1 INTRODUÇÃO

O presente estudo está pautado, principalmente, na idéia de que a discriminação étnico-cultural é uma das características da dinâmica da violência percebida nas escolas públicas de Ensino Fundamental, em Feira de Santana, e que o fenômeno atormenta, principalmente, a população de alunos afrodescendentes. A decisão de realização do estudo nasce a partir da percepção como professor de História no Colégio Estadual Carmem Andrade Lima, no bairro Sobradinho, em Feira de Santana-Ba, no Ensino Fundamental e Médio, em um período compreendido entre 2000 e 2003. Esse tempo, somado á minha experiência docente nestes níveis de ensino em outras escolas, corresponde a um total de treze anos. Durante o tempo de experiência como professor, pude perceber que a violência se manifesta sob um caráter poliforme. Buscou-se então investigar a violência originada das práticas escolares inadequadas e a partir das relações interpessoais entre alunos, entre estes e professores e entre alunos e a direção da escola. Um aspecto específico da violência é investigado: a discriminação étnico-cultural. A guisa de contextualização, foi pesquisada, em bibliografia especializada, a dinâmica da violência, de forma mais generalizada, na sociedade contemporânea. Evidenciou-se também que a população de descendência africana, ao mesmo tempo em que é maioria na escola, é também a grande envolvida nos eventos traduzidos como violência, e isto significou a primeira motivação para conhecer a dinâmica e os impactos desta violência na vida de adolescentes e jovens que vivem os valores e linguagens das territorialidades de base africana. 12 A problemática desta pesquisa consistiu em compreender por que principalmente essa parcela de afrodescendentes está sempre envolvida nos atos de violência, de que forma o estado de violência sobredetermina os atos de violência e por que são exatamente estes alunos que, de vítimas, são transformados em culpados pelos referidos atos de violência na escola. Qual seria a explicação para a relação direta afrodescendentes/violência escolar? Buscar as origens dessa realidade contraditória e perceber a dimensão com que ela se manifesta na escola em estudo, e, ao mesmo tempo, buscar possíveis proposições para discutir as questões inerentes ao fato, com a comunidade educacional local, constituiu o objetivo geral de pesquisa. Algumas conclusões apontam para o estabelecimento de um estado de violência que determina os atos de violência dos alunos afrodescendentes. Aqui se percebe que a violência é multifacetada e que são exatamente os responsáveis pelo funcionamento da instituição escolar os que atuam como representantes dos órgãos governamentais na escola, e, como tal, são responsáveis pela concretização de uma tecnocracia que obviamente não vê os alunos de descendência africana como sujeitos críticos com necessidades de afirmação existencial, e que buscam a escola enquanto espaço que deveria proporcionar esperança de encontro com a identidade violentada. Ao contrário de buscar efetivamente uma resolução para as questões que originam a violência, dirigentes escolares assumem papéis de representantes das instâncias hierarquicamente superiores, cuja postura é caracterizada por tentar exaustivamente banalizar e normalizar injustiças. Estes atores são, na realidade, componentes do corpo gestores da escola, e, ironicamente, encontram apoio de uma grande maioria de professores. No caso destes últimos, as motivações para o 13 não questionamento dos atos de violência são diferentes em relação às dos dirigentes. Enquanto os gestores assumem o papel de representantes do governo na escola, pelo fato de se haver comprometido com políticos aliados ao governo, uma vez que assumem os cargos de direção das escolas por meio de indicação destes mesmos políticos, a parcela do corpo docente que lhes garante fidelidade, passa por um processo de desmotivação e falta de auto-estima por motivos que vão desde os baixos salários até a falta de perspectiva profissional e excesso de trabalho devido à dupla, ou até tripla jornada de trabalho. Alguns chegam a trabalhar em até três escolas devido aos baixos salários que não justificam a dedicação exclusiva a uma escola. Estas adversidades no cotidiano desta parcela de docentes representam uma fuga quanto a um posicionamento crítico e uma postura questionadora da realidade da escola. Disto resulta, então, um ciclo vicioso no qual o professor não desempenha bem as suas funções, e, para se proteger de possíveis advertências do diretor da escola, promete-lhe fidelidade e apoio político temendo sofrerem investidas permeadas de violência simbólica na maioria das vezes (BOURDIEU, 2001). A partir da constatação dos atos de violência envolvendo a maioria de alunos (as) afrodescendentes na escola a cujo quadro pertenço, tenho a percepção de que o estado de violência sutil, velado e implacável determina esses atos de violência. O estado de violência se configura como violência institucionalizada e, geralmente invisível, está constituída a partir das normas tecnoburocráticas do Estado Terapêutico. Historicamente, este tem julgado os descendentes de africanos assim como os aborígines como inferiores psicológico e sócio-culturalmente. Este Estado 16 não se levam em consideração as necessidades mais imediatas dos alunos pobres. Estes não conseguem ver nenhum sentido entre os conteúdos escolares e as suas necessidades materiais de consumo em uma sociedade que aceita ou não os indivíduos a partir da sua capacidade de ter e não de ser. A violência passa a ser uma preocupação também das classes mais privilegiadas porque estas não estão imunes ao aspecto da violência física, por exemplo. Fala-se, então, em uma política da paz, visto que a repressão não tem conseguido resolver a maioria dos problemas relacionados à violência. No entanto, o maior empecilho à efetivação de uma educação para a paz, no Brasil, não é a minoria que age de forma violenta e injusta, mas sim a maioria silenciosa e desarticulada, que se tranca em seu mundo supostamente seguro, por acomodação ou medo de envolvimento. A violência está, por um lado, diretamente associada à pobreza porque a opressão sofrida pela grande maioria empobrecida da população está perpetuada entre nós, desde o início da nossa história e cultura, o que nos remete a uma constatação mais contundente ainda, ou seja, a de que existe a absurda idéia, criminosamente invocada pela ideologia dominante, de banalizar a condição de miséria a que está submetida a maioria absoluta da população brasileira, atribuindo a esta, as razões desta miséria.

É verdade que já foram superadas algumas questões e obtidos alguns avanços, porém, a jornada ainda é muito árdua e longa. Muito ainda está por ser realizado, contudo, as pessoas vivem imersas em uma realidade que coloca o Brasil entre os países com maior disparidade socioeconômica entre as classes sociais. Nossa própria história nos mostra que temos uma das elites mais perversas e cruéis do mundo. Foram quase quatro séculos de trabalho escravo em um país que tem 19 afrodescendentes, e desprovidos de quem os represente autonomamente enquanto sujeito importante na composição da população educacional e da sociedade como um todo, a se envolver nos atos de violência escolar, sobretudo com a agravante de representarem alvos comumente responsabilizados pelos fatos que constituem tal realidade. Como mais uma forma de ilustrar as questões relativas às desigualdades, cito o economista Marcelo Paixão, em entrevista ao repórter Fábio Victor do Jornal Folha de São Paulo de 20 de novembro de 2005, por ocasião do dia em que se comemora o dia da consciência negra. Declara o economista que, Sabemos que as desigualdades sociais na educação são muitas vezes produzidas por conta de condições desiguais para acessar o ensino. Crianças pobres saem da escola mais cedo do que as ricas. Por outro lado, também sabemos que muitas vezes o que afastas as crianças não é só o fator econômico. É também o desalento, o fato de que o ambiente em sala de aula é pouco propício para que os alunos sejam diversos em origens ou formas físicas. Constroe-se um padrão estereotipado que tem efeitos difíceis de ser quantificados, mas são cruéis. Enfim, as políticas de promoção de igualdade racial estão ligadas às políticas de combate à pobreza. Podem ser instrumentos importantes para a reversão de um cenário de desigualdades que, a rigor, se perpetua secularmente. E esse secularmente jamais pode ser considerado um tema menos. Temos de nos lembrar que esse país tem uma população de descendente de escravos dasassistida há gerações. (Dia da Consciência Negra, Caderno Mais, Folha de são Paulo, 2005, p. 3). Note-se, então, a gravidade da situação dos afrodescendentes: primeiro são descendentes do povo africano que foi expatriado, arrancado de suas raízes, deserdado da sorte, na menos grave das adjetivações. É um povo que construiu, a suor, sangue e com a própria vida, o mesmo país que sempre os desprezou, quando deveria ser obrigado a ampará-los. Os afrodescendentes herdaram a falta de assistência que caracteriza a relação dos negros com o Estado brasileiro desde o 14 de maio de 1888, o dia da esperada liberdade, ou o dia que nunca acabou, pois se espera ser plenamente livre até hoje

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