A noite a muito tinha chegado. Uma garoa fininha molhava meu corpo, fazendo com que eu tremesse de frio, mesmo estando abraçada ao meu companheiro. Uníamos nosso frio na esperança de nos aquecermos. Como se possível fosse.

Lá pelas tantas, um barulho ensurdecedor fez com que assustados, corrêssemos sem saber para que lado ir. Ouvimos risadas vindas de um carro, que em velocidade um tanto exagerada, contornava a praça onde estávamos. Bombas eram jogadas em nossa direção. Não sei se para nos assustar, ou para nos machucar. Difícil saber.

Tremíamos de frio e de medo, atingidos pela má educação, pela insensatez de seres humanos que não nos viam como tal. Fomos machucados moral e fisicamente, por indivíduos que se divertiam em nos menosprezar. Mas fazer o que, não é? A nossa casa era a rua, e a rua a todos pertence. Não tínhamos nem a quem reclamar. Nossas palavras eram jogadas ao vento, que as levava para bem longe, tão longe, que ninguém as ouvia.

Nossos poucos pertences foram chutados e depois queimados. Por quem? Talvez por alguém que tivesse muito mais do que nós, alguém a quem nada faltasse, a não ser amor ao próximo, e que não controlasse a impulsividade e a intolerância para com o diferente.

Quando tudo acabou, e o silêncio da madrugada voltou a reinar, nosso sono tinha ido embora, deixando em seu lugar um sentimento de inadequação ao mundo do qual fomos excluídos, do qual nos excluímos. Passamos a nos sentir não mais pertencentes ao mundo do outro. Tínhamos o nosso, embora fosse de vulnerabilidade e risco, sujeitos à violência urbana, era nosso mundo.

Nossa visibilidade incomodava a quem não entendia o nosso senso de liberdade sem conforto, o poder dormir a qualquer hora, em qualquer lugar, o ir e vir sem ter que dar explicação a ninguém.

Quantas vezes fomos tirados de onde estávamos, em nome da limpeza social, sem alternativa alguma, a não ser ir para lugar nenhum. A discriminação é muito grande.

Até casa que era minha, e que deixei um dia, nem mais sei aonde é. Penso que minha família não sabe de minha situação de vida nas ruas, pois a muito me livrei das amarras que me prendiam a ela, rompi nossos vínculos afetivos.

Às vezes sinto saudade de minha mãe, mas depois de tanto tempo, penso ser melhor não voltar para ela. Nenhum de nós é o mesmo, depois de tantas voltas da vida. Melhor que não saiba de mim, que tudo fique no passado, enquanto vivo a vida que tracei para mim.