Dona Mirtes

 Manhã de sol... Dia bonito. Saio à janela “pra ver a banda passar”. Os conhecidos param, conversam um pouco, contam “uns casos”, comentam a respeito da novela, do tempo e se vão...                       Lá pelas dez horas, vem ela de novo... Como todos os dias, à mesma hora...  Dona Mirtes, alma delicada, professora já a muito aposentada. Há tanto tempo, que também seus alunos já o são. Costas curvadas, passos curtos, andar lento... Cabelos ralos e branquinhos. A viver mais um dia de tantos já vividos. Vem pensando, recordando, falando baixinho de algo que marcou sua vida e que parece ter sido tão bom... Fala sempre as mesmas coisas... Sempre as mesmas... Vez por outra para de andar, sorri e recomeça a falar, continuando sua caminhada diária. Parece estar sempre alegre, absorta em sua imaginação, coexistindo com a solidão, não mais buscando respostas para as perguntas que tomaram o rumo da rua.  Talvez  pense no passado e reviva a alegria dos tempos idos e se faz feliz... Nada mais a afeta. Nada mais a limita. Amiga íntima de si mesma que é...                                                                                                                                                    Eu quero, diz ela. Eu quero... E de querer em querer, perde-se em seus devaneios.                                                                                                                                                              Ela nunca vem sozinha. Está sempre acompanhada de alguém, que não fez parte de sua vida, de seu passado, não conviveu com ela, que nunca a viu bonita, cheia de vida, de alegria, sempre pronta para o que desse e viesse, “pau pra toda obra.” Foram tantas as crianças que ensinou a ler, a escrever... Mas o tempo, o tempo passou. E ela vem indiferente a tudo e a todos, vem num mundo só seu, acompanhada por alguém que está ao seu lado e que vem pensando num mundo que não é o dela. Duas pessoas distintas, caminhando juntas, sem terem o que falar, sem terem nada em comum. Mundos diferentes. Tempos outros. Ensimesmadas de tal forma, que se uma olha para a outra, nada vê. Não há no outro nada de si. Uma, porque já está vivendo num mundo à parte, difícil de transpor. A outra, trabalhando, deixando em casa alguém que talvez precise dos cuidados que ela recebe para dar. A dessemelhança entre elas é evidente.

Ou não?