A existência da Propriedade

Sabe-se que os recursos naturais são escassos e que, por conta disso, sobrevém a impossibilidade fática de sua utilização por todos os habitantes do planeta da mesma forma e ao mesmo tempo. É simplesmente impossível que todas as pessoas do mundo consigam, ao mesmo tempo, utilizar um mesmo bem escasso da mesma forma que poderiam utilizar se o fizessem com exclusividade. Frise-se que, ainda que várias pessoas usem simultaneamente determinado bem, sendo ele escasso, o uso conjunto implicará em uma perda de utilidade relativa para todas quando comparada ao seu uso exclusivo. Ou seja: se a pessoa A e a pessoa B usam, simultaneamente, o mesmo espaço físico X (bem escasso), é certo que tanto A quanto B não possuem o espaço por completo, não podendo utilizá-lo na plenitude. Neste caso, a pessoa B limita as possibilidades de uso que A teria caso possuísse o direito exclusivo sobre aquele espaço X – e o inverso é verdadeiro.

Diante disso, faz-se indispensável a determinação de direitos de propriedade aptos a determinar quem poderá utilizar determinado bem escasso em determinado momento, visto que, do contrário, haveria um eterno, insanável e destruidor conflito de usos. Voltando à hipótese construída, se A e B precisassem do espaço X por inteiro para desenvolver suas atividades, poderiam escolher entre duas opções: ou ambos desistiriam da atividade (destruição de valor), ou determinariam quem teria o direito a utilizar o bem (admissão lógica do direito de propriedade).

Vê-se, pois, que os direitos de propriedade são elaborações decorrentes da escassez dos recursos, surgindo de forma espontânea na medida em que se faz necessário coordenar o uso destes. Assim, os direitos de propriedade têm a função de solucionar conflitos ocasionados pelo número limitado de bens por meio da atribuição do direito de propriedade exclusiva. Percebe-se, também, por dedução, que a necessidade de definir direitos de propriedade aumenta na medida em que a escassez do bem em questão é maior.

            Se todos os bens fossem superabundantes ou gratuitos, não haveria possibilidade de ocorrer disputa ou conflito, nem a necessidade de existir direito de propriedade. Sem o direito de propriedade, não faria sentido haver contrato; nenhum indivíduo seria dono de nada (por falta de necessidade), e a ideia de permitir, dar ou vender as coisas também não encontraria justificativa prática ou lógica.

            Nas palavras de Hann-Hermann Hoppe, a propriedade é “um conceito normativo, concebido para tornar possível uma interação livre de conflitos pela estipulação de regras de conduta (normas) mútuas e vinculativas em relação aos recursos escassos”.

A Propriedade e o corpo

            O reconhecimento da escassez enquanto elemento responsável pela procura espontânea dos direitos de propriedade não está afeto apenas aos bens móveis ou imóveis usualmente comerciáveis. Dentro do conceito de propriedade incentivado pela escassez é possível inserir a propriedade que todos têm sobre o corpo físico.

De fato, o corpo físico das pessoas é um bem extremamente escasso, de modo que, ainda que a Terra fosse um planeta superabundante em todos os recursos, os diretos de propriedade ainda seriam necessariamente considerados em relação à escassez corporal de cada indivíduo.

            Negar a existência da propriedade ou dizê-la inútil implica dizer que as pessoas não são donas sequer do próprio corpo e que, por tanto, todas as outras poderiam utilizar os corpos alheios da forma que quisessem.

Ocorre que isto, segundo Hans-Hermann Hoppe, além de eticamente absurdo, é logicamente impossível, uma vez que, para utilizar o corpo de outro, são necessárias algumas diligências como a fala ou a ação dirigida a esse fim.

Como, então, um sujeito agiria para dominar o corpo de outrem se não possui sequer a propriedade de seu corpo e, portanto, não pode utilizá-lo da forma que desejar? Precisaria o indivíduo, antes de realizar qualquer ato, da autorização de toda a humanidade; ao mesmo tempo, a humanidade se veria incapaz de autorizar qualquer coisa, visto que o faria igualmente por meio de um corpo o qual também não possui.

            Hans-Hermann Hoppe, em seu brilhante livro Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo, arrebata:

Na realidade, enquanto uma pessoa age, ou seja, enquanto uma pessoa tenta intencionalmente alterar um estado de coisas que é subjetivamente percebido e avaliado como menos satisfatório para um estado que parece mais recompensador, essa ação envolve necessariamente uma escolha relativa ao uso do corpo desse indivíduo. E escolher, preferindo uma coisa ou estado a outro, significa, evidentemente, que nem tudo, que nem todos os prazeres e satisfações possíveis, podem ser desfrutados ao mesmo tempo, mas que algo considerado menos valioso deve ser preterido com a finalidade de obter alguma outra coisa considerada mais valiosa. Assim, escolher sempre resulta em custos: renunciar possíveis prazeres porque os meios necessários para obtê-los são escassos e estão ligados a algum uso alternativo que promete retornos muito mais valiosos do que as oportunidades perdidas. Até no Jardim do Éden eu não poderia, simultaneamente, comer uma maçã, fumar um cigarro, tomar uma bebida, subir numa árvore, ler um livro, construir uma casa, brincar com meu gato, dirigir um carro etc. Eu teria que fazer escolhas e só poderia realizar essas ações em sequência. E seria assim porque só há um corpo que eu posso utilizar para realizá-las e para desfrutar a satisfação advinda de cada uma dessas realizações. (HOPPE, Hans-Hermann; Uma teoria do Capitalismo e do Socialismo; 1989; Editora IMB p. 38)

Além disso, o tempo também é um recurso escasso. As escolhas que um indivíduo eventualmente faça demandarão um tempo para a serem realizadas e, consequentemente, o não emprego deste mesmo tempo em outras coisas e atividades. Deste modo, ainda que se vivesse em um ambiente de superabundância e sem tentativas de domínio corporais entre as pessoas, os conceitos de propriedade ainda seriam necessários para coordenar as ações dos indivíduos que, eventualmente, se sobrepuserem no diante da escassez temporal.

Em tempo, cumpre destacar que é comum a confusão quanto ao conceito de bens escassos associados ao corpo físico de alguém. Costuma-se discordar desse ponto de vista por achar que a escassez está ligada apenas às relações de consumo mercatórias e que, por tanto, não sendo o corpo um objeto como um saco de açúcar ou uma lata de doce, não poderia ser analisando com os parâmetros da escassez e da propriedade.

O que deve ser compreendido é que a escassez e a propriedade são conceitos pré-existentes às relações de mercado. Apenas se pode trocar, doar, vender, alugar e, enfim, usar qualquer bem quando se possui o controle exclusivo sobre ele. Frise-se: trocar, doar, vender ou alugar são nada mais que modalidades de uso escolhidas pelo proprietário. Se um sujeito deseja usar determinado bem escasso para observa-lo (em vez de vende-lo), não há nada que justifique o enfraquecimento de seu direito de propriedade adquirido legitimamente.

No caso do corpo físico, embora este não seja uma lata de doce, certamente seu proprietário o usa de alguma forma. E esse uso deve ser exclusivo, visto que seu corpo é escasso, não podendo ser utilizado da mesma forma por todas as pessoas do mundo, nem para todas as atividades existentes. A escassez, pois, é apenas um critério lógico, prático e físico, facilmente comprovável empiricamente ou racionalmente, que não precisa estar diretamente ligado a relações mercatórias de compra e venda.