SINOPSE DO CASE: Das alegações do réu e das providência preliminares. 

 

Eduarda Lima Costa Oliveira²

Aléssio Milhomem Vasconcelos

Paulo Renato Mendes³

 

1 DESCRIÇÃO DO CASO

A empregada doméstica Joseane economizou durante anos para adquirir um veículo de 90 mil reais. Não alcançando este valor, financiou 40 mil reais e entregou o restante como entrada. Pouco tempo depois, após sérios problemas mecânicos apresentados, descobriu que o automóvel não era zero quilômetro o que a levou a ingressar ação judicial em desfavor da concessionária exigindo, dentre outros pedidos: a concessão de justiça gratuita, a condenação da ré em danos morais e desvalorização do bem, a rescisão contratual e devolução do valor pago corrigido e que a concessionária venha arcar com as parcelas advindas do financiamento com a CEF. A concessionária, por sua vez, contestou alegando inépcia da petição inicial, desconsideração do pedido de justiça gratuita e incompetência de juízo.

 

2 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASO

2.1 As alegações do réu devem ser acolhidas ou rejeitadas pelo juízo?

O litisconsórcio é a situação processual em que duas ou mais pessoas (litisconsortes) litigam em juízo, como demandantes (litisconsórcio ativo) ou demandados (litisconsórcio passivo).tem a sua razão de ser na exigência de economia processual. A coexistência de sujeitos que aí se verifica é absolutamente voluntária e, em regra, concerne a relações jurídicas litigiosas que demandam tutela declaratória ou condenatória de natureza ressarcitória.Contudo, como mencionado acima, em função de particularidades de cada caso, a existência do litisconsórcio poderá ser obrigatória ou facultativa. Além da particularidade no que se refere a obrigação do litisconsórcio, ele também pode ser dividido quando do momento de sua existência: inicial ou ulterior. Aqueles que não figuraram como parte não são atingidos pela eficácia da sentença e muito menos pela imutabilidade do comando da decisão.Vejamos a jurisprudência:

APELAÇÃO CÍVEL - COMPRA E VENDA DE VEÍCULO AUTOMOTOR E FINANCIAMENTO BANCÁRIO - CONTRATOS CORRELATOS - AUSÊNCIA DE ENTREGA DO BEM - RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE FINANCIAMENTO E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO ENVOLVENDO A REVENDEDORA DE VEÍCULOS - PRELIMINAR SUSCITADA DE OFÍCIO ACOLHIDA - SENTENÇA CASSADA. O litisconsórcio necessário, ativo ou passivo, é aquele sem cuja observância não será eficaz a sentença, seja por exigência da própria lei, seja pela natureza da relação jurídica litigiosa. O contrato de compra e venda do veículo e o contrato de financiamento estão atados por uma função econômica comum, já que é o segundo que proporciona os recursos necessários à efetivação do primeiro. É possível, dizer, portanto, que cada qual é a causa e razão de ser do outro e sem ele não se realizaria o negócio jurídico. Por essa razão, há litisconsórcio passivo necessário entre o vendedor e a instituição financeira mutuante, vez que, eventual decreto de resolução da compra e venda, necessariamente, repercute no financiamento, que não subsiste de forma isolada. A recíproca também é verdadeira. A inobservância do litisconsórcio passivo necessário, entretanto, não conduz, diretamente, à extinção do processo, por falta de pressuposto processual, cabendo ao julgador conceder ao requerente o prazo de dez dias para emendar a inicial, indicando a pessoa jurídica que lhe vendera o veículo, a fim de que possa compor, adequadamente, o polo passivo da demanda. Tal providência se impõe, em virtude do disposto nos arts. 47 e 284, do CPC. Preliminares de não conhecimento do recurso e de ilegitimidade passiva rejeitadas. Preliminar de nulidade parcial do processo, por inobservância de litisconsórcio passivo necessário, suscitada de ofício, acolhida. Sentença cassada.

(TJ-MG - AC: 10024102117116001 MG, Relator: Eduardo Mariné da Cunha, Data de Julgamento: 08/08/2013, Câmaras Cíveis / 17ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 20/08/2013)

Há situações, pelo contrário, em que é a lei, propter opportunitatem, que impõe o litisconsórcio, sobretudo para preservar a harmonia de julgados e por isso resta “vedada” a legitimidade de um só sujeito para, isoladamente, demandar ou ser demandado. E existem ainda hipóteses nas quais, pela natureza da relação jurídica debatida, que geralmente reclama tutela constitutiva, é exigida a participação de mais de um réu ou mais de um autor no processo, ou seja, de todos que são titulares de um mesmo direito subjetivo ou ligados por um único vínculo jurídico, sendo a obrigatoriedade do litisconsórcio definida, não pelo direito processual, mas pelo direito material controvertido (secundum tenorem rationis) (TUCCI, 2017). Nesses casos, sobrepondo-se à autonomia da vontade dos litigantes, o litisconsórcio desponta necessário (artigo 114 do Código de Processo Civil). O professor e o advogado da USP afirma:

No entanto, se apenas no momento da sentença vem detectado o vício, nada impede que o julgamento seja de improcedência, superando-se, assim, a falta de condição de admissibilidade da ação e a nulidade daí originada, até porque o resultado do processo favorece o terceiro cuja presença era obrigatória. A ausência deste do processo me parece irrelevante, visto que alcançado o resultado pretendido pela parte que foi demandada isoladamente.

Aduz que, o art. 109 da Constituição Federal versa “Aos juízes federais compete processar e julgar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho”. A Caixa Econômica Federativa por se tratar de uma autarquia deve ser julgada em juizo federal.

Diante disto, as alegações do réu deverão ser acolhidas pelo juízo.

O Autor poderá alegar em sua réplica, a luz do diploma processual de 1973, era autorizada ao litisconsorte necessário não citado, a qualquer tempo durante o processamento do feito, a arguição do vício por meio de petição simples, podendo, ainda, interpor recurso com tal finalidade, o qual independeria da aquiescência dos demais litisconsortes. O atual Código de Processo Civil, Lei nº 13.105/15, a priori, não apresenta mudanças significativas no que tange ao litisconsórcio. Todavia, a leitura a partir de um olhar atento é capaz de notar uma alteração relevante quanto às consequências da ausência da citação daquele que deveria integrar a lide como litisconsorte necessário.

Conforme bem asseverado por Alexandre Freitas Câmara, apesar do nome usualmente empregado, a querela nullitatis deve ser compreendida como demanda de declaração de ineficácia da sentença, pois as sentenças por ela impugnáveis existem e possuem vícios insuscetíveis de convalidação pela força sanatória geral da coisa julgada, os quais, inegavelmente, impedem que as mesmas produzam efeitos. Sobre o tema, confira-se a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça:

“PROCESSUAL CIVIL. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DE LITISCONSORTE PASSIVO NECESSÁRIO. HABILITAÇÃO DOS HERDEIROS NECESSÁRIOS. REJEIÇÃO. CITAÇÃO DOS LITISCONSORTES. AUSÊNCIA. HIPÓTESE DE QUERELLA NULITATIS.ARGÜIÇÃO POR SIMPLES PETIÇÃO. POSSIBILIDADE.

1. As hipóteses excepcionais de desconstituição de acórdão transitado em julgado por meio da ação rescisória estão arroladas de forma taxativa no art. 485 do Código de Processo civil. Pelo caput do referido dispositivo legal, evidencia-se que esta ação possui natureza constitutiva negativa, que produz sentença desconstitutiva, quando julgada procedente. Tal ação tem como pressupostos (i) a existência de decisão de mérito com trânsito em julgado; (ii) enquadramento nas hipóteses taxativamente previstas; e (iii) o exercício antes do decurso do prazo decadencial de dois anos (CPC, art. 495).

2. O art. 485 em comento não cogita, expressamente, da admissão da ação rescisória para declaração de nulidade por ausência de citação, pois não há que se falar em coisa julgada na sentença proferida em processo em que não se formou a relação jurídica apta ao seu desenvolvimento. É que nessa hipótese estamos diante de uma sentença juridicamente inexistente, que nunca adquire a autoridade da coisa julgada. Falta-lhe, portanto, elemento essencial ao cabimento da rescisória, qual seja, a decisão de mérito acobertada pelo manto da coisa julgada. Dessa forma, as sentenças tidas como nulas de pleno direito e ainda as consideradas inexistentes, a exemplo do que ocorre quando proferidas sem assinatura ou sem dispositivo, ou ainda quando prolatadas em processo em que ausente citação válida ou quando o litisconsorte necessário não integrou o polo passivo, não se enquadram nas hipóteses de admissão da ação rescisória, face a inexistência jurídica da própria sentença porque inquinada de vício insanável.

3. Apreciando questão análoga, atinente ao cabimento ou não de ação rescisória por violação literal a dispositivo de lei no caso de ausência de citação válida, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça já se posicionaram no sentido de que o vício apontado como ensejador da rescisória é, em verdade, autorizador da querela nullitatis insanabilis. Precedentes: do STF – RE 96.374/GO, rel. Ministro Moreira Alves, DJ de 30.8.83; do STJ – REsp n. 62.853/GO, Quarta Turma, rel. Min. Fernando Gonçalves, unânime, DJU de 01.08.2005; AR .771/PA, Segunda Seção, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior DJ 26/02/2007.

4. No caso específico dos autos, em que a ação tramitou sem que houvesse citação válida do litisconsórcio passivo necessário, não se formou a relação processual em ângulo. Há, assim, vício que atinge a eficácia do processo em relação ao réu e a validade dos atos processuais subsequentes, por afrontar o princípio do contraditório. Em virtude disto, aquela decisão que transitou em julgado não atinge aquele réu que não integrou o polo passivo da ação. Por tal razão, a nulidade por falta de citação poderá ser suscitada por meio de ação declaratória de inexistência por falta de citação, denominada querela nullitatis, ou, ainda, por simples petição nos autos, como no caso dos autos.

5. Recurso especial provido.”

Assim, apesar de proferida sem a efetiva garantia do contraditório e da ampla defesa, a sentença lavrada em processo do qual não foi devidamente cientificado aquele que deveria ocupar a posição de litisconsorte necessário será acobertada pela eficácia preclusiva da coisa julgada, a qual atingirá seu grau máximo após o decurso do prazo de ajuizamento da ação rescisória.

Desse modo, transcorrido o prazo de dois anos, aquele que deveria ter atuado como litisconsorte necessário unitário será obrigado a se submeter à imutabilidade da sentença proferida ao arrepio das garantias constitucionais. À evidência, a norma em questão sobrepõe o valor da segurança jurídica ao contraditório e à ampla defesa, assegurando a eternização de injustiças.

Sob esse prisma, indo de encontro à doutrina processualista moderna, a aludida disposição normativa consagra uma postura puramente dogmática do processo, na medida em que olvida as garantias inerentes ao devido processo legal, imprescindíveis à legitimidade da tutela jurisdicional, constituindo uma verdadeira arbitrariedade positivada.

2.2 Argumentos para que as alegações do réu sejam rejeitadas

As alegações do réu não merecem prosperar pelos argumentos de fato e de direito a seguir:

Ao questionar a gratuidade da justiça, a parte ré busca negar a condição social e a hipossuficiência econômica da autora visto que como empregada doméstica, apresenta rendimentos de pouca monta e apenas buscou a realização de um sonho através de muito esforço e economias. De toda forma, a Constituição Federal elenca este direito em seu artigo 5º, inciso LXXIV, bem como o Código de Processo Civil em seu artigo 98, ao garantir que “a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.”

Outro argumento duplamente falho da contestação é o que quer suscitar o litisconsórcio necessário com a Caixa Econômica federal o que acarretaria na incompetência do Juízo. Porém, faz-se necessário esclarecer que a Caixa Econômica Federal não figura como polo passivo ou ativo desta demanda, contrariando o disposto nos artigos 113 e 114 do CPC/15:

Art. 113. Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando: 

I - entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide;

II - entre as causas houver conexão pelo pedido ou pela causa de pedir;

III - ocorrer afinidade de questões por ponto comum de fato ou de direito.

Art. 114. O litisconsórcio será necessário por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes.

 

A CEF atua meramente como instituição financiadora da autora e contra a qual não se pretende alcançar nenhum direito violado. As alegações da parte ré buscam tumultuar o processo e posterga-lo. 

Logo, se não há a presença da Caixa Econômica Federal figurando como um dos pólos da relação jurídica, também não há a incompetência do juízo que poderia ser suportada, se verídico fosse, com base no artigo 109, I, da Constituição Federal, configurando a Justiça Estadual como o juízo adequado e competente para a resolução da lide.

Assim, cabe ao Juízo proceder como consta no artigo 64 do CPC/15, em seu parágrafo 2º:

Art. 64. A incompetência, absoluta ou relativa, será alegada como questão preliminar de contestação. (...) § 2º Após manifestação da parte contrária, o juiz decidirá imediatamente a alegação de incompetência.

Julgando assim, improcedente a alegação da parte ré quanto a competência do juízo.

 

2.3 Argumentos jurídicos para Réplica da autora

Diante dos argumentos apresentados pela parte ré em Contestação demonstrando fatos impeditivos, modificativos ou extintivos de direito da autora, os quais configuram as defesas preliminares ao questionar a existência de irregularidades ou vícios processuais elencados no art. 337 , CPC/15 caberá ao juiz proceder à réplica do autor no prazo de 15 dias tal como previsto no artigo 350 do mesmo código. 

Dessa forma, frente a contestação que apontou inépcia da petição inicial em virtude de pedidos incompatíveis, incompetência absoluta do juízo e a indevida concessão do benefício de gratuidade da justiça, a autora passará a réplica podendo afirmar que:

O litisconsórcio necessário não está configurado vez que a Caixa Econômica Federal não atua como parte nesta relação processual e, consequentemente, não coaduna com o dispositivo do art. 109, I, da CF/88, e não torna a Justiça Estadual incompetente para a jurisdição da causa. 

Quanto a concessão do benefício da gratuidade de justiça, a autora ressalta que seu ofício é de empregada doméstica e seus rendimentos comprovados lhe asseguram a isenção do ônus causado pelas custas processuais defendido pelo artigo 98 do CPC/15.

Por fim, a petição inicial não deve ser considerada como inepta pois diante de tal alegação, havendo eventualmente o juízo aceito esta afirmação, a autora solicitará que considere os pedidos como alternativos de modo que a pretensão jurídica poderá ser alcançada tanto com a rescisão do contrato de compra e venda do veículo com a devolução integral dos valores pagos, quanto a condenação da ré ao pagamento de indenização por danos morais e pela desvalorização do bem, medida esta que estaria em concordância com o art. 325 do CPC/15.    

 

REFERÊNCIAS

 

AZEVEDO, Luiz Carlos apud MACEDO, Alexander dos Santos. Da querella nullitatis: sua subsistência no Direito brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 46.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: influência do direito material sobre o processo. 6ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 44.

BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em:  

BRASIL. Constituição da república federativa do brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL.Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº1105944/SC, Relator: Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 14/12/2010. Disponível em:  

CÂMARA, Alexandre Freitas. Ação rescisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 281-282.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 224.

MACEDO, Alexander dos Santos. Da querela nullitatis: sua subsistência no direito brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 57.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. La definizione di cosa giudicata sostanziale nel codice di procedura civile brasiliano. In Temas de direito processual (nona série). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 214.

TJ-MG - AC: 10024102117116001 MG, Relator: Eduardo Mariné da Cunha, Data de Julgamento: 08/08/2013, Câmaras Cíveis / 17ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 20/08/2013. Disponivel em: https://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/116323116/apelacao-civel-ac-10024102117116001-mg?ref=serp