É Carnaval
Por Osorio de Vasconcellos | 06/03/2011 | CrônicasÉ carnaval
Às três horas da madrugada acordei e, ali mesmo, na horizontal, iniciei uma série de respiratórios profundos.
Lá fora o carnaval rompera a homogeneidade do tempo comum, abrindo o regime indiferenciado, pré-discursivo, necessário ao revigoramento periódico da fecundidade telúrica e à purificação das almas.
A noite doméstica, o silêncio, e todo o oxigênio absorvido testemunhavam que efetivamente a carnavalidade não me alcançara ali no meu espaço, o lugar perfeito, o único e exato centro onde, àquela hora, me tocava estar.
Testemunho, aliás, supérfluo, porquanto ninguém nem coisa alguma questionava o meu paradeiro. E assim teria seguido a existência, não fosse a incursão furtiva de um estribilho carnavalesco, tênue, mortiço, mas ameaçador da beatitude cósmica que me segregara.
O estribilho rememorava isto:
...Vou beijar-te agora,
Não me leve a mal,
Hoje é Carnaval...
O meu mandala não filtrou quase nada da emoção que inundou as minhas entranhas.
Mas o que é isto que me arrebata em meu próprio santuário? Na emergência socorreu-me o descortino da motivação ambígua exumada pelos versos.
Ambígua é pouco. Na verdade o psiquismo mobilizou-se em diversas frentes: na contemplação de momentos felizes, insepultos, de suaves perfumes e gentis silhuetas; na capacitação instantânea de sua irreversibilidade; na nostalgia da liberdade edênica e no resgate das delícias daquele
, que o estribilho evocava, e de outros carnavais.
Antemanhã, talvez cooptado por sonhos nascituros, adormeci.
Acordei com os sinos da capela. A esta nova incursão sonora o mandala radicalizou, bloqueando todas as passagens diurnas. Voltei então a dormir.
Sonhei. Os sonhos ainda estavam lá.