É a vida... Quando meu marido foi embora, não consegui mais pagar o aluguel de onde morava, mas mesmo assim fui ficando... até ser despejada. Senti tanta vergonha... Minhas filhas e eu fomos morar na rua. Elas já estavam grandinhas, bonitas, chamavam a atenção. Tive medo. Ouvia tanta coisa... Não as deixava sozinhas nem um segundo. Revirei mundos e fundos, até conseguir coloca-las em uma Casa que cuidaria delas para mim. Mas antes disso, falei com muita gente para saber escolher o melhor para elas. Gosto de pensar que onde elas estão nada lhes falta. E a mim, o que faltará quando elas saírem da Casa? Sentirão vergonha de mim? Me aceitarão como eu sou? Aquela que por comodismo preferiu a rua? Melhor nem pensar. Melhor dar tempo ao tempo. Eu não deixo que em mim se instale o sentimento de “coitadice”. Vaguei pelas ruas sem destino, rumo a lugar nenhum, carregando nas costas a minha casa, até arrumar um lugar não muito longe de onde minhas meninas estavam. Precisei brigar por isso. Muitos não me queriam por perto. Mas eu os “peitei”. Fiquei. A indiferença e o desprezo são terríveis. A sociedade não nos enxerga. Fazer o quê, não é? Muitas pessoas passam por mim e nem me dão “ligança”, principalmente quando eu estou remexendo o lixo à procura de comida. A fome é cruel. Muitas vezes o lixo se transforma em fonte de alimento. Às vezes, no meio da noite aparecem pessoas que me acordam aos gritos, e o medo me faz correr e deixar tudo para trás. O pouco que é meu tudo. Depois volto devagar para resgatar o que é meu. Muitas vezes pouco encontro do que deixei. Numa noite de muito frio, de um frio cortante, me perguntaram se eu queria ir para um albergue. Só que eu poderia levar apenas uma malinha de mão. E o resto, perguntei. Apenas uma malinha de mão. Como se eu tivesse... Nem pensei muito. Recusei, pois afinal, eu estava perto de onde minhas filhas ficavam, dos amigos que quando podiam me ajudavam, do seu Zé da padaria, que de manhã me dava um café com leite quentinho... E se eu não conseguisse voltar? Não poderia vê-los mais? Melhor ficar. Eles insistiram, explicaram que a noite seria muito fria, eu poderia ficar doente, etc. e tal. Disseram que lá eu tomaria um banho quente, colocaria roupas limpas, tomaria uma sopa gostosa e iria deitar em uma cama limpa. Não passaria nem frio, nem fome. Mas eu fiquei irredutível. Não fui. Lá pelas tantas, passou entre nós uma garrafa de “cobertor” para espantar o frio e a solidão. Sem pensar muito, aceitei. Foi a primeira vez de tantas outras que viriam. Eu amo essa liberdade ao extremo! Muitas vezes penso que se eu sair dessa vida está bom. Se eu morrer amanhã, está bom também. Sou livre para pensar assim. Ou não?