DIREITO COM DIREITOS

a busca pelos direitos fundamentais do homem na história do constitucionalismo no Brasil

 

Alessandra de Jesus Diniz Lemos[1]

 

RESUMO

 

O artigo realiza um estudo sobre a busca e efetivação dos direitos fundamentais do homem ao longo do movimento constitucional brasileiro, levando em consideração não somente aspectos específicos da história do Brasil, mas também, e como não poderia deixar de ser, aspectos de nível mundial que influenciaram na composição de um cenário histórico constitucional brasileiro, de onde é possível se verificar um Direito (posto) com direitos (fundamentais). Em suma, são identificados os diversos momentos históricos que servem de pano de fundo para o cenário de criação das diversas constituições brasileiras.

PALAVRAS-CHAVE

Direitos. Direitos fundamentais do homem. Constitucionalismo. História.

 

 

Toda ação que por si mesma ou por sua máxima permite que a liberdade de cada indivíduo possa coexistir com a liberdade de todos os demais de acordo com uma lei universal é direito.

Kant

 

 

1 INTRODUÇÃO

Direito... liberdade... igualdade... dignidade humana... direitos humanos... direitos fundamentais... Direito com direitos. Eis a essência da vida em sociedade. O que imaginar de uma sociedade sem Direito? E o que dizer, então, de um Direito sem uma sociedade? De certo que destas indagações decorre um mesmo pensamento, a impossibilidade de concretização desses pressupostos.  Seguindo esta mesma linha de raciocínio, é possível deduzir que se uma sociedade é formadas por homens, o Direito que organiza e que é fundamento desta sociedade também deve ter em sua essência, não uma norma qualquer[2], mas direitos que garantam ao homem sua condição humana e seu convívio social.

É, portanto, dentro deste contexto que, por meio de um estudo histórico de como foram sendo consumadas as diversas constituições brasileiras, e, por conseguinte, de como o Direito foi sendo positivado, pretende-se identificar que fatores (internos e externos)  contribuíram para inserção de direitos fundamentais nas Constituições brasileiras, bem como em que medida estes direitos foram de fato efetivados.

É previsível imaginar que a abordagem de um tema como este, tão abrangente e extenso, carece de amplo espaço, indisponível no momento, motivo pelo qual necessário se faz restringir-se a exposição da pesquisa, enfatizando-se alguns aspectos e deixando outros, não menos importantes, em segundo plano.[3]

Neste sentido, desejar-se-á por meio deste artigo, em um primeiro momento, apresentar um panorama dos direitos humanos no contexto mundial, ressaltando os acontecimentos históricos e os principais movimentos que levaram à inserção de tais direitos nas constituições dos diversos países e que acabaram por influenciar no desenho traçado pelo constitucionalismo brasileiro. A assimilação de tais direitos pelas constituições do Brasil e de como estas foram implementadas ao longo do tempo são focos do segundo capítulo. Uma vez traçado o cenário histórico mundial e brasileiro, do qual emanaram as constituições brasileiras e, com elas, diretos fundamentais, apresentar-se-á em um outro item uma análise deste contexto histórico no qual se pretende verificar que a culminância de um Direito com direitos, ao longo das constituições brasileiras, não poderia ser diferente, mesmo que estes direitos, ao longo dos tempos, por muitas vezes, tenham se configurado como textos em folhas de papel.

 

2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM E SEU CONTEXTO HISTÓRICO MUNDIAL

 

 A noção de que os homens possuem direitos inerentes à sua condição humana não é fruto de um pensamento moderno, mas se faz presente desde os tempos passados, de onde é possível averiguar a presença de fundamentos diversos, como o jusnaturalismo[4], para sua concepção.

No que se refere a tais direitos, muito se tem discutido, especialmente no que concerne à sua denominação e conceito.

A ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico dificulta definir-lhes um conceito sintético e preciso. Aumenta essa dificuldade a circunstância de se empregarem várias expressões  para designá-los, tais como: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem.[5]

Só por essas expressões, mesmo sem explicitar-se o real significado de tais direitos, já é suficiente para se deduzir que, de alguma forma, estão intimamente relacionados à própria natureza da condição humana, devendo, por isso, serem respeitados a qualquer custo a fim de manter a própria dignidade da pessoa humana.

Considerando, portanto, o contexto deste trabalho ao tratar do tema desses direitos ao longo do constitucionalismo brasileiro, adotar-se-á a expressão direitos humanos fundamentais que, no dizer de Alexandre de Moraes, compreendem

o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.[6]

Oscar Vieira reafirma esta noção ao situar os direitos fundamentais como uma

denominação comumente empregada por constitucionalistas para designar o conjunto de direitos da pessoa humana expressa ou implicitamente reconhecidos por uma determinada ordem constitucional.[7]

Após essa breve exposição conceitual e, com o intuito de melhor compreender como se desenvolveu o processo de formação dos direitos humanos no decorrer do constitucionalismo brasileiro, importa chamar a atenção para uma sucinta e modesta reconstrução histórica a nível mundial, que remontará o cenário do nascedouro dos denominados direitos humanos.

Avançando na exposição, remontando agora a evolução história dos direitos humanos, sobretudo no Ocidente, é possível verificar que, embora presentes de alguma forma em tempos passados, foi “no bojo da Idade Média que surgiram  os antecedentes  mais diretos das declarações de direitos”.[8]

Neste período, identifica-se um cenário configurado por uma sociedade estamental, de privilégios da nobreza e clero, bem como fragmentada politicamente. A base da organização política e social era o sistema feudal pautado nas relações senhor feudal x servos. Os indivíduos, em troca de proteção e do direito de usar a terra para sustento próprio, faziam uma espécie de pacto com os seus senhores. É válido notar, nos bastidores deste cenário, que a Igreja Católica exercia forte influência na vida das pessoas por intermédio da produção de seus cânones, dogmas inquestionáveis, que dariam origem à dogmática canônica orientadora da prática jurídica nesse momento. Foi a Igreja a única instituição na época a conseguir sustentar uma centralidade em um contexto de fragmentação política e de liberdades individuais cerceadas.

Nesse panorama medieval, ainda que de forma incipiente e visando conceder benefícios a alguns grupos dominantes, surgem alguns estatutos assecuratórios de direitos humanos, a citar: A Magna Carta de 1215, Ato de Habeas Corpus de 1679 e o Bill of Rights de 1688, todos eles com a finalidade de restringir os poderes autoritários.[9]

Importa notar, nesse momento, que 

a forte concepção religiosa trazida pelo Cristianismo, com a mensagem de igualdade de todos os homens, independentemente de origem, raça sexo ou credo, influenciou diretamente a consagração dos direitos fundamentais, enquanto necessários à dignidade da pessoa humana.[10]

Comparato aponta que nesta época, no embrião dos direitos humanos,

despontou antes de tudo o valor da liberdade. Não, porém, a liberdade geral em benefício de todos, sem distinções de condição social, o que só viria a ser declarado no final do século XVIII, mas sim liberdades específicas, em favor, principalmente, dos estamentos superiores da sociedade – o clero e a nobreza –, com algumas concessões em benefício do “Terceiro Estado”, o povo.[11]

Ao término do período medieval , em virtude das contradições inerentes ao modo de produção feudal, esse paulatinamente foi sendo substituído por um modelo comercial de economia, marcado por um período fecundo em invenções técnicas, que revolucionaram toda a estrutura produtiva da Europa medieval[12]. Associado a estes acontecimentos, ocorre o advento de um novo governo centralizador. Era o início das monarquias nacionais absolutistas que tinham por escopo atender aos anseios dos reis e de uma nova classe em ascensão: a burguesia. É pois o Período Moderno que estar a iniciar.

Nesses Estados absolutos o poder político estava concentrado nas mãos dos monarcas. Tal centralização do poder político facilitaria o controle da população e adequar-se-ia às necessidades da burguesia. Há o aparecimento de alguns teóricos com a finalidade de explicar o Estado absolutista, como por exemplo Thomas Hobbes com O Leviatã.

Os ditames normativos adotados pelas monarquias absolutas eram rígidos e limitadores da vida cotidiana dos indivíduos. Assim, as liberdades individuais eram cerceadas pela soberania centrada na pessoa dos monarcas possuidores de poderes políticos ilimitados e onipotentes. As normas que organizavam a sociedade na época não propiciavam aos indivíduos direitos que pudessem ser exigidos frente ao poder do Estado absolutista. Não havia, pois, a idéia de pensar o homem como sujeito de direitos, nem tampouco existia uma positivação das liberdades e garantias fundamentais humanas em um corpo de leis escritas. O que prevalecia eram direitos estamentais e privilégios restritos. A soberania do poder absoluto, imoderado e transcendental do monarca tinha por reflexo a limitação e a não garantia de direitos individuais aos cidadãos.

O advento do período Iluminista, séculos XVII e XVIII, demarca uma nova fase da Era Moderna, momento esse de transformações sociais e de modificações na maneira de pensar dos homens. Seus teóricos Montesquieu, Rousseau, Locke, dentre outros, com seu conjunto de idéias pautadas na racionalidade humana, antropocentrismo (valorização do homem), individualismo e humanismo evocam a razão para explicar a sociedade. Questionavam a organização social pautada na soberania absolutista dos monarcas, criticavam o fundamento divino dado ao direito, a dominação religiosa imposta pela Igreja Católica, enfatizavam uma cultura laica e a proteção dos indivíduos contra as arbitrariedades do poder soberano. Buscava-se uma forma de pensar racionalmente, bem como de legitimar e explicar a soberania do poder político que, com o advento da Revolução Francesa (marco inicial da Era Contemporânea), passará a ser do povo. Eis que nasce com os ideais da Revolução Francesa (igualdade, liberdade e fraternidade) o Estado Moderno Liberal e juntamente com ele uma organização política e social pautada em um documento escrito no qual será declarado um conjunto de garantias e direitos individuais dos cidadãos como uma forma de limitar e moderar o poder político. É, pois, esse contexto, que marcará o início do reconhecimento escrito de um conjunto de direitos fundamentais do homem, antes negligenciados. De forma concreta, pode-se mencionar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França, a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, Declaração de Independência dos Estados Unidos, dentre outras.

Nos séculos seguintes, Alexandre de Moraes nos mostra que

A maior efetivação dos direitos humanos fundamentais continuou durante o constitucionalismo liberal do século XIX, tendo como exemplos a Constituição espanhola de 19-3-1812 (Constituição de Cádis), a Constituição portuguesa de 23-9-1822, a Constituição belga de 7-2-1831 e a Declaração francesa de 1848. [...] O início do século XX trouxe diplomas constitucionais fortemente marcados pelas preocupações sociais, como se percebe por seus principais textos: Constituição mexicana de 31-1-1917, Constituição de Weimar de 11-8-1919 [...].[13]

Consoante esta abordagem, as declarações de direitos do homem que, a partir de então, começaram a brotar, seguiram uma trajetória ascendente, acrescentando a cada novo século, a cada nova era, novos direitos (individuais, sociais, ambientais)[14], provenientes, sobretudo, de um Estado  que os declarem, os garantam e os respeitem, uma vez que são estes direitos, mesmo que obtidos em diferentes momentos históricos, inerentes à própria condição humana.

 

2.1 A Revolução Francesa: um marco na história dos direitos fundamentais

 

            O contar de uma história, seja ela qual for, sempre remete à lembrança de um fato, um acontecimento, que quando trazido à tona, de forma isolada, instantaneamente é associado a essa história.   

Ao se falar de direitos fundamentais e, circunstancialmente, do constitucionalismo brasileiro, não há de se ter dúvidas de que se trata de conquistas, de acontecimentos, resultantes de uma gama de fatores, de momentos, localizados ao longo da linha do tempo, em espaços históricos geográficos e culturais diferenciados.[15]

Diante desta composição, ao falar-se de efetivação de direitos fundamentais e, após um amplo estudo do tema, é indiscutível a concepção de que foi a Revolução Francesa um dos principais, senão, o principal marco histórico, aquele que, quando colocado em pauta, sempre tende a enveredar-se ao tema dos direitos humanos, apresentando-se, para muitos autores, como o ponto de culminância para a consolidação de tais direitos.

É sabido que “o artigo I da Declaração que ‘o bom povo da Virgínia’ tornou pública, em 16 de junho de 1776, constitui o registro de nascimento dos direitos humanos na História”. Do mesmo modo, a Revolução Americana que resultou em sua independência e sua Constituição, também configura um efetivo sinal de demarcação dos diretos fundamentais do homem. Contudo é a Revolução Francesa e, em decorrência desta, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, apontada por vários autores, como o marco, a pilastra mestra na efetivação histórica dos direitos humanos.

A consagração normativa dos direitos humanos fundamentais, porém, coube à França, quando, em 26-8-1789, a Assembléia Nacional promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, com 17 artigos.[16]

            Em se tratando de Brasil e da história de suas constituições, especialmente ao que concerne ao tema dos direitos fundamentais, é inegável a influência  do movimento constitucional apresentado no âmbito externo, principalmente na Europa e América do Norte, como poderá se verificar no próximo item.

           

3 CONSTITUCIONALISMO NO BRASIL: QUANDO E PORQUE DIREITOS HUMANOS

 

Demarcando o primeiro momento do movimento constitucional brasileiro, temos no território brasileiro, que vivia sob uma égide do império de Dom Pedro I, a outorga da Constituição Imperial de 1824. O texto constitucional assinalava em seu Título VIII – Das disposições geraes, e garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brazileiros uma significativa lista de direitos e garantias individuais[17] dentre os quais poder-se-ia destacar: princípios da igualdade e legalidade, livre manifestação de pensamento, liberdade religiosa, liberdade de locomoção, abolição dos açoites, da tortura, direito de propriedade, liberdade de profissão e direito de petição.[18]

Poder-se-ia assinalar que a consagração desses dispositivos na nossa primeira constituição ocorreu em virtude da influência dos movimentos constitucionais mundiais, sobretudo tendo por início a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa, movimentos esses que se mobilizaram no sentido de consagrar e garantir em um texto escrito um rol de direitos inerentes ao homem como forma de limitar arbítrios do poder estatal, como visto anteriormente.

Pode-se dizer ainda que apesar dessa constituição ter consagrado alguns direitos humanos, ela era de certa forma autoritária, em virtude da existência do denominado Poder Moderador, instrumento da vontade pessoal do monarca o que lhe conferia imensas prerrogativas legislativas.

Além disso, um grande agravante para nesta época, em se tratando da eficácia do texto constitucional, residiu no fato de a Constituição ser uma cópia quase fiel da constituição que estaria em vigor em Portugal, uma vez que  o Brasil tinha acabado de conseguir sua independência. Devido a isto, portanto, a constituição não era e nem poderia ser eficaz, tendo em vista não corresponder à realidade e aos anseios da sociedade naquele momento.

     Com a proclamação da República em 15 de Novembro de 1889, surge no ano de 1891, a segunda constituição brasileira, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, adotando como forma de governo a república, como regime de governo o presidencialismo à maneira norte-americana e eliminando o Poder Moderador.

O sistema constitucional implantado enfraquecera o poder central e reacendera os poderes regionais e locais, adormecidos sob o guante do mecanismo unitário e centralizador do Império.[19]

O teor dos direitos individuais da anterior Carta Magna foram mantidos, consagrando entretanto outros, seguindo novamente a tendência no resto do mundo, a exemplo: gratuidade do casamento civil, direitos de reunião e associação, ampla defesa, abolição da pena de morte, habeas-corpus, Instituição do Júri.[20]

Já agora do ano de 1934, o texto constitucional que surgirá terá por reflexo as transformações vividas pelo país com a Revolução de 1930 e, mais uma vez, as disposições trabalhadas a nível mundial a respeito dos direitos humanos. Estatui normas de proteção ao trabalhador, há pois no texto constitucional a inserção de normas de direitos sociais (direitos de segunda geração).

Ao lado da clássica declaração de direitos e garantias individuais, inscreveu um título sobre a ordem econômica e social e outro sobre a família, a educação, a cultura, com normas quase todas programáticas, sob a influência da Constituição alemã de Weimar. Regulou os problemas da segurança nacional e estatuiu princípios sobre o funcionalismo público (arts. 159 e 172). Fora, enfim, um documento de compromisso entre o liberalismo e o intervencionismo.[21]

            No ano de 1937, o então presidente da nação brasileira Getúlio Vargas eleito desde de 1934, por meio de um golpe de Estado implanta o denominado Estado Novo, consubstanciando um regime político forte e centralizado. Nesse período há a outorga da Carta Constitucional de 1937.

Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava, como órgão do executivo.[22]

A Constituição instituiu o estado de emergência, podendo suprimir a liberdade de ir e vir dos cidadãos, legalizou-se a censura aos meios de comunicação, criou-se um tribunal de exceção para o julgamento de crimes que atentassem contra a segurança e a integridade do Estado, etc. Parece claro então que muitos dos direitos e garantias individuais perderam sua efetividade nesse período.

     Avançando na cronologia histórica, já agora no ano de 1946, findada pois a II Guerra Mundial, em âmbito mundial havia uma

extraordinária recomposição dos princípios constitucionais, com reformulação de constituições existentes ou promulgação de outras (Itália, França, Alemanha, Iugoslávia, Polônia e tantas outras), que influenciariam a reconstitucionalização do Brasil.[23]

Seguindo essa tendência histórica houve no Brasil a promulgação da Constituição de 1946, sendo marcada por uma restauração dos direitos e garantias individuais. Nela houve uma ampliação dos direitos relativos aos trabalhadores, como também procurou assegurar direitos relativos à vida, liberdade, propriedade, segurança individual, dentre outros.

Com o golpe militar de 1964 teve início um período caracterizado por governos militares. Posteriormente no ano de 1967 entraria em vigor uma nova Constituição, marcada por um forte retrocesso, se comparada à Constituição de 1946, no que concerne aos direitos e garantias humanas. O seu texto “reduziu a autonomia individual, permitindo suspensão de direitos e de garantias constitucionais, no que se revela mais autoritária do que as anteriores, salvo a de 1937”[24]. Em contrate a essas imposições restritivas, dispunha em seu texto alguns dispositivos tais como o “sigilo das comunicações telefônicas e telegráficas; respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário, previsão de competência mínima para o Tribunal do Júri (crimes dolosos contra a vida)...”[25] Como também, tendo por objetivo beneficiar os trabalhadores, inseriu em seu texto direitos sociais.

De uma forma geral pode-se mencionar que a Carta Magna de 1967[26] demonstrou procurar fazer um esforço no sentido de conter os Atos Institucionais que passaram a existir desde o golpe de 64. Entretanto com o AI-5 de 1968 ela veio a sucumbir.

Desde a instalação do  golpe de 1964 e do AI-5, a luta por uma democracia de fato e por um Estado Democrático de Direito começou a se instalar no Brasil. Com o passar do tempo, o povo já não suportava viver em um  país onde o autoritarismo parecia não ter fim. Foi então que, no início de 1984, com o movimento das Diretas Já,

as multidões acorreram entusiásticas e ordeiras aos comícios em prol da eleição direta do Presidente da República, interpretando o sentimento da Nação, em busca do reequilíbrio da vida nacional, que só poderia consubstanciar-se numa nova ordem constitucional que refizesse o pacto político-social.[27]

Embora não tenha alcançado seu objetivo de eleições diretas, o povo conseguiu imprimir seu sentimento de luta em busca de um país mais democrático e, em 1985, com a eleição de Tancredo Neves, deu-se início a um novo período na história das instituições políticas brasileiras e que fora denominado, pelo novo presidente, como a Nova República.

E, como resultado desse  novo tempo, é promulgada em 1988 a nova Constituição do Brasil. De acordo com José Afonso da Silva,

é um texto moderno, com inovações de relevante importância para o constitucionalismo brasileiro e até mundial. Bem examinada, a Constituição Federal, de 1988, constitui, hoje, um documento de grande importância  para o constitucionalismo  em geral.[28]

De certo, que é esta a Constituição Cidadã, como afirmara Ulysses Guimarães, então Presidente da Assembléia Nacional Constituinte da época. Primeiro, porque é fruto de um desejo do povo, de um desejo pela consolidação de uma democracia que há muito ele não pudera sequer almejar. Segundo, porque nasceu para ser um instrumento de cidadania, no qual ganhou efetivo espaço a dignidade da pessoa humana.

Diante deste contexto, o que se percebe é que a Constituição de 1988, ao contrário das outras constituições, embora ainda não seja o ideal pleiteado pelo povo brasileiro, no que se refere aos direitos fundamentais do homem muito se conquistou e tem-se conquistado. E mais uma vez o contexto histórico mundial, agora com aspectos de universalidade dos direitos, influenciou por deveras na implementação de um texto constitucional onde é possível verificar a existência de um Direito com direitos.

 

4 DIREITO COM DIREITOS: NÃO PODERIA SER DIFERENTE

 

Após uma análise da história do constitucionalismo brasileiro e de todos os fatores que influenciaram na formação de cada uma das constituições brasileiras ao longo dos tempos, especialmente no que se refere à inserção de direitos fundamentais nestes documentos, pertinente se faz o levantamento de uma questão: Seria possível, na história do constitucionalismo brasileiro e, mesmo mundial, a existência de outra forma qualquer de Direito que não seja a aqui apresentada: a de um Direito com direitos?

De certo que não... E não poderia ser diferente.

Embora seja motivo de grandes controvérsias, tais direitos, de uma certa forma, são inerentes à própria condição humana.

Há quem diga que tais direitos são históricos, que nasceram em épocas diferentes, dependendo do contexto em que estavam inseridos e que, por este motivo, não seriam direitos oriundos da natureza humana.

Não há dúvidas de que esses direitos foram implementados em épocas diferentes como resultado da luta de vários homens, de vários povos e nações, e, porque não dizer agora, do mundo como um todo. Entretanto, tais homens foram motivados por alguma razão, razão esta que acreditavam estar em si mesmo e que serviu de mola propulsora para a conquista de tais direitos.

Por assim dizer, e apoiado de certa forma na teoria jusnaturalista, os direitos humanos não nasceram em épocas distintas. Eles sempre estiveram lá. De certa forma, eles foram descobertos ou forçados a se manifestarem ao longo do tempo. Ademais, outros direitos foram sendo construídos sobre o pilar desses direitos naturais e acabaram por se confundir com estes.

Sob uma outra vertente, poder-se-ia dizer, ainda, que a implementação de direitos fundamentais do homem está associada também à variação de conceitos elaborados ao longo dos tempos  sobre a compreensão do que viria a ser a pessoa humana.[29]

A única certeza, contudo, é a de que um Direito com direitos continua sendo escrito, a cada dia, pelas mãos de todos nós.

 

5 CONCLUSÃO

 

É, sem dúvida, tarefa das mais difíceis abordar um assunto como o dos diretos fundamentais do homem, ainda mais levando-se em considerações todo o seu contexto histórico em tão poucas páginas.

No que se refere aos direitos fundamentais, as constituições brasileiras estiveram sempre propensas a seguir o que era afirmado no contexto mundial. Entretanto, esta tendência mundial normalmente destoava do contexto histórico vivido pelo Brasil naqueles momentos, o que acabou por prejudicar a eficácia dessas constituições, com exceção para a atual, transformando-as, como declararia Lassalle, em uma simples folha de papel.

Quando podemos dizer que uma constituição escrita é boa e duradoura? [...] Quando essa constituição escrita corresponder à constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder que regem o país. Onde a constituição escrita não corresponder à real, [...] a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país.[30] (p. 47).

Outro fator que poderia ser levado em conta, e que aqui é colocado como sugestão para estudos futuros, diz respeito ao sincronismo entre as grandes declarações de direito e as grandes descobertas científicas ou invenções técnicas, quando se coloca em pauta a sucessão das diferentes etapas de afirmação desses direitos.[31]

É certo que os busca pela efetivação e direitos humanos tem tido relativo avanço nos últimos tempos, especialmente a partir da Constituição de 1988 que, de certa forma, busca reconhecer e acomodar as diversas categorias de direitos (civis, políticos, econômicos e sociais, culturais e de grupos vulneráveis). Entretanto, ainda hoje, é possível verificar em alguns lugares, principalmente nas periferias e cidades afastadas das capitais o mesmo cenário descrito em tempos atrás, onde a efetivação dos direitos humanos ainda está longe de ter a eficácia desejada.

Dessa forma, por ser a Constituição a lei máxima de um país, como o Brasil, faz-se mister e indispensável que a implementação, o reconhecimento formal de direitos humanos, a fim de garantir a sua real efetivação, e permitindo, dessa forma, uma maior segurança no que concerne às relações em sociedade.

REFERÊNCIAS

 

CANOTILHO, J. J. Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. Prefácio de Aurélio Wander Bastos. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.

MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21.ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.



[1] Acadêmica do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[2] Ao referir-se aqui a uma “norma qualquer” não se deseja atribuir à norma um valor mínimo, nem tampouco se espera criar alguma polêmica, mas pretende-se tão somente enaltecer a importância dos direitos fundamentais dentro de uma sociedade onde o Direito se faz imprescindível, uma vez que este “corresponde à exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada, pois nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e solidariedade”. Sobre o conceito de Direito, citado nesta nota, vide REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 1.

[3] Vale ressaltar, aqui, portanto, que aspectos relativos às teorias filosóficas que servem de fundamento para estes direitos, bem como o conteúdo material das constituições, mesmo aqueles relacionados aos direitos humanos não serão aqui tratados de forma minuciosa, devendo, de forma geral, apenas serem mencionados.

[4] Por não ser o foco deste trabalho, uma abordagem sobre o jusnaturalismo e outras teorias desenvolvidas no intuito de justificar e esclarecer o fundamento dos direitos humanos pode ser encontrada em MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002.

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21.ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.175.

[6] MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 39.

[7] VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p. 36.

[8] SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 151.

[9] Ibidem.

[10] MORAES, Alexandre de. op. cit., p. 25.

[11] COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.45.

[12] Ibid. p.46.

[13] MORAES, Alexandre de. op. cit., p. 29-30.

[14] A referência a novos direitos aqui apresentada reflete, sobremaneira, à classificação de direitos fundamentais dada por muitos estudiosos (primeira, segunda, terceira geração), baseando-se na ordem cronológica  em que passaram a ser constitucionalmente reconhecidos. Ver MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 44-46.

[15] Como bem afirma Canotilho, “não há um constitucionalismo mas vários constitucionalismos. [...] existem diversos movimentos constitucionais com corações nacionais mas também com alguns momentos de aproximação entre si, fornecendo uma complexa tessitura histórico-cultural.” [grifo do autor]. Ver CANOTILHO, J. J. Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 51.

[16] MORAES, Alexandre de. op. cit., p. 28.

[17] Como não poderia deixar de ser, uma vez que já se passara mais de 30 anos desde a Revolução Francesa, a primeira Constituição brasileira veio recheada de direitos e garantias individuais, como reflexo das inúmeras transformações que por hora estariam acontecendo em vários lugares do mundo.

[18] MORAES, Alexandre de. op. cit., p. 32.

[19] SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 80.

[20] MORAES, Alexandre de. op. cit., p. 32.

[21] SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 82.

[22] Ibid. p. 83.

[23] Ibid. p. 83-84.

[24] Ibid. p. 87.

[25] MORAES, Alexandre de. op. cit., p. 34.

[26] Após esta Constituição, houve a publicação da Emenda Constitucional nº 1, de 17-10-1969 que muitos autores consideram como uma outra carta constitucional, por promover inúmeras e profundas alterações na anterior. Entretanto, para o estudo da evolução dos direitos fundamentais dos homens, objetivo deste trabalho, não incluiremos tal emenda ao rol das constituições do Brasil.

[27] SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 88.

[28] Ibid. p. 89.

[29] Sobre este enfoque ver COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

[30] LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. Prefácio de Aurélio Wander Bastos. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998. p. 47.

[31] COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit. p. 37.