WERNER SCHRÖR LEBER

CURSO: DILEMAS EXISTENCIAIS DO HOMEM CONTEMPORÂNEO

Questões e respostas do Módulo II

01. No que consiste a derrota do pensamento, bem como, quais são as suas implicações para o projeto da ocidentalidade?

 

RESPOSTA

Max Weber observa que a sociedade atual, guiada pela visão ascética protestante, é a sociedade do desencantamento – desencantamento social - (Gesellschaftliche Entzauberung). A crise do pensamento atual, não é tão atual assim. Ela situa-se ainda no século XIX, quando o mundo encantado do iluminismo ruiu. Nietzsche e Marx, cada um a seu modo, são ícones da crise. Outro assunto que a apostila aborda é o baixo grau de conhecimento dos estudantes brasileiros (por exemplo, página 21). Eu conheço aqueles dados, e hoje já há dados novos com indicadores tão medíocres quanto àqueles, porque sou professor em escola privada e pública estadual. Sei bem....e como sei que pedras se joga esse jogo nefasto. Sobretudo na educação pública há uma mediocridade instalada. Pedro Demo, lembro de ter lido isso em um livro dele – aquele lá da Metodologia científica no caminho de Jürgen Habermas -, diz, cito de cabeça: “na escola pública brasileira a mediocridade do professor empata com a do aluno”. Para mim o contraste é gritante. Nas escolas privadas há níveis melhores, mas voltadas também apenas para o adestramento de provas e concursos de vestibulares. Claro, ainda que esse caminho seja perverso, os estudantes dessas escolas acabam tendo um conhecimento melhor e mais profundo que os das escolas públicas. Mas são, via de regra, elites, que ficarão com as melhores vagas de universidades públicas e, assim, se “perpetua” uma situação que só serve para o modelo que hoje nos deixa com aqueles índices pífios, conforme a Apostila, na página 21 aponta. Por outro lado, na escola pública reina a lei do coitadinho. Parte-se do pressuposto que o aluno é um desfavorecido do qual nada pode ser cobrado. Como se isso resolvesse a situação. É justamente por saber pouco que ele se encontra na situação em que está. O dinheiro público empregado para pagar salário de professor, luz, água, enfim, toda manutenção da escola é o mesmo. Então, por que está proibido fazer o aluno saber mais?  Aí vem o discurso das competências...palavrinha mágica na moda. Que competências!!!!! De técnicos, de pedagogos formados em cursos ligeiros a partir de leituras politicas ainda mais rasteiras para tapear a nossa pouca eficiência educativa? “Competências” esbravejadas da boca para fora por pessoas que discursam em nome da educação, mas fugiram da sala de aula quando lhes aprouve? Há inúmeras resoluções a favor do aluno, mas nenhuma resolução que diga: “o aluno precisa sair da escola sabendo bem mais do que o que sabia quando entrou; e os professores que não forem capazes de fazer isso, devem ser demitidos”. Veja essa ilustrativa passagem, retirada da página 23:

 

A educação escolar encontra-se imersa neste contexto, de desagregação, sofrendo com a própria falência deste modelo que ela reproduz. A escola já não se identifica mais como a instituição por excelência na concretude dos tempos, tem dificuldades em responder aos anseios de um modelo civilizatório em desagregação. O professor, como outras categorias profissionais sobre um processo de precarização no seu pensar e fazer pedagógico.

 

Então, tu marchas José, mas para onde? Fica constatado que há uma crise de paradigma, mas as soluções, essas pouco deslumbramos pelo apagamento produzido pela lógica mercantil que move a moeda e as finanças. Falta-nos hoje a determinação e a coragem, estoica. Não há muito o que dizer  a não ser constatar tristemente com Rubem Alves que (escrevo de cabeça...faz anos que li) “de que ainda plantar ipês, jacarandás, jatobás magnólias se já está decidido que só os eucaliptos devem sobreviver?”. É a falta de perspectiva dessa lógica que produz a falsa sensação de que nada há por fazer a não ser submeter a educação e todas as relações sociais à perversidade e à mesmice disfarçada de novidade.

 

 

02. Sociedade do controle: discorra sobre a questão, por um lado a sociedade reclama cada vez mais segurança, e por outro lado, reclama cada vez mais liberdade. Esses dois anseios da sociedade poder coexistir, ou é necessário que um se sobre ponha ao outro?

 

Nas respostas do módulo I, procurei em determinada passagem sumariamente descrever como Foucault vê a sociedade de controle, que ele denomina “sociedade disciplinar”. Para Foucault, que vê as coisas sob a ótica do poder , a sociedade atual é o resultado de décadas e séculos de treinamento para se adaptar ou se acostumar com o controle do Estado e outras instituições sobre o indivíduo. Tomarei dois trechos do texto para responder essa questão. Assim se lê na página 34:

 

A sociedade do controle e dos sérios impede a espontaneidade e a gratuidade do sorriso, da vida. Nossas escolas privilegiam a seriedade. Nossas comunidades buscam ter na seriedade a verdade. Nossa insegurança apresenta-se como sinônimo de medo, de vontade de controle. Parece incrível, mas temos a sensação que nós desaprendemos a sorrir. Preferimos o sério ao espontâneo, ao sorriso sincero, gratuito. A vida perde sua espontaneidade criativa, lúdica, hilariante, para transformar-se no bloco monolítico de verdades, certezas e controles próprios de uma sociedade especialista em calcular custos e benefícios das demandas vitais.

 

E na página 32, consta a seguinte passagem, que considero muito elucidativa.

 

[...] em nossa sociedade contemporânea edificada sobre os pilares da técnica, onde tudo o que é factível é “automaticamente” eticamente justificável, alienando o direito ao debate público sobre as consequências à condição humana, sociedade contemporânea alicerçada no fundamentalismo de mercado, onde o público é exaurido em suas forças em benefício dos interesses privados, as formas de controle sobre corpos e mentes assumem outras perspectivas. Os controles são mais sutis, não demandam grandes estruturas físicas, materiais e humanas para sua efetivação, mas são concretizados por meio de códigos, senhas, contas e números.

 

Que vivemos cercados por câmeras e vigias por todos os lados é o sintoma de uma sociedade de 7 bilhões de pessoas em que o individualismo é a regra, é bastante claro. Mas como escapar dela? Não ter optado pelo capitalismo, talvez fosse uma alternativa. Mas como determinar a história e querer liberdade? Quem decidiria o quê em uma sociedade não capitalista e, por extensão, certamente não individualista? Mas isso são projeções. Por ora apenas constatamos que marchamos ao caos e a desintegração de todos nos quadros éticos e morais, que julgávamos necessários. Porque também vivemos em uma sociedade cercada pelo lixo doméstico e industrial, pelo esgoto, por toxinas de máquinas e outras coisa mais. Também a sujeira de esgoto e de dejetos humanos ou industriais são um problema grande em termos de saúde pública porque poluem a água. Uma parcela significativa da população mundial bebe água de péssima qualidade e, na África, mais ou menos 180 milhões de pessoas passam sede. As doenças que água causa na qualidade de vida das pessoas é incalculável.  E os hospitais giram, então, sob o crivo do caos, como se vê. Pois, a sociedade atual é, acima de tudo, doente psíquica e debilitada fisicamente. Sou aqui muito pessimista. Honestamente não vejo uma saída plausível. Prefiro ser um pessimista lúcido que um otimista imbecil como esses que os “laboradores de autoajuda” por aí ficam a “fabricar” com seus livros lindos, cheios de paródias românticas, mas que tem como objetivo “manter as pessoas felizes” (O Simão da Folha de São Paulo chamava isso de Colírio Alucinógeno) antes que percebam de onde vêm a infelicidade.

Qualquer saída exigirá um pedágio a ser pago. Primeiro, a população mundial não pode crescer mais. E isso é sério...muito sério. E se parar de crescer, estará velha em 30 anos e morta em Sessenta anos. Como controlar e não permitir que sejamos uma sociedade de idosos em 30 ou 40 anos? Conspiremos! Infestando alguns aeroportos com bactérias letais, como o ebola, por exemplo? Isso poderia desencadear uma matança de milhões e quem sabe alguns bilhões de pessoas. Quem ficar vivo, agradeceria certamente. Mas isso é egoísmo puro. Essa seria uma saída radical nos moldes utilitaristas de Bentham. Mas ninguém pode dizer que essa solução utilitarista não será adotada. Eu concordo com as afirmações do texto, segundo as quais um volta para “o espaço público” poderia amenizar as coisas. O interesse público poderia ser privilegiado em detrimento das questões privadas. Mas quem decidiria isso, a democracia? Qual democracia....essas nossas aí onde os partidos políticos são cartórios para enganar eleitores e depois fazê-los “participar” dos projetos de poder sobre os quais não têm qualquer controle? A crítica da Hannah Arendt à democracia era exatamente essa. Uma saída que parece boa é fazer com as futuras empresas sejam penalizadas no seguinte sentido: tudo que os empresários auferirem em termos de lucro, deverá por força da politica pública ser transformado em benefício da questão pública. Mas isso seria exigir que as empresas cumpram um papel socialista...de retorno público. Exigir que as empresas como lucros fantásticos invistam em escolas, bibliotecas, bolsas de estudos. Mas isso exige, antes, uma participação politica maior de nossas populações civis. E aqui está o nó do problema.

 

 

03. Discorra sobre: Que é o homem? O Que somos? Para que somos?

 

Essa sempre foi a pauta do existencialismo, sobre o qual há as mais variadas filosofias se debruçaram, desde Pascal e Kierkegaard a Heidegger e Gianni Vattimo. Dos muitos já conhecidos, cito um pouco analisado e até pouco conhecido. Max Scheler define o ser humano em termos de espírito, como alguém capaz de tomar distância do mundo, olhá-lo de fora, sem precisar da atitude natural apenas, como dizia Merleau-Ponty. Heidegger insistiu que o único problema que o ser humano quer resolver seria “ele próprio”. Daí que sua ontologia da facticidade existencial e fenomenológica é uma tentativa de superar a Metafísica tradicional – aquela da ciência das causas primeiras de Aristóteles – pelo Dasein (estar-aí) como ontologia e não apenas história do ser, como nas ontologias (metafísica antiga). Não é o Ser que está na História, mas a História, a historicidade é um evento), isto é, é parte do Dasein. Os historicistas de linha marxista, hegelianos e até bergsonianos sempre estiveram às turras com Heidegger por isso. Mas Heidegger quis fazer da filosofia uma análise do ser humano, sem se render às teorias dialéticas, que são sempre hegelianas e marxistas também. O problema dessa questão é Hegel. Ele imaginou o ser humano como movimento dialético-histórico, uma determinação ética que marcharia ao Absoluto – uma espécie de “todo ético” que faria dos humanos os detentores de seus destinos. Hegel denomina a isso “Geist”, espírito. Mas em Hegel a história é o absoluto (e Marx aqui segue Hegel), o que é um problema para os fenomenólogos. O ser humano percebe o mundo e não percebe absolutos. Os dialéticos historicistas se esquecem que “absoluto” é uma metafísica e não a história. A história não é uma moldura dentro da qual estariam todos os eventos. A história é um evento de fenômenos e não um simulacro no qual a caminhada humana se encontra. Heidegger, para mim o mais significativo filósofo contemporâneo, mesmo derrotado pela ideologia historicista, que para mim é parte da doença e da falta de cultura atuais, apontou desde de onde nós deveríamos recomeçar. Mas onde nem a pedagogia tem profundidade, como querer que se seja filosoficamente profundo? Aí se cai nas mesmices de alguns que se consideram marxistas e ficam repetindo ao leu “o que importa é transformar o mundo e não apenas interpretá-lo”! O ser humano não pode transformar o que não conhece. Até Raul Seixas já cantava “falta de cultura para cuspir na estrutura”. Só por hipóteses, teorias e quadros teóricos bem elaborados o pensamento caminha. Uma prática iletrada transforma os seres humanos em executores de tarefas como se fossem camelos e cavalos. Para Aristóteles, como indiquei nas respostas do módulo I, chama essa atitude de “animais de pasto”.

 

Vou agora tentar trazer algumas considerações que considero alinhadas à pergunta formulada.

 

Com Sócrates e Platão surge uma guinada claramente antropológica na filosofia antiga, e que se mantém na atualidade: quem é o ser humano, ou quem o ser humano mesmo diz que ele é? Se retornarmos a Platão e Sócrates, veremos que para eles o ser humano é essencialmente alma, uma alma racional que se dirige ao transcendente. Sócrates por conta disso morreu e Platão fez da questão alma o interesse de toda a sua filosofia. Para os gregos, a ratio é uma arma poderosa que responderia de uma só vez o sentido de estar no mundo e o seu respectivo destino, posto que, como sempre fizeram Platão e Sócrates, a alma racional só indica de onde viemos e para onde deveremos retornar. Daí que para esses gregos antigos, conhecer o ser humano (o “conhece-te a ti mesmo de Sócrates”) sempre foi a maneira de reconhecer a perfeição que no homem está, desde que ele use corretamente a razão. Por isso Sócrates também pode dizer que “só erra quem é ignorante”. Contudo, mesmo sendo Sócrates um capítulo importante à formação da cultura ocidental, a filosofia antropológica considera o ser humano hoje em três dimensões assim descritas por nosso autor:

 

A relação que o homem tem consigo mesmo não é uma relação de coincidência imediata com o próprio ser, mas uma relação que deve realizar um longo caminho que passa por três vias: o próximo, o mundo e Deus.  Isso depende do fato de que o homem não entra neste mundo como uma obra já inteiramente completa, totalmente definida, mas, principalmente, como um projeto aberto, a ser definido, a ser realizado e que, na definição e realização de si mesmo, deve ter em conta três coisas: o próximo, o mundo e Deus.

 

No mundo cristão, no entanto, a concepção alma será modificada pela visão dos teólogos cristãos. Eles lhes darão uma significação que ultrapassa a visão grega ao mesmo tempo que responsabilizam ainda mais o ser humano por seus atos. O ser humano, nessa perspectiva cristã não só sabe que o mundo está nele, mas “deus” também está nele. Mais do que decifrar o enigma humano, a teologia cristã faz da filosofia uma questão de salvação diante de uma existência sofrida e contaminada pela queda. A antropologia de um Santo Agostinho, depois que ele transformou Platão em “cristão” é uma brilhante e também enigmática página sobre a visão antropológica cristã do ser humano.

 

Os comentadores apontar a tentativa cartesiana de ser ao mesmo tempo antropocêntrica e ainda assim transcendental. Descartes viu o ser humano como que voltado a Deus, mas não porque a religião o diz ou porque a teologia assim o quer. Descartes vai ao homem e vê nele o critério que justifica a razão transcendental. Assim escreve o comentador, em que ele se encontra alinhado com nossa opinião:

 

A filosofia moderna substituiu o tema Deus, central na filosofia medieval, pelo tema homem. Com Descartes realiza-se um retorno ao modo de filosofar dos antigos filósofos gregos, que ignoravam qualquer revelação divina e investigavam a realidade do mundo só pela luz natural da razão.

 

Entendemos que essa virada de Descartes é retomada por Kant em sua Crítica da Razão Pura e que Battista Mondin cita logo na abertura de seu texto. Kant é ainda mais sistemático que Descartes e bem mais detalhista. Mondin lembra das dimensões sempre descritas por Kant. A primeira “o que eu posso saber?”. Essa é a questão que Kant tentou responder em Crítica da Razão Pura ao mostrar que a razão só “conhece” o que se restringe ao tempo e ao espaço. A segunda é a clássica questão ética “o que devo fazer?” que Kant detalhou em Crítica da Razão Prática. Ali consta a frase famosa “nada é tão claro como o Sol acima de mim e o dever ético dentro de mim”. A terceira é a mais complexa porque Kant era protestante e de família adepta do pietismo, uma movimento de reavivamento espiritual anti-iluminista. Sobre isso Kant escreveu em A Religião nos Limites da Simples Razão. Mas a conclusão de Kant é que é mais interessante e retomada por Mondin. Essas três dimensões resumem-se a saber “quem é o homem?”. Pois, ele conhece de modo técnico como na lógica e na matemática; ele se reconhece nas ações e sabe julgá-las ou avaliá-las e reconhece a sua dependência de um mundo que lhe é estranho. Mesmo um ateu não pode negar a dimensão transcendental do ser humano. Sobre isso cabe a seguinte passagem, que dá o tom mais ameno da “crença” na razão depois que a virada antropocêntrica não trouxe tantas alegrias e nem tantos esclarecimentos quando prometia:

 

A época moderna, eminentemente antropocêntrica e carregada de subjetividade, como definiu Hegel, tinha pretensão de resolver o problema do homem, eliminando a questão de Deus, mas essa via conduziu os pensadores ao Niilismo, onde, juntamente com Deus, caiu também o homem.  O homem, segundo a célebre sentença de Sartre, tornou-se uma paixão inútil.  Nós, pensadores, que estamos atravessando o deserto que se estende entre a modernidade e a pós-modernidade, nos defrontamos com o problema do homem, sem a confiança enganadora que a modernidade depositava na razão, mas sem aquela angústia desesperada que caracteriza a direção mais barulhenta da pós-modernidade, aquela que leva o nome de pensamento frágil. O filósofo cristão pós-moderno dispõe de uma confiança limitada nos poderes da razão, a confiança com a qual, fazendo bom uso dessa faculdade, ele poderá adquirir importantes conhecimentos em relação ao homem, em relação ao mundo e em relação a Deus.

 

É notório que hoje a racionalidade está longe de ser apontada como uma baliza capaz se salvar o homem de seu desespero existencial. Não sem razão, filósofos contemporâneos têm falado em espiritualidade para os ateus.  Outra questão que merece destaque é a liberdade. Conforme Mondin escreve, liberdade não é só capacidade ética de reconhecer o certo e o errado, mas uma atividade criadora que funda a totalidade do ser humano, à qual ele se refere nos seguintes termos:

 

A liberdade faz pelo homem muito mais: a sua função, antes mesmo que ética ou jurídica, é antropológica e ontológica A liberdade é dada ao homem para que ele possa realizar a si mesmo, seu próprio ser; porque ele realiza aquilo que a natureza apenas começou a esboçar. Sobre este aspecto Sartre afirma muito bem: a liberdade permite ao homem tornar-se o artífice de si mesmo. Pela realidade humana, escreve Sartre: ... ser quer dizer, desabrochar, desenvolver-se, nada lhe vem de fora nem de dentro que se possa receber e aceitar.  É completamente abandonado, sem nenhuma forma de ajuda, até a insustentável necessidade de fazer-se, desde o menor detalhe. Assim, a liberdade não é um ser: é o ser do homem, isto é, o seu nada de ser Se se concebia antes o homem como pleno, seria absurdo buscar nele, em seguida, momentos e espaços psíquicos em que ele seria livre: equivaleria a buscar o vazio num recipiente que antes se enchia até transbordar.  O homem não pode ser para algumas coisas livre e para outras escravo: é todo inteiro e sempre livre ou não o é de fato.

 

A terceira dimensão, com a qual queremos encerrar a nossa análise nos informa que o homem é espírito. E isso não é óbvio, como querem alguns. Óbvio, nos lembra nosso autor, é dizer que o ser humano é matéria, corpo e sujeito à degeneração, à corrupção. Enfim, óbvio é dizer que materialmente o ser humano é finito. Mas o que é espírito então?  Não há uma definição única do que se entende por esse termo. E Mondin também não o define de modo técnico. Nos informa que “espírito” diz respeito à liberdade que circunda o ser humano e suas infinitas opções. Mesmo quando o ser humano declara desesperadamente que a liberdade não existe ou que é uma ilusão, ele está situado, ou seja, fazendo uso da liberdade criativa e livre por meio da qual ele é constituído.

 

 

04. Discorra sobre a frase: “O problema da condição contemporânea de nossa civilização moderna é que ela parou de questionar-se. (...). O preço do silêncio é pago na dura moeda corrente do sofrimento humano.” (Cornelius Castoriadis).

 

RESPOSTA

Foi a soberba causada pela racionalidade, ou pelas promessas de um mundo ético em que somente os “livres de tutores” reinariam, que, em grande parte, gerou a crise. Kant e Hegel são as duas moedas dessa aspiração iluminista. Marx, Nietzsche e mesmo Freud, com argumentos muito distintos entre si, são os analistas dessa bola de cristal que virou fumaça. O Iluminismo foi um momento áureo de nossa cultura, creio, semelhante àquele da Grécia Clássica, mas foi um curto período e logo tudo virou cinzas. Quando se lê Kant, naquele Beanwortung der Frage: was ist Aufklärung, vê o otimismo. Aufklärung heisst die Menscheheit heraus ziehen der Jährigkleinigkeit derer sie seblst schuldig ist (Iluminismo - esclarecimento – significa tirar a humanidade da menoridade da qual ela mesma é culpada), escreve enfaticamente o “pastor de Königsberg” – hoje kaliningrado na Rússia.

Há um dogmatismo entre nós segundo o qual as verdades científicas já descobertas, para sempre assim estão descobertas. É o dogmatismo de nosso modelo de ciência aliado à técnica para um mundo já pré-concebido, que causa a falsa impressão de que pensar está ultrapassado.

 

Há também ainda um outro problema: a ciência produziu outro mito, nos diz Rubem Alves, ao nos dar a falsa sensação de que há especialistas, os cientistas e doutos, que devem pensar por nós. Assim, desencoraja-se as pessoas, desarma-se as pessoas à medida que se desqualifica o pensamento e as opiniões, privilegiando o discurso dos especialistas. Como tudo aparentemente já está resolvido, restando apenas fazer ajustes, tem-se essa alienação mental, essa verdadeira incapacidade mental de pensar coisas óbvias ou de crer em mudanças. Edgar Morin escreveu um livrinho muito bom em que ele pede a “reforma do pensamento”, aquela famoso “A cabeça bem-feita”. O silêncio atual é gerado pela opressão daqueles que se portam como se tudo soubessem. A meu ver, o silêncio e a aparente indiferença, decorrem justamente desse imenso mundo da informação que nos dá a falsa sensação de que apenas alguns estão hoje aptos a pensar pelos outros, e ainda outra falsa sensação, qual seja, a de nos fazer crer que as perguntas acabaram.

 

 

05. Vivemos em uma sociedade onde o pensar é deixado de lado em detrimento do agir, em detrimento do que é prático. Quais são as consequências de uma sociedade que não se questiona?

 

RESPOSTA:

Deixar a teoria e ater às soluções práticas e úteis é a marca da filosofia renascentista e moderna. O que faz um Bacon, senão condenar a escolástica por achá-la inútil frente ao mundo que exige a transformação e o domínio da natureza? O que hoje temos foi gestado entre nós de algum.

As consequências são que as soluções não podem ser encontradas se não forem buscadas. O ser humano não pode resolver o que não é posto ou visto por ele como problema. A falta de questionamento mantém os nichos de poder estabelecidos. Não permite que outros grupos, que pessoas diferentes possam situar-se em posições de destaque na sociedade.

Resolver só o que é prático ou útil leva à manutenção da situação instituída. Dessa forma, o capitalismo aparenta ser a única opção econômica e o mercado a única maneira de exercer as relações sociais e econômicas entre as pessoas. Conforme indica o texto, há muito pessimismo em relação ao conhecimento e pensamento atuais. Compartilho desse pessimismo. Veja estamos cercados de idiotas mesmo, e os brutos, a violência está vencendo. Quando a violência vence, é porque a razão perdeu. O excesso de técnica e técnicos demonstra como o conhecimento tornou-se pouco crítico, mas excessivamente impregnado de verdades eternas. Na década de Oitenta, a Marilena Chauí chamava isso de “discurso competente”, mas zombeteiramente. Na educação, nos negócios, nas empresas, são os tais especialistas que estão sempre à frente de tudo e falando “pelos outros”. Lembro que naquele texto do Nietzsche “Verdade e Mentira no sentido extramoral”, Nietzsche zomba do homem atual dizendo que em um remoto planeta houve certa vez pessoas inteligentes que inventaram o conhecimento. Para Nietzsche esse foi o momento mais mentiroso da jornada humana. Estaria então certo Nietzsche ao insinuar que o ser humano não deve primar pelo saber em sentido doutrinal (isso para ele é ser estoico demais), mas viver em uma moralidade nova em que bom e mau não sejam mais vistos em sentido tradicional, mas bom e mau deve ser visto em termos de “forte” e “fraco”? O nosso problema é a tradição cristã, que Nietzsche sempre condenou como “espírito de rebanho” ou o tipo de racionalidade econômica que é opressora, dominada por técnicos e “sábios” que tudo sabem e falam pelos outros? Prefiro a segunda opção pois a estupidez, a falta de imaginação, a crueldade e a idiotice sistêmica cresce também em países asiáticos onde a cultura de “rebanho” cristã não chegou.  Parece-me que há um cansaço entre nós que se manifesta naquilo com que sempre caracterizo a escola atual para meus alunos: o excesso de “perguntismo” e o excesso de “respostismo” que já vem pronto, embalado, prontinho para ser consumido. Na semana seguinte eles perguntam as mesmas coisas. E o professor, um funcionário da idiotice educacional, responde outra vez. Olavo de Carvalho escreveu um livro muito bom sobre isso. Me diverti muito lendo esse texto. Chama-se “O imbecil coletivo”. Como um self service: as respostas estão lá; você se serve daquelas que julga adequadas. Mas ai de ti se quiseres também fazer perguntas!!!!! O Bufet só pode ser servido pelos especialistas que dominam os segredos do Panteão.

Não posso ir muito longe agora, mas menciono que Paul Tillich percebeu que a teologia tinha uma cultura. Muito da crise do pensar atual ele analisou em: TILLICH, Paul. Teologia da cultura. Tradução de Jaci Maraschin. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.

Não posso ir muito longe agora, mas menciono que Paul Tillich percebeu que a teologia tinha uma cultura religiosa, uma transcendentalidade que a razão do tipo “meio/fins” destruiu. Em seu lugar veio ou a resignação religiosa ou o ufanismo comercial de teologias rasteiras. Muito da crise do pensar atual ele analisou em: TILLICH, Paul. Teologia da cultura. Tradução de Jaci Maraschin. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.

Mondin, conforme texto em http://fejus.vilabol.uol.com.br/pessoahumana.htm.  Acessado em 25.08.2012.

 

“A revolução cartesiana consiste essencialmente em ter ele transferido o lugar da certeza original de Deus para o homem, para a razão humana”, ZILLES, Filosofia da religião. São Paulo: Paulus, 1998,  p. 30.

“Resolvido a não mais buscar qualquer outra ciência, senão aquela que pudesse ser encontrada em mim mesmo, ou então no grande livro do mundo [...]” DESCARTES (2002), Discurso do método. São Paulo: Paulus, 2002, p. 82.

ZILLES, Filosofia da religião, p. 23.

COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo: introdução a uma espiritualidade sem Deus. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Mondin, op. cit.

Mondin apresenta na nota 6 do texto um comentário de um pensador indiano que vale ser reproduzido aqui. Vai assim: Radhacrishnan, máximo filósofo indiano do século XX, escreveu: O verdadeiro humanismo nos ensina que existe no homem alguma coisa de maior do que aquilo que aparece à sua consciência ordinária, algo que gera idéias e pensamentos, uma presença espiritual mais sutil, que o torna insatisfeito de suas conquistas puramente terrenas. A única doutrina que pode apresentar uma antiga linguagem intelectual é aquela que se baseia na ideia de que a condição ordinária do homem não é a sua essência mais íntima: que existe nele um ser mais profundo, que se chama, sopro vital, espírito, alma ou mente.