DIREITO BRASILEIRO E A FAMÍLIA SOCIOAFETIVA: a posse do estado de filho e o melhor interesse do menor. [1]

Oscar Henrique Campos

Thássia Mendes da Silva[2]

 

 

Sumário: Introdução; 1 A família no direito brasileiro; 2 Filiação; 3 Filiação socioafetiva: a posse do estado de filho e o melhor interesse do menor;  Considerações Finais; Referências.

 

RESUMO

 

 

O presente trabalho busca fazer uma breve análise da evolução da noção de família no direito brasileiro e o reconhecimento do vinculo afetivo como elo estruturante de algumas famílias. Uma vez que o instituto da filiação perdeu seu caráter unicamente biológico cedendo espaço para filiação fundada unicamente no afeto, o tema vem ganhando evidência e reconhecimento, ensejando, assim, proteção jurídica conveniente.

 

Palavras-chave: Direito. Família. Socioafetividade. Filiação. Afeto.

 

INTRODUÇÃO

 

O Direito de Família ganhou nova roupagem com a Constituição Federal de 1988, que modificou o conceito desta instituição, acolhendo como entidade familiar além do casamento, a união estável. Perante a publicação da Constituição Federal de 1988 os filhos tidos fora do casamento foram protegidos, através do princípio da igualdade dos filhos, prevista no artigo 227, § 6, sendo considerados, para tanto, simplesmente filhos, com os mesmos direitos.

Com o desenvolvimento da sociedade, surgiram mudanças e uma delas foi o progresso da genética que derrubou a verdade jurídica da paternidade, através da identificação consanguínea do genitor, criando assim a paternidade biológica.

Entretanto, não foram somente essas mudanças que ocorreram, a afetividade e os laços sociais também ganharam um novo aspecto com o desenvolvimento da sociedade. Com isso, um ponto importante ficava excluído da lei, a família fundada nos laços de afeto, que decorrem da dedicação de uma pessoa para com a outra através do amor e do cumprimento dos deveres de forma voluntaria, sendo denominada de família socioafetiva.

Num primeiro momento trataremos do tema de forma crítica e expositiva, abordando a posse do estado de filho e o melhor interesse do menor, a família no direito brasileiro, um apanhado geral sobre filiação, enfim os aspectos importantes deste novo tema, que vem sendo discutido pela doutrina e em nossos Tribunais.

 

1 A FAMÍLIA NO DIREITO BRASILEIRO

 

É inegável que, ao longo da história, a família sofreu algumas mudanças e evoluiu a fim de atender os interesses de seus componentes e se adequar as novas realidades sociais. É fato que a família constitui a base da sociedade civil e diante da evolução do instituto há que se afirmar que houve um novo delineamento do direito de família.

Nesse contexto, cumpre frisar que com a constitucionalização do direito civil, quando, com o advento da Constituição de 1988 os institutos de direito privado passaram a ser analisado tendo como ponto central a CF, conforme leciona Tartuce (2012, p. 6) “os antigos princípios do direito de família foram aniquilados, surgindo outros, dentro desta proposta de constitucionalização, remodelando o ramo do direito de família”.

Assim, percebe-se que há hoje uma flexibilização da compreensão da família, de forma que aquele conceito tradicional, fundado no casamento e nos vínculos consanguíneos, cede espaço aos novos modelos de família tornando imperioso, como bem leciona Tartuce (2012, p. 27), a ampliação do conceito de família visando abranger outras situações ainda não tratadas especificamente. Assim o rol, constante no art. 226, não pode ser compreendido como taxativo, mas meramente exemplificativo.

Nessa esteira, merece destaque o conceito genérico de família trazido por Pablo Stolze (2011, p.45), pelo qual a família constitui um “núcleo existencial integrado por pessoas unidas por um vinculo socioafetivo, teleologicamente vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes”. Corroborando com essa nova perspectiva, o legislador, no art. 5° da Lei 11.340/2006 dispôs que a família deve ser entendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais ou de afinidades ou por vontade expressa.

A mesma referência afeto é feita em outros textos legislativos o que demonstra o seu crescente reconhecimento como principal fundamento das relações familiares.

Logo, percebe-se que família e afeto estão intimamente ligados. Desta forma, quando quebra-se os paradigmas das definições biológicas e formais da entidade familiar, idealiza-se a mesma como uma comunidade de afeto, a abstração dos termos nos leva a buscar elementos identificáveis nas práticas e na simbologia dos grupos sociais, que nos permitam reconhecer relacionamentos que possam ser nomeados de “família socioafetiva”. (BRUNO, 2002)

Aqui pode ser citado o princípio da afetividade, que é fundado no sentimento protetor, da dedicação e das paixões naturais. É fato que tal princípio não possui previsão legal em nossa legislação, mas deriva de diversos outros princípios, como o da proteção integral e o da dignidade da pessoa humana. Atualmente ele vem sendo bastante utilizado nos tribunais, conduzindo as questões referentes à chamada família socioafetiva. Família essa que tem como entes pais e filhos, ligados muitas vezes por laços além da consanguinidade, mesmo esta última não existindo.

2 FILIAÇÃO

A incidência do princípio da afetividade no Direito de Família contemporâneo teve como consequência a transformação da concepção familiar, afastando a primazia do vinculo biológico e reconhecendo-se o afeto, também, como fundamento da família brasileira. Assim, a família não emana exclusivamente das forças naturais, e o exercício da paternidade perde seu caráter meramente biológico. Nesse sentido, Maria Helena Diniz (apud TARTUCE, 2012 p. 363) leciona que “a verdade real da filiação pode ser biológica ou socioafetiva; o que importa é o laço que une pais e filhos, fundado no amor e na convivência familiar.”

A filiação, nas palavras de Tartuce (2012, p. 328), é a relação jurídica decorrente do parentesco por consanguinidade ou outra origem, estabelecida particularmente entre os ascendentes e descendentes de primeiro grau. A expressão, “outra origem”, segundo Washington Monteiro (apud GONÇALVES, 2005, p. 265) “abre espaço ao reconhecimento da paternidade desbiologizada ou socioafetiva, em que, embora não existam elos de sangue, há laços de afetividade que a sociedade reconhece como mais importante que o vínculo consanguíneo”. A filiação, nesse caso, trata-se daquela onde não existe ligação genética, sendo estabelecida pelo afeto, pela convivência, pelo tratamento daqueles que se reconhecem como pais e filhos.

Cumpre destacar que o ordenamento não traz de forma expressa o termo filiação socioafetiva, contudo, não há que se negar o seu reconhecimento, principalmente no que tange o princípio da igualdade entre os filhos, expresso na CF/88 e ainda no código Civil, quando se reconhece que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. Assim, Everton Costa (2007) define a filiação socioafetiva como “uma relação jurídica de afeto com o filho de criação, como naqueles casos que mesmo sem nenhum vínculo biológico os pais criam uma criança por mera opção, velando-lhe todo amor, cuidado, ternura, enfim, uma família, em tese, perfeita”.

Conforme leciona Paulo Luiz Netto Lobo (apud CARVALHO, 2009), para se verificar a existência da filiação socioafetiva, é necessário a presença dos seguintes elementos: a) pessoas que se comportam como pai e mãe e outra pessoa que se comporta como filho; b) convivência familiar; c) estabilidade do relacionamento; d) afetividade.

 A socioafetividade como espécie da filiação, caracterizada pela convivência, afetividade e pela estabilidade nas relações familiares, segundo Dimas Carvalho (2009) “é cada vez mais marcante na evolução do direito de família, considerando a doutrina que a verdade real é o fato do filho gozar da posse do estado de filho, que prova o vínculo parental civil de outra origem, atribuindo um papel secundário à verdade biológica”.

Diante da nova realidade social de algumas famílias brasileira e os avanços na busca da identificação dos vínculos familiares estruturados unicamente no afeto, torna imprescindível o uso de novos referenciais, acolhendo, assim, a filiação socioafetiva fundada na posse do estado de filho.

3 FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA: A POSSE DO ESTADO DE FILHO E O MELHOR INTERESSE DO MENOR

As transformações sociais e a constitucionalização do Direito Civil fizeram com que se começasse, gradativamente, a reconhecer a preponderância do vinculo afetivo afastando-se da verdade puramente biológica. Pode-se perceber que o reconhecimento da filiação socioafetiva vem ganhando força na doutrina e na jurisprudência e desponta como principal representante das novas relações familiares surgidas a partir de vínculo meramente afetivo.

 Com isso, prevalecem a afetividade e o melhor interesse do menor como legitimadores da filiação e da paternidade, passando a posse do estado de filho a constituir, portanto, o elemento caracterizador desse parentesco fundado no afeto.

A posse do estado de filho, ou posse do estado de filiação, constitui espécie do gênero status familiae e desenvolve-se a partir da convivência familiar. Segundo os ensinamentos de Paulo Luiz Netto Lôbo (2004):

A posse do estado de filiação constitui-se quando alguém assume o papel de filho em face daquele ou daqueles que assumem os papéis ou lugares de pai ou mãe ou de pais, tendo ou não entre si vínculos biológicos. A posse de estado é a exteriorização da convivência familiar e da afetividade.

A filiação, aqui, se estabelece, essencialmente, a partir do afeto que une pais e filhos, trata-se da relação afetiva em que alguém trata e reconhece perante a sociedade o outro como seu filho, concedendo a assistência necessária ao desenvolvimento deste, cumprindo, assim, com todos os deveres inerentes ao poder familiar. Surge, portanto, do convívio familiar, do amor e das responsabilidades, próprias da relação paterno-filial que são assumidas.

No meio dessa discussão sobre o estado de filiação, cumpre ressaltar, ainda, a busca da satisfação dos direitos da criança, que, segundo mandamento constitucional, possui prioridade absoluta. Assim, todas as relações envolvendo menores, deve considerar, primordialmente, o melhor interesse destes.

Destaca-se aqui o enunciado de numero 330, aprovado na IV Jornada de direito Civil, que possui a seguinte redação: “A paternidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do menor”.

Aqui, é importante ressaltar que o princípio do melhor interesse do menor previsto no artigo 227 da C.F., no ECA nos artigos 4° e 5°, deve ser observado pela sociedade como um todo o que inclui o Estado, os pais, a família, os magistrados, os professores, por se tratar de um direito fundamental.

Se, antes os conflitos entre o biológico e o afetivo, como vimos, se resolvia sempre em favor do primeiro, percebe-se agora a transferência da primazia do interesse dos pais para o interesse do menor, passando-se a considerar que a ruptura do vínculo afetivo que se estabeleceu dentro do seio da família socioafetiva prejudicaria o interesse do filho e, por isso, o vínculo não-biológico prepondera sobre a biológico. Assim, Paulo Luiz Netto Lôbo (2004), leciona que, diante de um conflito, princípio impõe a predominância do interesse do filho, devendo o julgador, analisando o caso concreto, decidir se a realização interesse do menor estará assegurada entre os pais biológicos ou entre os pais não-biológicos. O autor assevera, ainda, que “de toda forma, deve ser ponderada a convivência familiar, constitutiva da posse do estado de filiação, pois ela é prioridade absoluta da criança e do adolescente”.

Cumpre ressaltar, que embora a legislação, não caracterize a posse do estado de filho como suporte fático para reconhecimento da filiação, a doutrina e a jurisprudência vêm demonstrando grandes avanços nesse sentido. Não obstante isso, torna-se imperioso a adequação do ordenamento jurídico brasileiro a realidade de diversas famílias brasileiras que tem o afeto como seu elo estruturante e por isso buscam a tutela jurídica adequada para a sua situação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Com a C.F. de 88, a filiação no Brasil passou por mudanças, entre elas o advento da filiação socioafetiva, que divide espaço jurídico e social com a filiação biológica.

Assim os princípios da igualdade dos filhos, da dignidade da pessoa humana e principalmente da afetividade, passaram a ser aplicados no Direito de Família, estabelecendo a família, paternidade e filiação socioafetiva caracterizadas pela dedicação, amor, assistência, carinho de forma duradoura e contínua diante da sociedade, sem ter um vínculo biológico.

O Código Civil não reconhece a posse do estado de filho, apesar da doutrina e da jurisprudência adotarem em varias ocasiões baseada nos laços de afetividade a filiação. Entretanto, filiação socioafetiva, baseada na afetividade, existente entre pais e filhos sem vínculo consangüíneo, pode ser reconhecida através de uma ação de investigação de paternidade, gerando os mesmos direitos e deveres estabelecidos para os filhos consangüíneos e adotivos.

É de notório saber que o reconhecimento da filiação socioafetiva gera divergências na doutrina. Se por um lado autores como, por exemplo, Silvio Venosa (2005, p. 273) afirma que enquanto não houver reconhecimento essa filiação é alheia ao direito, outros como, por exemplo, Caio Mário da Silva Pereira (2006, p. 208) aduz que “os direitos decorrentes da filiação existem antes mesmo de serem reconhecidos, porém os filhos só poderão deles desfrutar após a ocorrência do reconhecimento, já que antes deste eles eram meros titulares de um complexo de direitos”.

Então, de acordo com o desenvolvimento e as necessidades da sociedade, no que tange o Direito de Família, a legislação brasileira deixa a desejar quando o assunto é família, paternidade e filiação socioafetiva, o que exige do legislador atual uma maior importância quanto ao tema tão relevante para a preservação de um bem maior: a família.

 

REFERÊNCIAS

 

BRUNO, Denise Duarte. Família socioafetiva. 2002. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=60>. Acesso em: 18.05.2012.

CARVALHO, Dimas Messias de. Filiação jurídica- Biológica e socioafetiva. 2009. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=512>. Acesso em: 20.05.2012.

COSTA, Everton Leandro da. Paternidade sócio-afetiva. 2007. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=274>. Acesso em: 18.05.2012.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direito de família. vol. VI. São Paulo: Saraiva, 2011.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família. vol. VI 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. 2004.  Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=126 > . Acesso em: 13.05.2012.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de Paternidade e seus Efeitos. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

TARTUCE, Flávio ; SIMÃO, Fernando José. Direito civil: direito de família. vol. 5. 7. ed. ver. atual. ampl. São Paulo: Método, 2012.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 5. ed. rev. atual. São Paulo: Atlas, 2005.



[1] Paper apresentado como requisito para a obtenção de nota à disciplina de Direito de Família e Sucessões do curso de direito da UNDB, ministrada pela professora Ana Valéria Cabral Marques.

[2] Aluna do curso de Direito, na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.