, estão embutidos várias crenças: ele acredita que a semente germinará; acredita que sua plantação dará frutos; acredita que esses frutos lhe serão satisfatórios: para saciar a fome ou para lhe render algum dinheiro. Todas essas e outras projeções são oriundas da crença de que a terra e a semente interagirão e apresentarão resultados que satisfarão essas e outras eventuais necessidades. Acreditando – tendo fé – o agricultor prepara a terra e semeia a semente. O agricultor é crente!

Essas e outras situações são tão corriqueiras, repetem-se com tanta constância que nem nos damos conta mais de que são ações derivadas de atos de fé. Por isso é que até o ato de fé religiosa, ou nossa profissão de fé, por vezes se torna mecânico. Esse processo e compreensão do processo da crença pode ser transposto para qualquer outra situação da vida ou da existência humana. Inclusive para a incerteza da vida.

 

Vida: percurso para o indefinido

A vida humana é um percurso para o indefinido, para o incompreensível... para um “depois” que não se sabe como nem quando será. E essa indefinição produz, no ser humano, além da dúvida uma profunda sensação de medo. Ou seja, diante do desconhecido, um dos mais profundos sentimentos do ser humano é o medo. Outra sensação é a constatação de que a vida, por si mesma, é algo sem sentido. A crença, a fé ou como queiramos denominar esse processo de projetar um certeza para o porvir incerto, ajuda a superar o medo e a produzir sentido para o que, em si mesmo não tem sentido.

Noutras palavras, a dúvida, a incerteza, o Mistério... geram a angústia do medo e por esse motivo, para não viver em angustiante dúvida, o ser humano busca respostas. Um dos caminhos para encontrar as respostas para o sentido da vida são as ciências. Todas as descobertas e invenções do ser humano ao longo de milhares de anos de vida na terra nasceram de alguma busca para algum problema, alguma carência; para superar alguma necessidade e todos os medos. Os avanços da ciência, portanto, nascem da incerteza, dos medos e da busca de segurança. E o ser humano acredita que os resultados de suas pesquisas lhe conferem alguma certeza, alguma segurança. O ser humano, portanto, tem fé nas possibilidades da ciência.

 

Outro caminho

Outro caminho para superar as dúvidas, as angústias e os medos é a religião. Por um lado e pela mediação das ciências o ser humano pode alcançar algumas certezas, as quais nascem das comprovações realizadas a partir de pesquisas. Por outro lado, a religião depende de fé. A dúvida da ciência produz pesquisa e a pesquisa apresenta uma solução para o problema levantado. E as pessoas acreditam, têm fé na “palavra” da ciência. Basta ver como as pessoas, por vezes apresentam seus argumentos a respeito de determinado assunto: “Isso já é provado pela ciência!”. E isso passa a ser merecedor crédito. Entretanto, no universo da religião não é assim. A religião também depende de outro tipo de crença. A crença da religião é a fé. No universo religioso, portanto, estamos em outro nível de fé.

Em que consiste a fé religiosa? Em crer naquilo que não é passível de comprovação. Aqui se crê, simplesmente. Aliás, a esse respeito é muito ilustrativa o diálogo de Jesus com Tomé. E principalmente a conclusão de Jesus: "Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram!" (Jo, 20,29). Crer naquilo que se vê não é o campo da religião, mas da ciência. O campo da religião é o campo do mistério.

O ato de fé leva o ser humano a crer no absurdo. E essa é a proposta – e exigência – do cristianismo: crer no absurdo. O cristianismo exige: crer num Deus que se encarna, e se faz humano; crer num Deus que se deixa matar, mesmo tendo como evitar; e o maior dos absurdos, crer num Deus que, depois de morto retorna à vida... e promete essa vida àquels que nele acreditarem. É, efetivamente, o campo do mistério!

Diante do mistério são possíveis apenas duas posições: acredita-se ou não. Não havendo crença, a discussão está encerrada e sobra espaço apenas para a ciência. Como a ciência não está no mesmo nível da fé, ela não tem critérios para discutir ou analisar o universo do mistério.

 

Experiência pessoal prática social

Por seu lado, aquele que acredita, ao se deparar com o mistério, curva-se e se rende a ele. É o ato de fé! O ato de fé dispensa as palavras. O crente se coloca diante do mistério e se cala, contemplando-o e o mistério o envolve. Aqui não há espaço para a razão, nem para a comprovação, mas tão somente para a fé. Neste ambiente o ser humano viajam ou se instala, sabendo, pela fé, que seu caminho é seguro.

No ambiente da fé não existem evidências. Por isso, neste nível, não falamos em experiências coletivas ou comunitárias. A experiência é pessoal. Também não se mede ou se pode comparar. Não se tem critérios a partir dos quais alguém possa dizer: “minha fé é maior que a tua”. Entretanto, atenção para o detalhe: a experiência de fé é pessoal, mas não isolada! Se a fé não se faz eclesial, corre risco de não ser cristã!

Além disso, cabe mais uma dose de atenção: justamente por ser uma experiência pessoal, intransferível, única... podem aparecer alguns problemas. Neste campo é que agem os aproveitadores. Como se trata de um sentimento de entrega pessoal e definitivo, podem aparecer os espertalhões para tirar proveito. Ao longo da história do cristianismo não são poucos os casos de posturas equivocadas ou dos espertalhões que induzem a práticas condenáveis.

 

A vida eclesial busca a justiça social

Como isso pode ocorrer? Pela indução a situações ou práticas questionáveis ou condenáveis. Quantos são os casos em que um dirigente de uma igreja exige vultosas ofertas em dinheiro, alegando que essa é vontade de Deus? Quantas são as situações em que a suntuosidade dos templos são importantes que as pessoas que alise encontram para a oração? Quantas são as situações em que a oferta passa a ser mais importante que o motivo que leva alguém a fazer a oferta? Entre inúmeras outras situações, no mínimo, duvidosas.

Não se pode negar que alguém pode aparecer a se propor a ajudar na “caminha da fé” com “diretor espiritual”. Na história da Igreja podemos fazer uma longa lista com os nomes de grandes diretores espirituais que ajudaram a mudar para melhor a face da Igreja. Portanto, na “caminha da fé” a ajuda do diretor espiritual é uma excelente companhia. Ele pode ajudar no sentido de esclarecer dúvidas; ajudar no engajamento social e eclesial; ajudar a pessoa a se voltar para o outro e para a sociedade.

Mas a questão é: existem lobos entre ovelhas. Pior ainda, existem lobos disfarçados de ovelhas (Mt 7,15). Todo grupo de oração ou direção espiritual que não encaminha o crente para a vida eclesial e prática em busca da justiça social... é diabólica. Deus é comunhão e inspira – mesmo nas experiências pessoais – a vida “para o outro”. Nesse sentido é imprescindível lembrar uma frase atribuída a madre Tereza de Calcutá: “As mãos que ajudam são mais sagradas que os lábios que rezam”. O pe. Zezinho, num de seus livros, dizia que “o crucifixo pendurado no pescoço, se não for vivido, é apenas um pedaço de metal no pescoço de um ateu”

A fé pode e deve ajudar a trilhar com mais coragem os caminhos da vida. Ela ajuda a superar os medos e impulsiona para as grandes realizações. Essa experiência pessoal somente se manifesta como divina quando se manifesta como um caminhar para a Igreja e uma abertura para os semelhantes. “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. Ele nos deu este mandamento: Quem ama a Deus, ame também seu irmão (1Jo, 4,20-21). O ato de fé, portanto, implica em vida comunitária e engajamento social.

 

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO – [email protected]