Discussão de Casos Clínicos – Adolescência e dinâmica familiar

 

Vanessa Ruffatto Gregoviski

 

Caso Cleverson

 

De autoria de Silvana Terezinha Baumkarten, trago o caso de um adolescente em conflito com a lei e sua dinâmica familiar, pensando em unir a formação que agora realizo com um tema que há muito tempo marca minha vida, sendo alvo de estágios acadêmicos e do meu trabalho de conclusão de curso.

O presente caso se encontra publicado na revista Pensando Famílias – Editora Domus, entitulado de “Olhar Sistêmico sobre um Caso de Adolescente em Conflito com a Lei”, e já traz uma análise sobre alguns pontos importantes da dinâmica familiar do menino, buscarei, então, trazer alguns apontamentos diferentes daqueles já abordados.

 

O que já se sabe?

Cleverson é um adolescente que entrou em conflito com a lei, cometeu o ato infracional de latrocínio. Maria (mãe) diz que ele começou “nessa vida” por causa de suas más companhias, mas o que é de comum acordo entre eles é que isto começou na época em que C. ia vigiar carros. O adolescente relata que naquela época conheceu “amigos” com quem utilizava drogas e roubava.

Um ponto muito interessante é que o mesmo relata que levava dinheiro para casa então acredita que a mãe sabia que ele cometia crimes. Ela diz que achava que era fruto do trabalho e somente recentemente descobriu que ele usava drogas porque começou a ficar agressivo em casa.

Maria relata que há dois anos o adolescente tem esses históricos de idas e vindas da delegacia, e ela sempre buscava ele, mas “foi mais complicado dessa vez porque ele matou um cara num assalto”, ainda não atribui ao filho a autoria do ato, acredita que foi um maior e ele o está acobertando.

Cleverson refere que este foi o primeiro assalto a mão armada que cometeu e disparou sem saber em que lugar a bala pegaria.

Ele teve oito passagens pela delegacia: 2 roubos, 3 furtos, 1 tentativa de furto, 1 desacato a autoridade, e o latrocínio. Ficou detido três meses por esta última, e depois passou a fazer parte do programa de liberdade assistida.

FAMÍLIA: Cleverson tem 18 anos. Maria é costureira, tem uma situação financeira precária e mora num barraco com seis filhos, Salete do primeiro casamento mora em uma cidade do Nordeste enquanto o resto da família reside no Distrito Federal. O pai de Cleverson (Darci) deixou Maria logo após o nascimento deste. O homem mora na mesma cidade, está em outro relacionamento e tem uma vida financeiramente confortável, porém Maria faz questão de não contar nada sobre ele para os filhos.

Maria morava no interior do nordeste, seu primeiro casamento foi com 15 anos. Ela se percebeu grávida logo após o marido ir ao centro-oeste na busca de um emprego melhor, a mãe dela não a deixou viajar e só quando Salete tinha seis meses que Maria foi em busca do marido, deixando a filha para trás a ordem dos pais. Quando chegou lá soube que o marido tinha se desiludido por ela não ter ido ao seu encontro quando ele pediu, e nunca mais teve notícia dele (eram casados apenas no religioso).

Não queria namorar no começo pois tinha a esperança de que o marido voltasse, mas conheceu seu segundo esposo. Conta que de iníco ele achava que ela era “moça”, mas quando soube que ela já havia sido casada e tinha uma filha, foram morar juntos e casaram após cinco meses no civil. Este registrou Salete em seu nome, ela o chama até hoje por pai, pois “foi uma verdadeiro pai para ela”.

Foram felizes no começo, mas com o passar do tempo e chegada dos filhos ele foi se tornando agressivo (agredia ela) e começou a se relacionar com outras mulheres, quando o filho mais novo tinha um ano ele pediu separação e ela aceitou por achar que o casamento não estava mais dando certo. Maria conta que após isso começou a sair mais sem se importar com os filhos, se arrumava e ia para bailes.

Conheceu Darci em um baile, e o relacionamento deles durou pouco, apesar de ter registrado os filhos em seu nome, casou-se com uma professora e não tiveram mais contato.

A quarta e última união não durou muito tempo também, ela atribui este fato ao racismo da família dele. Depois desse relacionamento diz que resolveu se “aquietar”, até pelo fato dos filhos terem mais idade e não ter dado certo com nenhum homem até então.

Maria parece ter sentimentos ambivalentes em relação a Darci, diz no começo que não tinha raiva dele por ele ter “largado” ela, mas posteriormente fala sobre ele com mágoas. Falou que o sonho do ex era ter um casal de filhos, ela não quis que ele frequentasse a casa dela após ele ter casado com outra mulher, não tendo nenhum contato com os filhos, apenas tendo registrado no cartório a pedido dela. Falou ainda que Cleverson e a irmã são os únicos “revoltados” quanto a situação de pai na família.

 

Refere Dona Maria que Cleverson é parecido com o pai, no que se refere às suas manias, a andar todo ajeitado e esnobe. Em outras ocasiões acha que ele não ‘puxou ao pai’ [sic], e ao dizer isso a Cleverson, este lhe responde: ‘Que pai? Eu não tenho pai’ [sic]. Kátia Chama o pai de ‘Seu Darci, nunca se refere a ele como pai [sic]’ (p. 127)

 

Cleverson afirma ter muita raiva do pai por ter colocado filhos no mundo e largado. Darci foi procurar Maria na última prisão de Cleverson, mas ela afirma que não quis nem conversa com ele. Mas ele procura Cleverson na delegacia, até levando produtos de higiene para o garoto, o que o deixa muito feliz.

 

Entendimento Sistêmico

 

Percebemos uma dinâmica familiar conturbada, acredito que temos diversos pontos que podem ser analisados. É possível notar que Cleverson vem como o membro que denuncia o sistema, pode-se considerar o adolescente o bode expiatório da família já que ele carrega consigo o sintoma que torna visível a dinâmica familiar e seus aspectos não saudáveis.

Como Baumkarten (2012) aponta,  a família é marcada por segredos, separações e uma figura de “mãe heroína”. Notamos que esses segredos afetam diretamente o comportamento de Cleverson.

Imber-Black (1994) colocam segredo como fenômenos sistêmicos que moldam relacionamentos (formando díades, triangulações, lealdades, etc.) O autor coloca ainda que a revelação de segredos pode ter um efeito curativo em certos indivíduos, ponto este que assumo como relacionado a dinâmica familiar em questão, penso que a não-revelação de quem é o genitor de Cleverson influenciou diversas de suas atitudes na busca da lei, trazendo efeitos nocivos ao seu comportamento (delinquência enquanto sintoma). Percebe-se que a falta de diálogo entre o adolescente e a mãe toma proporções assustadoras no momento em que ele afirma estar confiante de que a mãe sabia de seus crimes, mesmo que ele não dissesse, e ela nega tal hipótese; penso que o segredo da parentalidade criou esse diálogo pobre entre ambos, fazendo com que a comunicação ficasse como um processo secundário e precário. O autor fala ainda que um sintoma pode ser uma expressão simbólica das emoções e sentimentos ligadas a ele, a exemplo do furto/roubo me questiono bastante sobre tal ato de furtar/roubar algo de alguém quando a própria verdade é tirada deste rapaz.

As separações também são aspectos a serem levados em conta, como vimos nas semanas anteriores deste módulo, o recasamento é um ponto bem delicado na vida do ciclo familiar, tem-se todo o tempo de adaptação para assimilar as mudanças que estão acontecendo dentro de uma família e adaptar-se aos novos membros. Percebe-se que os casamentos de Maria não tem uma durabilidade tão grande, o que pode marcar os filhos da mesma, novos membros entram e saem com tal facilidade que até mesmo a vinculação possa ser algo difícil. A figura de um pai dentro desse sistema me parece inexistente, vaga; questiono-me, portanto, quem teria instaurado barreiras/diques nesses jovens? Caso alguém tenho o feito, quem instaurou a lei? Leva-me a pensar no sintoma de Cleverson como a busca pela lei e por um interdito.

Para compreender melhor Cleverson, precisa-se entender o sistema, afinal não se tornou quem é hoje de um dia para o outro e sem nenhuma influência da família/ambiente. Pensando nesse sentido acredito que levarmos em conta a história de Maria é essencial para um entendimento ampliado. O que consigo perceber é uma mulher com uma autoestima baixa, talvez a busca exagerada por relacionamentos esteja ligada a uma busca por fazer-se valer, na própria fala dela se notam tons depreciativos a sua pessoa, “mulher vulgar” é o termo que usa para quando ia se divertir em festas, e junto com isso vem uma culpa, a de não ter estado presente com os filhos em alguns momentos, a de ter deixado a filha morando com os avós para ir em busca de um marido que ela não foi ao encontro quando chamou, entre outros. Talvez esse sentimento exagerado de culpa é o que a leve a querer ser uma super mãe, suficiente na vida dos filhos, em que nenhum homem precisa entrar no sistema (compensação). Penso ainda que esse sentimento é o responsável pelo fato de que, apesar de estar em uma relação em que era traída e agredida, somente se separa quando quem pede o divórcio é o companheiro.

 

“Com sua adolescência, Cleverson reivindica mudanças no sistema familiar, com redefinição de fronteiras e modificação das regras. A homeostase familiar é ameaçada, e o segredo de filiação atacado. No entanto, seu comportamento infrator evita recolocar em causa a estrutura familiar, pois a mãe fica mais ‘heroína’ no seu papel de vítima, que sofre por seu filho” (p. 129)

 

A adolescência é uma fase única do ser humano, existe grande influência do grupo de pares e uma busca por existir fora da família (diferenciação). Nesse sentido as drogas entram na vida de Cleverson como uma busca por existir fora do meio familiar e enquadrar-se com os pares, pertencendo a um grupo. É possível também que elas tenham tido outro benefício para o adolescente, o de aliviar uma dor pela ausência paterna, chamando atenção para seu sofrimento (o mesmo se dá para a delinquência).

Baumkarten (2012) aponta como possibilidade de entendimento o fato de Cleverson ter tomado para si a vergonha da mãe, pois ela saiu do lugar de quem erra para vítima que busca resgatar seu filho de um mundo infracional. Concordo com a autora, pois vejo esse movimento de ambos como uma tentativa de manter uma certa dinâmica que já era existente, para lidar com o segredo, com a falta de diálogo, entre outros.

Penso na hipótese também de cair sob Cleverson uma punição pelos atos de seu pai, “você é parecido dele”, diz a mãe enquanto se nega a dar ao adolescente a informação que ele tanto quer saber: de quem sou parecido, quem é meu pai?. Parece-me que Maria descarrega a dor e raiva de Darci no próprio filho nesse momento por ele tê-los deixado logo após o nascimento dele. Destaco ainda que a mãe relata que somente Cleveson e a irmã são “revoltados”, porém somente estes que não tem ideia de sua origem, o que tem é somente uma ideia de um pai mau (que a mãe faz questão de transmitir, alienando os jovens contra um pai que não pode se defender ou mostrar seu ponto – a raiva que eles sentem é do pai que imaginam, do pai que abandonou, não necessariamente é do pai que tem já que não conhecem ele).

Mas é importante não tratar essa mãe como a culpada pela dinâmica familiar que está imposta, ela já tem em si diversas culpas. É importante compreender até mesmo esse aspecto, levando em conta o quanto ela precisou amadurecer deixando de lado sua infância/adolescência por estar grávida com 15 anos.

Finalizo minha reflexão com dados que levantei em meu Trabalho de Conclusão de Curso – “Quem você vai ser quando crescer? Adolescentes em Conflito com a Lei” – em que afirmo que o trabalho infantil no mercado não formal acaba sendo um agravante e ponto em comum entre os adolescentes que praticaram ato infracional, demonstrando vulnerabilidade social e crescimento precoce, fato este que esses jovens não conseguem lidar bem por não possuirem a maturidade necessária para lidar com dinheiro e outro encargos adultos.

Concluindo, é impossível compreender o sintoma de Cleverson sem ter um olhar amplo e diferenciado sobre toda a dinâmica que está presente nessa família, é importante levar em conta aspectos até mesmo de gerações passadas para entender o que se passa no momento atual, conseguindo aí ressignificar pontos chaves que permitirão um bem estar maior para os indivíduos desse sistema.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BAUMKARTEN, S. T. Olhar Sistêmico sobre um Caso de Adolescente em Conflito com a Lei. Pensando Famílias- Domus, v. 16, n. 2, p.117-135, dez. 2012. Disponível em: < http://www.domusterapia.com.br/site/files/440_REVISTA%20P%20FAM%C3%8DLIAS%2016%20n2%20Olhar%20Sist%C3%AAmico%20sobre%20um%20Caso%20de%20Adolescente%20em%20Conflito%20com%20a%20Lei.pdf>. Acesso em: 18 out. 2016.

 

IMBER-BLACK, Evan e colaboradores. Os segredos na família e na terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

 

GREGOVISKI, V. R.; BAUMKARTEN, S. T. “Quem você vai ser quando crescer?”- Adolescentes em Conflito com a Lei. 2016. 60 f. (Trabalho de Conclusão de Curso de Psicologia) Curso de Psicologia, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2016.