É a vida...

 Durante muito tempo morei na rua com minha avó, minha mãe e minha irmã. Nunca me perguntei se estava certo ou errado, se era o melhor ou o pior modo de viver. Para mim estava tudo muito bom, tudo como tudo tinha que ser. Nada me faltava, e se faltava eu não percebia, pois me contentava com aquilo que tinha.

Vivíamos cada dia como ele se apresentava, sem nos interessarmos pelo amanhã, pois o que tiver que acontecer virá ao nosso encontro.

 Não me lembrava da vida antes da vida na rua. Vovó dizia que morávamos em uma casinha à beira de um rio. Mas as lembranças apareciam enevoadas, imprecisas...

À noite dormíamos em albergues. Tomávamos banho, ganhávamos roupas limpinhas e éramos alimentados antes que o sono chegasse. Podíamos até assistir televisão.

De manhãzinha, logo após o café, íamos novamente para a rua, o nosso lar.

O tempo passou, minha mãe conheceu alguém, e lá fomos nós morar em um cortiço. Ali as pessoas viviam segundo suas próprias leis. Tempo bom aquele. Tínhamos um quarto só para nós, para a família toda. Se chovia, colocávamos um balde para que as gotas de água não molhassem o chão. Vovó dizia que era para que os sonhos maus não perturbassem nosso sono. O barulho das gotas caindo no balde os espantava. E era verdade, eu só tinha sonhos bonitos.

Mas o que era bom, durou o tempo certo para que dele nos lembrássemos para sempre.

Mamãe foi embora. Prá onde não sei. O seu companheiro, depois de esperar uns dias para saber se ela voltaria, nos mandou de volta para a rua. Vocês não são nada meus, disse ele com cara de poucos amigos. Melhor que sumam da minha vida! E assim, voltamos para a vida na rua, enfrentando as mesmas dificuldades de sempre.

Depois de uns dias, vovó amanheceu com muita febre. Era tão frágil! Pessoas bondosas a levaram ao hospital, mas mesmo assim ela não voltou para nós. Foi morar no céu, em paz com o mundo. Foi o que nos disseram.

A vida tem um jeito muito estranho de separar as pessoas...

Minha irmã e eu ficamos sem saber o que fazer, até que alguém sugeriu que fôssemos para um abrigo. Não entendemos nada, mas fomos. Vovó sempre dizia que as pessoas podem ser muito bondosas umas com as outras, mesmo em um lugar só de estranhos. Velha sábia.

Mas como tudo é impossível até acontecer, mamãe apareceu para nos visitar. Ao final da tarde foi embora, deixando mais uma vez a saudade em seu lugar. O presente levou embora o passado.   

Mas o tempo foi passando, e a hora de enfrentarmos o mundo chegou.

Como eu fui a primeira a deixar o abrigo, e já sai de lá com emprego garantido, procurei um quartinho para morarmos, sentindo em mim o peso da responsabilidade pela minha irmã.

Prometi a mim mesma que jamais moraríamos na rua outra vez...

Até precisar novamente, quem sabe, não é?