DOUTORA MARIE RENNOTTE e a CRUZ VERMELHA BRASILEIRA (SÃO PAULO)
Dr.Wagner Paulon
2008

Educadora belgo-brasileira nascida em Wandre, um exemplo de competência, determinação e idealismo. Fez o curso de magistério em Paris, como atestam os diplomas do Cours Normaux, Societé pour l'Instrucion Élementaire (1874) e o Brevet de Capacité pour l'enseignment — Institutrice II ordre (1875) e imigrou para o Brasil três anos depois, chegando a São Paulo (1878).

Destacou-se entre as mulheres da sociedade paulista, por sua sólida formação profissional, por falar vários idiomas, fato raro e desejável na época, e, além disso, por defender o ideário feminista.

Foi contratada para lecionar no Colégio Piracicabano (1882), recém fundado por metodistas do sul dos Estados Unidos na cidade de Piracicaba (1881), associado a terceira Igreja Metodista no Brasil.

Passou a ministrar cursos nas áreas de ciências e a colaborar com a diretora, a estadunidense MissWatts, que mal falava português. Logo se tornou a porta-voz das diretrizes educacionais da nova escola, passando a apresentar e defender o conteúdo dos programas de ensino do Colégio Piracicabano, em artigos publicados na Gazeta de Piracicaba.

Com suas fortes convicções, enfrentou destemidamente o modelo catolicista de educação e questionando a eficiência dos sistemas de ensino das irmãs do Colégio d'Assumpção de Nossa Senhora, fundado por Madre Maria Theodora de Voiron (1883).

Com forte personalidade e vocação para a liderança, participou intensamente na luta pela emancipação das mulheres, contribuindo para explicar as causas e as conseqüências da desigualdade social, em consonância com as idéias feministas de Olympe de Gouges (1745-1793) e de Mary Wollstonecraft (1759-1797), na Europa, e de Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885) entre outras pioneiras do feminismo. Além de professora, conseguiu concluir um curso de medicina, obtendo o grau do Women's Medical College of Pennsylvania, Philadelphia (1892). Trabalhar como médica na Maternidade São Paulo (1894-1899), onde organizou a enfermaria das mulheres pobres.

Tornou-se a primeira mulher a fazer parte do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, ao ser eleita (1901), cargo que exerceu pelo resto da vida.

Entrou (1906) para a Clínica Cirúrgica da Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, colaborando com o eminente professor e médico Arnaldo Vieira de Carvalho.

Passou a fazer parte da diretoria da Cruz Vermelha (1912) onde idealizou a fundação de um hospital para crianças, inaugurado (1919), no bairro de Indianópolis, em São Paulo.

Faleceu em São Paulo e foi enterrada no Cemitério dos Protestantes, na Consolação.

Cabelos loiros, olhos cinzentos, nariz reto, boca mediana, queixo redondo, 160 centímetros de estatura: a descrição padronizada que constava do passaporte concedido a mademoiselle Marie Rennotte pelo consulado belga do Rio de Janeiro, em junho de 1885, pouco diferiria daquela registrada pelos documentos das muitas outras professorinhas européias que ainda aportavam na capital brasileira no final do Império à procura de trabalho depois de uma penosa viagem que implicava, na prática, a troca da dura realidade vigente em seu tumultuado e superpovoado Velho Mundo de origem pelos sonhos de auto-realização em uma jovem e promissora América.

O que distingue essa moça de tantas outras, no entanto, é o singular percurso de sua vida nesse processo de auto-realização. Ao contrário da imensa maioria de suas colegas imigrantes, cujos nomes caíram no esquecimento, Marie Rennotte deixaria marcas profundas na São Paulo da virada do século XIX para o XX: depois de atuar como revolucionária pedagoga no interior da então província paulista dos anos 1880, iria graduar-se em medicina, instalando-se na capital paulista a partir de 1895 como obstetra e ginecologista, tornando-se pioneira entre as mulheres no exercício local da profissão médica. Em uma época em que a incipiente saúde pública limitava-se à preocupação mais imediata com o saneamento urbano, e em que a prática da medicina raramente excedia o plano da intervenção personalista nas camadas mais privilegiadas da sociedade, ela perseguia objetivos mais essenciais, inspirados nos valores libertários que haviam regido sua atuação como pedagoga.

Em 1908 No dia 5 de dezembro é oficializada a fundação da Cruz Vermelha Brasileira, cujo quadro inaugural conta com Oswaldo Cruz (1872-1917) como seu presidente de honra e com Marie Rennotte como organizadora da regional paulista.

Em 1925 Comparecendo à cerimônia realizada em 26 de março na sede nacional da Cruz Vermelha Brasileira (Rio de Janeiro), durante a qual se inaugura um retrato de Ana Néri, Marie Rennotte encerra a solenidade discursando a respeito da vida e da obra da homenageada.

Em 1932 Já com oitenta anos completados em fevereiro, a doutora Rennotte não tem mais condições de atuar diretamente no atendimento aos paulistanos atingidos pelos conflitos que se seguiram à eclosão da revolução constitucionalista e que persistirão ao longo dos meses de julho, agosto e setembro de 1932. Quem assume papel semelhante àquele desempenhado pela médica belga na revolução de 1924 é a doutora Carlota Pereira de Queiroz, que se coloca à frente da seção paulista da Cruz Vermelha para organizar um grupo de setecentas voluntárias que receberão rápido treinamento especializado para o atendimento do grande número de feridos abrigados na capital do estado.

Em 1942 Marie Rennotte morre na madrugada ou na manhã do sábado dia 21 de novembro, e não na data até agora divulgada de 23 de novembro pelos registros do IHGSP. O corpo é velado na casa situada na rua João Moura, 427 (em Pinheiros, SP), nas proximidades do local onde estava sendo construído o moderno Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), inaugurado em 1944. O sepultamento ocorre na tarde do mesmo dia, no Cemitério dos Protestantes (da rua Sergipe, Consolação).

Estamos em plena Segunda Guerra Mundial. O Estado de S. Paulo publica o primeiro necrológio no dia seguinte, em meio a um noticiário que destaca os avanços das forças aliadas no front do Pacífico Sul, e que evidencia, no Brasil do Estado Novo, os fortes vínculos existentes entre Vargas e o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Em 24 de novembro, o mesmo diário paulistano publica matéria assinada por Mário Guastini com reminiscências pessoais. Em 30 de dezembro, uma reportagem do mesmo jornal é complementada pela transcrição do discurso com o qual Ana Maria de Revoredo homenageara a doutora Rennotte, em nome da Cruz Vermelha Brasileira, durante cerimônia realizada na capital paulista no início de dezembro.

Em 1925 inaugura-se o retrato de Ana Néri, patrona das enfermeiras na sede da Cruz Vermelha Brasileira, em cerimônia encerrada com um discurso da doutora Marie Rennotte.

O Estado de S. Paulo (São Paulo, 1942) Nos últimos quarenta dias de 1942, o jornal publicou uma seqüência de três elogios fúnebres. O primeiro deles, 'Dra. Maria Rennotte' (edição no 22.458, do domingo dia 22.11.1942, p. 3) não é assinado, praticamente se limitando a lembrar aos leitores quem tinha sido aquela idosa senhora falecida e sepultada na véspera. O segundo, de autoria de Mário Guastini, 'Uma grande benemérita' (edição no 22.459, da terça-feira dia 24.11.1942, p. 3) já se refere à sua atuação como médica e filantropa, chamando-a 'perdulária da bondade', pela generosidade que acabara reduzindo-a à penúria. A seqüência fecha-se com a transcrição, na edição no 22.489 (de 30.12.1942, p. 6), sob a epígrafe 'Cruz Vermelha Brasileira', de um discurso no qual Ana Maria de Revoredo recapitulava a biografia de Rennotte. Esta última matéria é acompanhada de um pequeno clichê reproduzindo aquela que deve ter sido a última fotografia da doutora.